08/11/12

Fragmentos de 2012/05/30


Morning for the Osone Family (1946) de Keisuke Kinoshita: ***
Este foi talvez o primeiro filme japonês a criticar abertamente e a plenos pulmões o esforço de guerra, apenas um ano depois do seu termo - contestando em celulóide, uma classe política e militar totalmente cega e deturpadora da cultura estóica tradicionalmente identificada, reconduzindo-a sempre a uma espécie de identidade nacional. Através daquilo que na teoria da literatura se chamam personagens-tipo, isto é, personagens que representam classes sociais, tipos e modos de existência, Kinoshita aqui encerra toda a acção nos mesmos espaços fechados, como que dissecando as suas mentalidades e a sua mais singular intimidade. Da mãe que vai aceitando tudo com cada vez mais dificuldade (uma Haruko Sugimura muito mais imaculada do que se costuma ver) ao tio autoritário, presunçoso e fala-barato, tudo vai desembocar num retrato mais geral e abstracto possível. Da intimidade particular passamos a um enquadramento nacional e geral dos sofrimentos e das dificuldades de milhões de japoneses. Quantas vidas não foram ceifadas, quantas mães não sofreram assim? No final, há um confronto entre a mãe submissa que agora se torna numa feroz antípoda. Depois, anuncia-se brevemente o tempo presente, o tempo de feitura do filme com um místico amanhacer, iluminando agora os quatro anos de escuridão passada.



Record of Youth (1951) de Keisuke Kinoshita: ***
Um Haha mono (filmes centrados em mães fortes e tenazes) introspectivo e poético que se centra sobretudo na vida árdua e quase forasteira de um jovem nos últimos anos da II Guerra Mundial. Impressionante o uso de planos sequência mais demorados do que o costume em Kinoshita, demarcando bem o desenvolvimento e o crescimento dos personagens. De destacar também o sentido poema que vai sendo recitado ao longo do filme, unindo todos os personagens pela mesma atmosfera de densidades trágicas.



Woman's World (1954) de Keisuke Kinoshita: ****
Segundo Nagisa Oshima, Woman's World foi o filme que o despertou para as potencialidades do cinema japonês e percebe-se que isso tenha acontecido depois de o ver atentamente, não só pelo seu tom aparentemente contestatário, como, mais decisivamente pela sua lucidez narrativa irrepreensível. Com efeito, é uma proposta extremamente rica e desafiadora que se auxilia de diversas personagens (maioritariamente femininas) a habitar o palco do drama, sendo que todas conseguem imprimir atmosferas diferentes, tendo cada uma a sua importância e o seu espaço muito bem delineado, fazendo assim que a sua existência seja sempre uma mais valia para o conteúdo e sentido do filme. Para além de um cast de ouro com prestações de ouro (mais um tremendo papel de Hideko Takamine, mas não esquecer a outra Takamine, Mieko, e claro Yoshiko Kuga e Keiko Kishi), o mais importante a retirar deste exercício é o crescente confronto de duas perspectivas em tudo antagónicas (tradicionalismo radical e liberalismo da juventude) com um terceiro membro da equação, mais próximo de um dos pólos, mas mesmo assim bastante inconsequente quanto a revoluções efectivas. De uma maneira absolutamente avassaladora, Kinoshita vai pintando tacitamente um retrato que vai às profundezas de cada um dos antípodas para revelar que, afinal, não são assim tão diferentes, e entretanto - e apesar dos gritos de contestação e das canções motivadoras (Kinoshita é um cineasta que usa as canções de forma magistral) terem a sua justficação - morre sempre quem menos merece. E aqueles planos da descoberta do suicídio roçam tanto o absurdo que tornam toda a existência passada da personagem principal numa tragédia ainda maior, uma tragédia que impossibilita a sua compreensão, ou melhor, possibilita uma compreensão errada, distorcida e perversa por parte daqueles que anteriormente a exaltavam ou rebaixavam.



The Rose on his Arm (1956) de Keisuke Kinoshita: ***
Nem mesmo as tendências Taiyozoku (Sun Tribe) pareciam estar a salvar este exercício de ser um caso repetitivo da fórmula iniciada, no mesmo ano, por Crazed Fruit: juventude desorientada, relações familiares destroçadas (Kinoshita aqui inverte e adensa as premissas do "filme de mãe" tão seu querido) e a iniciação no mundo da criminalidade como corolário do descontentamento. Mesmo chegando a ser enfadonha esta descrição feita já tantas vezes e de maneiras bem mais agudas, eis que os últimos dez minutos fizeram reconsiderar o que o olho estava a ver. Trata-se de uma orgia de mise-en-scène com travelings estonteantes e um mutismo que corta uma luta violenta, abrindo caminho para um movimento catártico, que mesmo sendo previsível formalmente, transfigura-se na forma como nos é apresentada. É isto aquilo que se chama de realização, e é isto que faz a diferença.



The Spring (1956) de Masaki Kobayashi: **
Não me convenceu por ai além este Kobayashi que mistura um cast bem afinado - mas que já teve melhores dias - com desencontros amorosos (os seus momentos mais altos provêm justamente daí) e uma história bastante desinteressante sobre a contestação das classes mais baixas à procura de uma fonte.



I Will Buy You (1956) de Masaki Kobayashi: ****
Já no caso desta crítica refinada ao sistema de contratação de uma estrela de baseball consegue-se aqui apontar as falhas e os podres de uma sociedade do espectáculo, altamente competitiva e sem qualquer vergonha em usar os meios mais sujos para conseguir os seus fins altamente duvidosos de um ponto de vista ético. Com isto, não se caí também no erro dos personagens serem respondões de posições morais ou imorais. Pelo contrário, o filme como que atribui uma dignidade aos personagens, mesmo criticando-os (o caso mais claro é o do manager da estrela). Outro ponto alto do filme é o que corresponde ao último terço, uma espécie de dança das cadeiras com tantos intervenientes em que a trafulhice parece não ter limites (criando uma espécie de suspeita colectiva por parte dos próprios agentes). Às vezes hilariante, outras cinicamente desprezível. O fade que liga imageticamente o velório do manager ao campo de estreia da estrela é um caso exemplificativo dessas duas dimensões, aqui sintetizadas de maneira bastante crítica.



My Face Red in the Sunset (1961) de Masahiro Shinoda: **
São sempre bem-vindas obras do primeiro período de Shinoda pré Pale Flower, digamos assim, mas aqui infelizmente a sátira leviana aos lugares comuns dos filmes de gangster perde-se um bocado na imensidão estilística do "tudo ao mesmo tempo" que se vai aqui executando. Demasiado artíficio neste caso é prova de pouca substância. Porém, não deixa de haver alguns momentos mais inspirados e inspiradores que são como que flashes repentinos de demonstração da relação criativa entre Shinoda e Shuji Terayama, este último, não deixando de carimbar a sua assinatura no argumento com algum do seu humor absurdo e surreal, números musicais meio satíricos, uma personagem de Hokkaido, e até um ou outro poema mais introspectivo.



Zenigata Heiji (1966) de Tetsuya Yamauchi: ****
Haverá um dia em que os arqueólogos do cinema irão encontrar, perdidos no meio dos artesãos da Toei, nomes como Tai Kato, Tadashi Sawashima ou Tetsuya Yamauchi, este último que, apesar do curto currículo, é um verdadeiro inventor de modos de expressão imagética e um realizador que, repetindo modelos diegéticos, mantêm intacta uma noção inabalável de ritmo narrativo.



The Assassination of Ryoma (1974) de Kazuo Kuroki: *****
Surpreendentemente sardónico, este retrato sui generis de Sakamoto Ryoma é um óptimo exemplo de como se pode desconstruir um personagem histórico sem com isso se retirar, nesse processo, uma profundidade do carácter. No caso, Kuroki optou por assemelhar o excêntrico revolucionário àquilo que eu chamaria um hippie avant la lettre , um vádio que, sendo incompreendido para a era que vive, só poderia se exilar para salvar a sua vida (Yoshio Harada: sem palavras). Sendo, por isso, um estranho exercício de estudo de personagens, não menos merecido é o destaque para um jovem Renji Ishibashi interpretando Nakaoka Shintaro e Yusaku Matsuda um assassino meio burlesco e silencioso. Até à sequência final, a visão de Kuroki é de um cinismo atroz, colocando vários momentos cómicos e absurdos (uns mais deliberados do que outros) para aí imprimir, como nos seus intertítulos em forma de memorando a cortar a acção narrativa, a sua visão desse período tão conturbado da história japonesa. E depois, aquela cena final que me fez pôr as mãos à cabeça de tão intensa que era. Nunca pensei que um filme que vive de planos bastante aproximados e uma estética quase retirada de documentário, conseguisse transmitir aquela sensação típica de um filme ATG. Valeu bem a pena a espera.



Love Hotel (1985) de Shinji Somai: *****
Não há nada aqui que não esteja contaminado por uma intoxicação devastadora dos poderes oblíquos do erotismo. Não pude deixar de aplaudir (literalmente!) aquele plano sequência final absolutamente divino e destruidor, que tinha sido apenas o culminar de uma quantidade enorme de outros tão ou mais arrebatadores do que esse. Estava já dito algures mas mantêm-se o essencial: Somai é um génio.



Remains - Beautiful Heroes (1990) de Sonny Chiba: 0
Nesta primeira aventura atrás das câmaras, Sonny Chiba claramente não demonstra grande perícia nem visão, mesmo, adoptando um tema tão irregular e pouco propício a grandes coreografias de luta, como certamente seria de esperar, proporcionando com isso uma expectativa positiva. Em rigor, como filme meio dramático, meio trashy que é, Beautiful Heroes não consegue ser mais do que uma curiosidade datada que não surpreende apenas porque não seguiu o óbvio.



Haru's Journey (2010) de Masahiro Kobayashi: ***
Os filmes de Masahiro Kobayashi andam aos círculos. São representações de um mundo que desconhece a forma da linha e que teima em se fazer mostrar aos olhos do espectador. A linha só é linha aqui, na medida em que vai parar onde começou, mantendo estático todo o movimento aparente. Posto isto, quer-se fazer ver o contrário com Haru's Journey, um filme direccionado para os actores como um boomerang que volta para o realizador. Sabemos, pois, que um filme cuja substância reside nas interpretações (Kobayashi aqui parece só conhecer o campo, o contra-campo e o grande plano) tem de se desenvolver, tem, enfim, de quebrar com a circularidade que intuia ao fechamento. É aqui que Kobayashi, umas vezes melhor outras pior, vai pegando na sua estrutura temática de sempre e a desenvolve num bizarro - mas simples estruturalmente - road movie que tem uma espectacular performance de Tatsuya Nakadai, interpretação tão grande e meticulosa que transcende o próprio filme em causa.



Hara-kiri: Death of a Samurai (2011) de Takashi Miike: *
1) Mais um remake deslavado, manchando por completo o original - e neste caso, era quase impossível não o manchar de alguma forma - , servindo-se de uma estética empobrecida e simplificada, na maior parte dos momentos televisiva (salvo alguns travelings que nos fazem lembrar que estamos a ver um filme), parecendo toda esta empreitada não ter qualquer ideia das razões pelas quais era a obra de Kobayashi uma tamanha obra-prima. 2) As mudanças no argumento, quando as há, são para pior (excuso-me a falar delas pois são ridículas). Shinobu Hashimoto dizia a respeito da estrutura narrativa de Harakiri que usava o flashback de uma maneira que continuava naturalmente o seguimento do filme. Também dizia que quando não usados assim, os flashbacks não tinham qualquer utilidade, e precisamente é este o caso nesta versão. Trata-se de uma sequência longa, que tenta a todo custo fazer crer na mudança do personagem principal (juntando a isso um drama de trazer por casa), mas sem qualquer resultado. 3) Aqui vive-se da sombra (ao ver o filme, paralelamente apenas me lembrava do modo como Kobayashi tinha feito cada cena melhor e porquê) de tal maneira que mesmo o que resulta é cópia directa do original e tudo o resto é penoso de se ver. E fica demonstrado - ainda mais do que em 13 Assassins, porque a acção consegue mascarar muita coisa - de que Miike não tem qualquer apetência para filmar narrativas com contornos radicalmente trágicos, pois quando tenta enveredar por esse caminho, ora cai num esquema interpretativo demasiado linear que roça a canastronice dos actores, ora embrutece a profundidade psicológica dos personagens em virtude da emoção fácil (e apesar de apreciar o trabalho de Ryuichi Sakamoto, é quase uma blasfémia sequer comparar este "choradinho" de violinos com a magnânima crepuscular banda-sonora de Takemitsu no original). 4) Atendendo a isto tudo, percebe-se mais uma vez que não havia razão nenhuma para se insistir neste remake. Nada de bom poderia sair daqui, excepto, talvez, refrescar a memória e ficar com vontade de rever o original.

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