30/12/14

Fragmentos de 2014/12/30



The New Way - Akemi's Part (1936) de Heinosuke Gosho: ***
The New Way - Ryota's Part (1936) de Heinosuke Gosho: **
Com um argumento de Kogo Noda (o habitual ozuniano Kogo Noda), The New Way divide-se em duas partes distintas, não só por estratégia de marketing - era habitual na altura separar em duas partes, histórias mais longas do que o costume (também Mikio Naruse e Hiroshi Shimizu o fizeram) - mas principalmente porque Akemi's Part e Ryota's Part diferem completamente um do outro em termos de significado e energia da sua protagonista moderna (sem ainda assim demonstrar uma agenda política qualquer ou grandes inclinações esquerdistas: o moderno aqui não é panfletário mas próprio da personagem). A primeira parte explora as vidas afectivas de duas primas em plenos anos 30: a forte e alegre Akemi que evita o casamento planeado pelo seu pai enquanto saí com um homem seu conhecido e Utako, uma mulher mais feminina que está apaixonada por um pintor que viajará para França e a deixará só por dois anos. O segundo capítulo, por sua vez, tenta serenar a tragédia que fecha o primeiro acto, incorporando a devastada Akemi num esquema social mais tradicional onde, porventura, poderá conhecer tempos mais felizes ao lado de um homem que aprenderá a amar. Vale a pena citar os elogios de Jake Savage no seu blogue Cinema Talk sobre a prestação magnética de Kinuyo Tanaka no primeiro filme: "Em vez de se tornar uma Jean Arthur japonesa, a interpretação de Tanaka é algo totalmente novo. Nos dois relacionamentos retratados, ela consegue de algum modo ganhar o controlo. Correndo o risco de menosprezar as imagens de Gosho, esta é uma película de Tanaka e é abastecida pelo seu empenho." De facto, não podemos mesmo discordar desta análise. A Tanaka de Akemi's Part é bem mais interessante e sedutora do que a de Ryota's Part: ela não questiona radicalmente o sistema social nem a eventualidade de um relacionamento com um homem, mas troça e ri-se de algumas convenções e das limitações sociais do seu sexo. Ela fuma com charme, tem sempre resposta e emana o tal sentimento da modernidade que, por exemplo, a sua prima Utako não tem (essa obediência ao caminho velho será capital para a má decisão que Utako tomará em Ryota's Part). É por isso que o cliffhanger do primeiro filme é particularmente tocante (e talvez não houvesse necessidade nenhuma de um segundo filme), porque contrasta a perda amorosa e injusta de Akemi com a sua reacção de simultâneo pânico e tenacidade: de costas e com o passo apressado, não correm lágrimas (como seria esperado de uma mulher).



Children Who Draw (1956) de Susumu Hani: ****
Documentário muito referenciado mas raramente visto, Children Who Draw é o segundo capítulo da trilogia de Susumu Hani sobre as primeiras experiências sociais das crianças. Com o subtítulo "Entendendo a arte das crianças", este pequeno filme com pouco menos de 40 minutos, encara os desenhos infantis como a extensão imediata das arrelias, tristezas, sonhos e obsessões inexplicáveis dos pequenos desenhadores, sendo que a componente abstracta e aparentemente redutora das figuras e das formas revela um modo único de transfigurar as experiências concretas (até exorcizar certos demónios) libertando uma criatividade e imaginação que se descobre a cada rabisco e pincelada . Hani foi várias vezes considerado um cineasta da autenticidade, tanto na maneira como quebrava as barreiras das suas ficções (sempre cunhadas com o real que as extravasam) como na escolha dos sujeitos das suas filmagens, esses ainda não totalmente afectados pelas normas da sociedade. As crianças filmadas por ele não têm consciência da câmara (e apenas uma proto-consciência delas próprias) e, tal e qual como nos seus desenhos sem filtros, representam a maior transparência possível na maneira como se comportam, como lidam com os outros e como assimilam as experiências em seu redor, em suma, na maneira como crescem e aprendem. É preciso, portanto, escutar o narrador que muitas vezes nos aponta para o progresso individual de cada criança apoiando-se nos novos desenhos por eles feitos. Esse nexo causal (ainda hipotético e obscuro) faz-nos olhar de outro modo para a "arte infantil", maravilhosas peças místicas que nos deixam aceder ao mundo complexamente simples das crianças.



The Flame of Devotion (1964) de Koreyoshi Kurahara: ****
Contado a partir do fim com uma estrutura de memórias aos retalhos (impressionante notar como as imagens durante, pelo menos, a primeira hora de filme vão dando lugar umas às outras através de sobreposições e fades, como se a memória ela mesma funcionasse por evocações e invocações, sístoles e diástoles recordativas), The Flame of Devotion representa o ideal máximo da paixão, um sofrer querendo, um erotismo dos corpos e das almas - que dizer, portanto, das sequências terrivelmente eróticas porém inocentes dos banhos despidos nos mares ou das brincadeiras por entre as ervas altas? - enfim, uma aprovação da vida na própria morte, como já nos dizia Georges Bataille. E é mesmo sobre isso que o drama trágico dos apaixonados de Kurahara incide: a conquista do paraíso através do outro e a perda subsequente desse agente que sustentava o peso do mundo. A presença inefável de Ruriko Asaoka como amada e amante representa o ponto nevrálgico de todo o filme. Ela, que é a senhora do mar e das montanhas, caminhante noturna e solitária por entre o fumo morno dos comboios (sim, a cinematografia é assim tão expressiva!), ela que é temente dos mensageiros e das mensagens da guerra sem sentido que ceifa os homens sem razão e deixa as mulheres penando em silêncio e surdina, ela que é apenas uma mulher com uma tenacidade inacreditável, miraculosa mesmo quando confessa ser fraca e não ter nenhuma. The Flame of Devotion, com a sua fotografia brilhante e lírica e com a interpretação minuciosa da sua protagonista, consegue tornar autêntico e palpável todo o exagero romântico de um amor que significa a vida, que é maior do que a vida.



Hymn (1972) de Kaneto Shindo: ***
Ao adaptar Shukinsho, o famoso conto de Junichiro Tanizaki que levantou alguma celeuma literária devido ao seu registo ambíguo, Kaneto Shindo quis reafirmar alguns lugares comuns sobre a relação de extrema devoção de Sasuke a Okoto enquanto que outras evidências das adaptações cinematográficas surgem diferentemente, chegando mesmo a ser desviantes. Visto que se trata da sua primeira produção Art Theatre Guild, Shindo teve a necessidade de abrir o filme num registo semi-documental (o que significa que a "verdade" do documentário é encenada), mostrando-se a si próprio de costas para a câmara, primeiro numa visita à campa dos amantes e depois fazendo uma entrevista, mais uma vez forjada, àquela que testemunhou em primeira mão o relacionamento - aqui verdadeiramente sado-masoquista - da cega Okoto, mestre de koto e shamisen, com Sasuke, o discípulo submisso. Teru, a empregada da casa, recorda-se do que se passou, sempre em diálogo com o próprio realizador, e confronta as suas memórias com o relato escrito de Sasuke, supostamente a versão mais fiel dos acontecimentos. Neste jogo de vozes e neste questionamento da autenticidade do que está escrito talvez se mencione, ainda que de maneira subliminar, toda a discussão feita por escritores e críticos em torno do que realmente se passou nesta criação literária aparentemente tão ideal e pura. Portanto, nesta versão carnal, à flor da pele onde o sexo e as necessidades corporais tomam a dianteira, foca-se sobretudo o poder erótico e à primeira vista assimétrico da mestra pelo seu discípulo e como essa forma de duplo aprisionamento (a mestra só ordena na medida em que tem alguém para ordenar) cria uma necessidade retorcida e egoísta de se afunilar o mundo em prol da obsessão pelo outro - a obsessão de servir e a de ser servido. Com efeito, a relação não assumida de Sasuke e Okoto é descrita como egoísmo a dois: em simultâneo, veja-se o abandono sucessivo dos bebés bastardos que geram em segredo, e individual, quando mesmo na auto-cegueira de Sasuke, que na versão de Yasujiro Shimazu significava não só a maior abnegação possível como o abandono pelo mundo irreal das sensações, encontramos uma substituição de sentidos (a visão pelo tacto) ainda mais prazerosa e sexualmente gratificante para os dois (e que planos deliciosamente oníricos, esses da cegueira). Shindo, no entanto, não despreza nem menoriza esta obsessão. Chama-a de amor intenso e relata-a como uma das formas mais violentas e passionais de apego e afectação. Nesse momento, ainda que de maneira completamente diferente, Hymn reencontra a força da narrativa original mesmo quando se desvia dela a todo o custo.



Poem (1972) de Akio Jissoji: *****
Akio Jissoji deixou-nos um legado cinematográfico tão importante que o seu nome deveria ser dos primeiros a ser proferidos quando se fala de cinema japonês. A trilogia a que se resolveu chamar "Sexo e Religião" (composta por This Transient Life, Mandala e este Poem) representa um dos grandes marcos do cinema mundial no que diz respeito ao casamento entre a audácia formal presente na arquitectura dos planos (que induzem à transiência e à meditação) e a capacidade abstracta, subversiva e filosófica dos problemas únicos que levanta. O universo perversamente religioso de Jissoji será sempre motivo de maravilhamento e redescoberta para nós, provando, em última análise, que o ofício do cineasta se resume a desregular o olhar e através dele a mente, o que lhe permite criar contradições deveras exóticas e enigmáticas: espaços poéticos, corpos sexualmente cruéis, tendências ascéticas de recusa do mundo terreno e um universo obliterante de erotismo e sonho. Sempre nesta trilogia houve uma componente dialógica (e nunca ninguém filmou diálogos como Jissoji) e os três filmes apontam para diversas possibilidades de confronto entre as visões radicalmente heterogéneas dos personagens. É nesses antagonismos vivenciais e considerativos que reside a tensão lancinante. É a negação do presente (do "tempo" ele mesmo em Mandala) que conduz ao fascínio religioso e, como dizia alguém, os filmes de Jissoji são bastante mais representações radicais de revolta do que examinações profundas da fé. Em Poem, as referências budistas estão ainda mais apagadas do que nos dois filmes anteriores e a função abstracta do monge parece exercer um poder simbólico que contrasta e acompanha os demónios interiores de Jun, um jovem obstinado que assiste à lenta queda dos sucessores da antiga família Moriyama a quem jurou fiel vassalagem. A radical obediência de Jun às regras que ele próprio criou, e que por vezes vão no sentido contrário daquilo que o seu senhor deseja, prova a sua busca impossível pelo ideal feudal dos antepassados (cujas inscrições funerárias venera e deseja copiar) num mundo prestes a colapsar, deslocado de referências, fortemente selvagem e capitalista; um mundo onde os vivos estão mortos e os mortos deveriam estar vivos. Se o anti-herói de This Transient Life, talvez o mais dostoievskiano dos seus personagens, corrompia o sistema familiar activamente porque, no seu ponto de vista, não existiam leis no mundo terreno, Buda e o paraíso eram o Nada e o Inferno era o local mais humano de toda a "suposta" criação celeste, Jun, o mais mishimano dos seus personagens, enraíza até às últimas consequências o ditame latino "ora et labora" e leva uma vida mortificada entre os espectros (e que fotografia tão assombrosamente escura a deste filme!), acreditando desesperadamente, através da obediência cega ao dever, na salvação da família pela "forma" de agir e não necessariamente pelo conteúdo. Poem representa, portanto, o último acto de revolta: a de quem luta contra o caos generalizado, invisível, com a máxima e mais inquestionável ordem como um monge. Nesse sentido, precisamente por abranger a degenerescência esta é a obra mais amargurada de toda a trilogia, que tinha anteriormente optado pelos caminhos inversos: a desordem individual contra a ordem social em This Transient Life e a desordem grupal contra si mesma em Mandala. No entanto, o mesmo destino é partilhado para quem comete a coragem pecaminosa da transgressão quando todas as máscaras caem: a morte, o suicídio, o sonho ou os três juntos.



Love Bombs (2013) de Nobuteru Uchida: **
Tinha já denunciado os pecados da anterior tentativa do estreante Nobuteru Uchida: típica produção independente com uma estética confusamente imediata onde o baixo orçamento se notava mais do que era suposto. Após as críticas, acabei também duvidando. O realizador poderia estar só a lutar contra os óbvios problemas de um filme com essa escala e as escolhas técnicas poderiam ser apenas "males menores" para chegar onde queria e completar a tarefa. Por seu lado, com Love Bombs muitas das dúvidas de qualidade e competência ficam esclarecidas. Uchida sabe como colocar a sua câmera e o uso do plano fixo (contrapondo aos tremeliques irritantes do seu anterior filme) funciona como forma de enquadrarmos os personagens em espaços familiares e sedutores. Algo que já tínhamos elogiado anteriormente era a direcção de actores e este caso também não é excepção. Kiyoko, uma mulher misteriosa chega a uma aldeia e é acolhida por uma idosa simpática que não lhe faz muitas questões. A pequena comunidade, que praticamente não tem mulheres jovens mas tem muitos homens, fica abalada pela presença sedutora de Kiyoko, tornada de repente aos olhos de todos numa mulher fatal. Há duas interpretações acerca da figura clássica da mulher fatal: ou ela é directamente responsável pela ruína das homens que seduz (não é preciso irmos ao Antigo Testamento e a Lilith quando temos a Susana de Buñuel) ou indirectamente e por onde passa, deixa um rasto triste de sensualidade, pois todas as relações com o sexo oposto podem ser secretamente reduzidas à tensão sexual no outro provocada. Uchida em Love Bombs explora a segunda hipótese. Kiyoko, presa na sua feminilidade submissa e na pressa de fugir do passado da grande cidade, o que quer que fizesse sempre veria homens interessados por ela. Um dos pontos altos do filme é certamente esta revolta contra a sexualidade subjacente no contacto com o outro sexo e a hipótese de nem todas as mulheres fatais serem assim tão fatais, mas "como animais perdidos", à procura de sair desse rótulo que aprisiona mais do que liberta.



Rurouni Kenshin - Kyoto Inferno (2014) de Keishi Otomo: ***
O segundo filme das aventuras do lendário Battosai é também a primeira parte (de duas) centrada na melhor e mais aguardada saga do manga escrito por Nobuhiro Watsuki, isto é, a batalha contra o aterrorizador Makoto Shishio. Kyoto Inferno, à semelhança do seu predecessor, continua bastante fiel ao espírito do original, mas não deixa de tomar algumas liberdades que podem ser criticadas pelos admiradores mais hardcore da série. No entanto, é preciso ser muito purista para desprezar totalmente a forma como Otomo condensou aproximadamente cinco volumes e meio da obra original (da metade do volume 7 ao 12) sendo que os "problemas de adaptação" podem ser justificados, parcialmente, pelo salto da saga de Aoshi Shinomori, que deveria ter ocorrido entre a acção do primeiro filme e a aparição de Shishio. Sem dúvida, todas as cenas com Aoshi são desnecessárias e colocadas à pressão, apenas para introduzir o rival imprescindível do original, mas aqui sem motivações relevantes e com uma personalidade longe de ser convincente. Outras mudanças, que se justificam pela obrigatoriedade de num filme se ter de juntar todas as pontas soltas, são o pouco tempo dado a certos personagens (por exemplo, Misao Makimachi, a companheira de Kenshin em Kyoto, reduzida a figurante) e a quase inexistência de outros (poderíamos ter tido algumas introduções para os restantes membros das Dez Espadas de Shishio...). Tendo em conta as limitações das versões live-action de mangas e animes feitas pelos grandes estúdios, esta será certamente uma das melhores que poderíamos ter tido. Takeru Sato continua a ser um excelente Kenshin (e volto a reiterar a dificuldade em torná-lo convincente e não resumi-lo a mera caracterização ou cosplay) e outras prestações destacam-se pela positiva: Ryunosuke Kamiki como o perigosamente inofensivo Sojiro Seta, Yosuke Eguchi como Hajime Sato e, finalmente, Tatsuya Fujiwara como Makoto Shishio, não tão estratega e cerebral como no manga, mas um vilão muito ameaçador e psicopata. Se continuarmos por este caminho e se no terceiro filme, Rurouni Kenshin - The Legend Ends, se modificar alguns pecados, toda a trilogia terá um lugar especial para àqueles que, como eu, já não confiavam nas adaptações em imagem real de mangas.

14/12/14

Fragmentos de 2014/12/14



Big Time Gambling Boss (1968) de Kosaku Yamashita: ***
Apesar de ser o quarto episódio de uma saga com sete capítulos e de pertencer a um esquema industrial de produção, Big Time Gambling Boss é talvez o mais lendário dos ninkyo-eiga. Paul Schrader, um dos críticos ocidentais que primeiramente teorizou sobre esse género tão especial, chegou mesmo a classificá-lo como o mais perfeito dos filmes yakuza e alguém como Yukio Mishima, fetichista da tragédia honrosa, equivaleu-o, em termos de escala e dimensão, às tragédias clássicas. Qual a razão desta devoção se aparentemente tantas produções copiavam o mesmo universo melodramático das rivalidades entre clãs e irmandades, em suma, replicando uma e outra vez as mesmas narrativas e os mesmo esquema de heroísmo e martírio. Provavelmente, porque em Big Time Gambling Boss as relações entre os personagens são bastante mais ricas e não se resumem ao maniqueísmo, por vezes, cansativo e já tão trilhado. Na verdade, a temática dos ninkyo-eiga caracteriza-se essencialmente pela forma como os dilemas morais dos protagonistas, sempre entre o dever e a humanidade, são postos à prova e resolvidos pela via mais radical possível (ou pela morte ou pelo aprisionamento). Nesta intriga, a "traição" ou as traições que abalam o universo vertical da lealdade e honra não são transpostas completamente no exterior, num vilão inquestionável que usa e abusa da bondade e compreensão do protagonista até à sua fúria derradeira, mas assistimos, por contraste, a uma verdadeira guerra de irmãos que não se entendem, mesmo quando pertencem ao mesmo mundo fechado de regras e obediências. Em Big Time Gambling Boss, os imperativos nas acções dos yakuza, a sua teimosia categórica e a dimensão do "dever", afinal tão diferente para cada cabeça, constroem uma cosmologia de fatalidade, desencontro e sofrimento, aqui bastante mais refinada e trágica do que o habitual. Mesmo no duelo final catártico, Yamashita poupa-se à chacina e opta pela elipse que nos lança na violência direcionada, melancólica e brutal de um só indivíduo perante as gravosas consequências morais do seu mundo. Este é, sem dúvida, um dos ninkyos mais esmerados em termos puramente temáticos, um valioso testemunho da sua mensagem, muitas vezes simplificada!



Swords of Death (1971) de Tomu Uchida: ****
Swords of Death, o sexto e último capítulo da saga Musashi Miyamoto, está envolto em muito mistério. Durante bastante tempo pensou-se que Tomu Uchida, com 72 anos e uma doença terminal na altura das filmagens, nunca teria chegado a terminar este inóspito e negro exercício e que teria deixado esse encargo difícil aos seus assistentes, mas segundo a mais recente edição em DVD da distribuidora francesa Wild Side, Uchida não só filmou tudo o que pretendia originalmente como montou o filme no seu quarto de hospital, tendo falecido meses antes da estreia no cinema. Swords of Death é também difícil de categorizar enquanto produto isolado, sequela e fechamento da saga. Repleto de dispositivos formais pouco usuais no chambara (a quantidade inumerável de freeze-frames só podem invocar o sentimento paralítico da morte aqui omnipresente), também a duração reduzida do filme assim como o seu final aberto e pessimista provam a dificuldade de o aceitarmos, tout court, como o filme que fecha as aventuras do tenaz espadachim que dedicou a sua vida ao sabre. Com efeito, como nos explica Fabrice Arduini na introdução, Swords of Death é um ovni na saga (foi o único a ser produzido pela Toei em vez da Toho, como tinha acontecido com os cinco anteriores episódios) e representa, ainda que minimalistamente e sem pretensões épicas, o purgatório do herói constantemente recordando-nos aquele que é considerado, por Arduini e por nós, "o pecado original" de Musashi Miyamoto: a morte da criança e a dizimação do clã inimigo no quarto episódio. Aqui Musashi, cada vez mais solitário, parece saído dos infernos e a sua via da espada (a vida da justiça pela qual desistiu de todas as hipóteses terrenas), mais uma vez, vai desembocar na pura violência e chacina. O antagonista de Musashi, um mercenário que procura vingança, verá o seu filho bebé ser raptado pelo espadachim e é, justamente aí, que todos os papeis se subvertem e tudo se exaspera. Entre a desumanização e a racionalidade extrema do estratega, Swords of Death desconstrói os dilemas e os métodos do herói através da agonia das suas vítimas e cerca o seu universo problemático nas chamas dos infernos e nas lágrimas histéricas de uma criança indefesa. Só assim poderia surgir, escrito a vermelho cor de sangue e do fogo, a seguinte mensagem: "a espada, finalmente, apenas provoca a violência." Terminar tão duvidosa e asperamente uma saga heróica só por si é um acto de coragem e introspecção pouquíssimas vezes visto no cinema.



Demon Pond (1979) de Masahiro Shinoda: **
Para um realizador que pertenceu à geração iconoclasta da Nouvelle Vague Shochiku e desenvolveu sempre uma postura crítica e comprometida face à irrealidade e desonestidade das grandes películas de estúdio, parecerá estranho o fascínio de Masahiro Shinoda pelo fantástico. Desde o surpreendente Himiko, passando pelo assombroso Under the Blossoming Cherry Trees e terminando neste Demon Pond, o fantástico, com forte inspiração folclórica, tomava conta do seu cinema nos anos 70. Essas três narrativas olhavam para a tradição do passado e, ou encenavam vidas hipotéticas de figuras históricas (Himiko), ou esboçavam contos morais sobre a transgressão, o desejo humano e a interferência entre o mundo humano e o fantasmagórico (o que só pode resultar sempre em tragédia e expiação). O início de Demon Pond, adaptação do drama de Kyoka Izumi que por sua vez era inspirado numa lenda rural, é bastante semelhante ao começo de Woman of the Dunes por Teshigahara/Abe: Yamazawa, um professor meio aluado desloca-se à Lagoa do Demónio sem razão aparente. Nas suas caminhadas, damos conta do carácter esquisito dos aldeões e de Yuri, uma habitante que vive perto de um sino e esconde um segredo perturbador. O professor acaba por encontrar um velho amigo desaparecido, Hagiwara, e de seguida aprende a razão do seu isolamento. Ao apaixonar-se pela misteriosa Yuri, ficou responsável por tocar o sino três vezes por dia, firmando um pacto antigo entre os demónios e os humanos e permitindo, assim, uma paz douradora, já que se isso não fosse feito um enorme dilúvio seria provocado pela ira do além. Entretanto, os aldeões queixam-se da seca e começam a responsabilizar o casal pela má colheita e, ao mesmo tempo, a impaciente princesa do lago, depois de receber uma carta de amor, pretende também ela transgredir o pacto e viajar até ao mundo dos homens. Como a maior parte do folclore dramático, Demon Pond caracteriza-se pelo seu confesso fatalismo e, tal e qual como acontecia na mitologia grega, torna real o desejo de transgressão tanto para os humanos como para os deuses. Resta-nos dizer que Shinoda, apesar de usar o talento andrógino de Tamasaburo Bando, não consegue fixar muito bem a concretude das suas personagens, sendo que um certo artificialismo, conjugado com demasiados diálogos e poucas imagens e inspirado talvez em demasia na estética do kabuki, ressalta negativamente. Para além disso, este é um filme onde o fantástico assume uma dimensão demasiado feérica, o que pode fascinar certos admiradores pela componente exótica mas não deixa de incluir uma certa inocência e infantilidade que hoje nos parece datada.



Mermaid Legend (1984) de Toshiharu Ikeda: ****
Como Toshiharu Ikeda conseguiu juntar as críticas da expansão e intoxicação capitalista à fúria de Mizawa, uma mulher possuída pelo espectro da morte do marido, continua sendo um mistério porventura tão insondável e imprevisível como a transfiguração por artes mágicas da nossa protagonista em anjo da carnificina. Mas a verdade é que toda esta simples, mas brutal, mitologia da vendeta e toda esta crítica aos grandes senhores que obliteram o mundo em redor para construir centrais nucleares resulta muito bem. Ikeda, todavia, não nos diz nada de muito novo e com um óbvio espírito maniqueísta coloca a Natureza como a verdadeira heroína face à ganância humana que esqueceu o valor do aproveitamento artesanal dos recursos naturais (veja-se a estátua budista do Jizo soterrada e abandonada no terreno da construção), como se também tivesse esquecido completamente o poder punitivo subjacente a todas as crenças primitivas de devoção pelo Mundo Natural. Portanto, Mizawa, a morte enviada pelos mares, qual sereia letal e indestrutível, dirige-se ao mundo dos homens com sede de castigo, com sede de sangue e sal: pune o assassino do marido que abusa do seu corpo com facadas repetidas até o seu sangue pintar as paredes, afoga o responsável pelo projecto da central na sua água domesticada e civilizada de piscina (em contraponto com a água selvagem profunda e perigosa do mar que quer destruir) e termina numa orgia homicida irada e indiscriminada, perfurando toda a gente com um arpão, como se os maus da fita não passassem de peixes fora de água tão impotentes e pouco ameaçadores como eles. Quando no final voltamos ao mundo idílico dos sonhos, debaixo de água como numa placenta onírica e a perder de vista, não podemos deixar de sentir a melancolia da vingança: um desespero impossível, um reencontro fantasmagórico imperfeito...



Lady Battle Cop (1990) de Akihisa Okamoto: *
O que dizer de um remake straight-to-video japonês de Robocop de Paul Verhoeven com uma mulher no papel principal? A palavra remake talvez não seja a mais acertada, pois Akihisa Okamoto não pretende recontar a história original, mas antes, utilizar um certo imaginário futurista e robótico para apresentar a sua própria versão kitsch de uma polícia que se tornou numa arma de metal para escapar à morte infligida pelo sindicato de vilões (que aqui são vilões desde o momento em que lhes pomos a vista em cima). Historicamente falando, assistia-se a uma era onde a indústria V-Cinema estava a aparecer e a cimentar-se como alternativa mais imediata e caseira aos filmes de acção que anteriormente eram prioridades dos grandes estúdios. Reduziam-se os orçamentos e a qualidade das intrigas, porém apostava-se naquilo que eram produtos direccionados unica a exclusivamente para a acção imparável com os seus tiroteios imprescindíveis, explosões, etc. Nesse aspecto, Lady Battle Cop é um exemplo claro da estrutura directa e seca dos V-cinema - que necessitava de espectadores despreocupados ou com falta de sentido crítico - juntamente com alguns efeitos especiais curiosos mas datados (como as cenas do monstruoso antagonista, Amadeus, que dobra e controla metais com o poder da mente). Para aqueles que gostam de ver inclinações feministas nos exercícios mais industriais, poderá parecer relevante a maneira como a nossa heroína se transforma em justiceira robô: depois de agredida e violada, pede a um cientista que use o seu corpo como cobaia como se este tivesse perdido o sentido de existir e só a frieza da armadura metálica lhe conviesse agora. Sem a deformação facial e corpórea do polícia de Verhoeven, esta lady consegue manter a sua aparência (e até sentimentos) femininos e a sua vingança é, como acontece com a maior parte das heroínas japonesas, um hino de vingança contra aqueles que roubaram a possibilidade de ser mulher.




Nobody's Perfect (2013) de Ryuichi Hiroki: *
Algo que nos vem preocupando acerca da situação actual do cinema japonês são as constantes adaptações de livros que, com o passar dos anos, saturam completamente a indústria e raramente não passam de transposições literais e pouco engenhosas da fonte original. Poder-se-ia dizer que Nobody's Perfect é mais um desses casos, muito embora o seu tema não seja, de modo algum, descartável. Baseado no romance auto-biográfico de Hirotada Ototake com o mesmo nome (que aqui também é actor por motivos óbvios), o filme de Hiroki narra as peripécias de uma turma da primária com um professor que nasceu sem pernas nem braços. Esta, que é uma história verídica e comovente, parece desembocar numa realização demasiado descaracterizada e a própria mensagem de aceitação das diferenças, por mais difíceis que elas sejam, acaba por se tornar muito didática como se superasse as particularidades e o interesse específico de cada personagem.



Crying 100 Times: Every Raindrop Falls (2013) de Ryuichi Hiroki: 0
Mais um "tearjerker" romântico e banal  que prova, em última instância, ser quase impossível passar um ano sem sermos bombardeados com a mesma estética bacoca e os mesmos tiques melodramáticos e nefastos que continuam a ser uma aposta das produtoras. Já escrevi sobre este tipo de filmes noutro lado e aqui me parafraseio (visto tudo neste Crying 100 Times carecer dos mesmos males): "assinalamos a falta de profundidade existencial quando, ainda por cima, o que percorre toda a acção é um sentimento de perda progressiva (da vida de um dos membros do casal), que surge obviamente sob a forma de doença terminal, quase nunca explorada devidamente a não ser para servir de dispositivo narrativo que coloca os personagens/ espectador debaixo de uma urgência e de uma tensão." No caso deste filme industrial de Hiroki (que francamente devia começar a escolher melhor os seus projectos) um casal depara-se com exactamente o mesmo problema de sempre: uma doença terminal frustra os sonhos da eternidade amorosa e constantemente intensifica os sentimentos que unem os envolvidos. Quer-me parecer que esta exterioridade que afecta a mulher e de onde se derivam todos os problemas (se esconde ou conta ao apaixonado que o seu tempo está contado, etc.) é demasiado estanque e impede que o relacionamento com estes personagens transcenda o dramatismo deliberado da situação que atravessam. O sentimentalismo imediato do tema juntamente com as prestações demasiado românticas e idealizadas não concede qualquer espaço para variações, interesse e profundidade de carácter. Não ao automatismo emocional, não aos brancos e pretos melodramáticos.



The Human Trust (2013) de Junji Sakamoto: 0
Sejamos francos: o novo filme de Junji Sakamoto é composto por um chorrilho confuso de pretensões sobre os tempos actuais, onde o dinheiro e a política são os melhores amigos, e mesmo como thriller político (ou melhor, financeiro) revela-se medíocre pois pouco ou nada retiramos da importância da missão, dos perigos que os nossos protagonistas frouxos correm e acabamos por estar mais atentos ao plot exaustivo e intrincado do que a qualquer sentimento real e significativo do que aí advenha. Baseado num best-seller de Harutoshi Fukui, que também escreveu o argumento fatigante, The Human Trust teoriza sobra um suposto fundo (Fundo M) que teria sido originado com dinheiros secretos do exército nipónico no fim da guerra e administrado parte a parte pelos americanos e japoneses ao longo do milagre económico até aos nossos dias de crise e questionamento financeiro. Não me perguntem como nem porquê, mas um vigarista (Mafuse)`acaba por ficar encarregue de desviar dinheiros desse fundo a pedido de um magnata, contra todos os antagonistas possíveis e imagináveis (um deles, interpretado por Vincent Gallo, muito bizarro e deslocado). Parte filme de espiões financeiros (com cenas de acção tão sofríveis quanto desnecessárias), parte conto dubiamente moral sobre o bom e o mau uso do capitalismo, o que nos surpreende pela negativa é certamente o desfecho do filme. Com ele fica provada, de uma vez por todas, a ingenuidade embaraçosa e ofensiva de Sakamoto e Fukui quando nos querem fazer acreditar, com todo o lirismo nauseante de um blockbuster (e com direito a discurso nas Nações Unidas e tudo!), nos benefícios humanos da indústria dos smartphones nos países do Terceiro Mundo. Inacreditável!



The Light Shines Only There (2014) de Mipo Oh: ***
Os personagens rastejam na escuridão à procura de alguma luz: um alcoólico desempregado, um jovem delinquente em liberdade condicional, uma prostituta e um homem adúltero que lhe paga os serviços e concede outros favores. Todas as existências neste sombrio filme de Mipo Oh, uma japonesa de descendência coreana que contradiz toda a gentileza e retidão de uma obra com preocupações "femininas", são esmagadas pela paisagem devastadora de Hokkaido, local predilecto para os mergulhos literários (no abismo) de Yasushi Sato, também anteriormente adaptados por Kazuyoshi Kumakiri nessa obra-prima chamada Sketches of Kaitan City. Mipo Oh, à semelhança do escritor niilista, descreve um mundo árido e repleto de desencanto onde só os sentimentos mais gregários (como a amizade ou o amor - sempre sujeitos à turbulência) podem prometer a salvação que nunca chega a acontecer, para nossa frustração, dentro do plano. Algo surpreendente aqui são as interpretações poderosas: Go Ayano faz um protagonista sorumbático e inacessível bastante satisfatório, mas Chizuru Ikewaki como a misteriosa, sexual e assombrada Chinatsu prova bem o talento irrepreensível e rebelde de uma actriz que confia em tudo menos na sua aparência e imagem de diva. Uma prestação sem quaisquer filtros que convêm bem ao realismo visceral de The Light Shines Only There.