30/05/14

Fragmentos de 2014/05/30




Love Letter (1953) de Kinuyo Tanaka: ***
Tornou-se um lugar comum dizer que Kinuyo Tanaka foi a primeira mulher a fazer cinema no Japão. Embora não seja totalmente precisa (a primeira realizadora foi, efectivamente, Tazuko Sakane nos anos 30) essa afirmação fez sempre parte da lenda que se construiu no Ocidente em torno da carreira atrás das câmaras dessa emblemática e talentosíssima actriz. Com efeito, nenhum dos seis filmes realizados por ela saiu em DVD fora do Japão (as retrospectivas integrais são escassas e quando as há, sortudos são os que não deixam escapar a oportunidade) e em termos domésticos apenas fora lançado o seu primeiro filme em formato digital: precisamente este Love Letter. Reza a lenda que Kenji Mizoguchi tentou ao máximo bloquear o acesso de Tanaka à cadeira de realizadora motivado por um ciúme inaudito e sentimentos de posse controversos (porque a actriz fetiche pela qual nutria amores platónicos não podia ocupar o lugar que era seu). Essa querela foi uma das razões para cortarem a parceria artística que durava há mais de 10 anos. Felizmente, Tanaka procurou apoio em Yasujiro Ozu e Mikio Naruse, que a aconselharam e encorajaram, e com um argumento de Keisuke Kinoshita, adaptava o romance de Fumio Niwa para o grande ecrã (sim, o escritor pouco brilhante dos Naruses menores, Battle of Roses ou Angry Street). Dada a qualidade duvidosa do escritor - que, ao que parece, sempre quis que a actriz fosse a primeira escolha para realizar o seu romance - a tarefa não se augurava fácil. O enredo que está sempre a poucos passos de pisar o melodrama mais inusitado é refreado com a discreta e simples realização de Tanaka, muito mais próxima das respirações de um Naruse do que dos populismos do próprio argumentista Kinoshita. Se bem que pode ser injusto pegar no facto de ser uma mulher a realizar - como se o feminino fosse por si só uma perspectiva privilegiada -, em Love Letter, Tanaka trata os temas da indústria sexual, pureza e o estatuto dúbio das mulheres no pós-guerra partindo sempre da capacidade do diálogo, no poder do perdão e do amor que não é fatalista (ao gosto de tantos cineastas masculinos) mas constrói e redime. Para ela, o perdão (que não chegamos a ver mas é-nos constantemente apontado) liga o respeito que temos pelo passado mais doloroso (e como é bonito o plano do comboio a partir que liga a cena das reminiscências) e a possibilidade de renascer e começar de novo. Parafraseando o artigo entusiasta sobre o filme no blogue Cinema Talk: "A ternura de Tanaka rivaliza com a de Naruse e, com certeza, ultrapassa aquilo que Mizoguchi estava a tratar nos mesmos anos. Um filme como The Life of Oharu examina a opressão envolvida numa sociedade patriarcal mas fá-lo apenas através do trabalho sexual. Esse isolamento insiste que tal opressão possa estar ligada ao envolvimento voluntário das mulheres nessa profissão. O filme de Tanaka ilumina essa opressão mas não vê a dinâmica de poder como sendo provocada pelo trabalho sexual. Antes, vê a existência do trabalho sexual como sendo influenciada pela estrutura de poder. Para dizê-lo de maneira mais simples: Mizoguchi tortura as suas personagens e torna-as mártires, Tanaka concede-lhes espaço para deambular, para descobrir as restricções dos espaços por elas próprias.



Dead Angle (1979) de Toru Murakawa: **
É impossível analisar os méritos da obra de Toru Murakawa sem incorrer em adversativas. Tanto neste Dead Angle como nos cinco lendários filmes protagonizados pelo destemido e meteórico Yusaku Matsuda (a trilogia Game mais Ressurection of Golden Wolf e The Beast To Die) vemos caracterizados anti-heróis viciosos, sem qualquer volição ou hipóteses de se redimirem (algo raro até no cinema japonês) porém falham sempre se o foco estiver do lado de um estudo de personagem mais profundo e psicologizante, aquele que causa empatia no espectador. Se essa psicologia frustre é boa em certos casos, por exemplo, porque aumenta a imprevisibilidade do personagem, podemos sentir falta dela em momentos específicos. Esses anti-heróis despertam-nos um fascínio muito peculiar, principalmente quando Murakawa filma a sua solidão psicótica umas vezes roçando a alucinação e  loucura, outras abraçando-as totalmente numa espiral auto-destrutiva (como acontece no grandioso The Beast to Die), mas no meio dessas situações quase sempre temos direito a cenas desnecessárias com outros personagens ou momentos igualmente incoerentes, o que, por um lado, prolonga a duração e por outro faz perder a força dos pontos altos. Especificamente em Dead Angle essa dispersão causa graves problemas na boa interpretação de Isao Natsuyagi, um jovem do pós-guerra que se especializa em executar falcatruas financeiras no limite da legalidade. Alguns desses golpes são bastante entretidos de assistir e ao longo do enredo em que vemos a riqueza do bando aumentar, também crescem os problemas e o sentimento de que não se pode passar impune indefinidamente. Como dissemos, os heróis de Murakawa parecem ser sempre deuses do mal, pois ficamos com a impressão que eles controlam o seu destino sem constrangimentos (o desvio dessa fórmula encontra-se em The Beast To Die: aí há um deus provisório do mal). É o ambiente que os rodeia que, por vezes, parece inverossímil. vejam-se os muitos personagens excessivos, alguns momentos cómicos deslocados e os romances instantâneos pouco convincentes. Sem estas adversativas incómodas, Toru Murakawa seria, hoje, um cineasta essencial.



Nurse Girl Dorm - Sticky Fingers (1985) de Yoshihiro Kawasaki: 0
Sobre estas comédias eróticas já se falou muito e já muito se as criticou. Nurse Girl Dorm - à semelhança de tantos outros episódios foleiros do catálogo da roman-porno nos anos 80 - é feito à base de idiotice despudorada e situações embaraçosas e completamente inverossímeis onde o erotismo é pretexto para as obrigatórias e industriais cenas carnais sem propósito construtivo nenhum. No seu melhor, os filmes da Nikkatsu são verdadeiras odes sensuais, relevantes em todos os aspectos principalmente se as considerarmos pelo ponto-de-vista estritamente cinematográfico. Provam-nos isso os seus melhores mestres: Tatsumi Kumashiro, Noboru Tanaka, Chusei Sone, etc. No seu pior, são sketches fragmentados com nudez, atrevimentos ligeiros e uma total inconsistência narrativa. À parte das óbvias e ridículas peripécias dentro dos dormitórios das enfermeiras, Nurse Girl Dorm tem o mérito esquisito de, no final do filme, entrarmos em amnésia e já nem nos lembrarmos quem eram os personagens e que filme vimos. Muito, muito fraco.



However...(1991) de Hirokazu Koreeda: ***
Lessons From a Calf (1991) de Hirokazu Koreeda: ****
Estes dois documentários tão diferentes introduzem aquela que seria das carreiras mais promissoras do cinema japonês contemporâneo. Contrariamente ao intimismo por vezes explorador das suas outras duas produções documentais (as últimas que rodou antes da passagem derradeira para a ficção), tanto However... como Lessons From a Calf  aparentemente trazem valores mais gerais para a discussão. No primeiro título podemos ver espelhado um alerta social e político, no segundo a demonstração de novos métodos de ensino para os alunos do básico e secundário. Ambos poderiam ser apelidados de "documentários-tese" já que os espectadores são sempre tidos como membros da sociedade onde vivem e o narrador dirige-se directamente a eles e informa-os como partes de um todo. Porém, para Koreeda isso é pretexto para filmar o que realmente lhe interessa. Mas vamos por partes. Em However..., Koreeda faz corresponder a razão de dois suicídios: o de Yoyomori Yamanuchi, responsável pelos serviços da previdência social e Nobuko Harashima, uma desconhecida, porém usuária desse sistema. Ao longo dos relatos é expressa uma crítica dura ao Estado-providência japonês, crítica essa que põe a descoberto os seus podres, confrontando com as falaciosas explicações oficiais dos sucessivos governos. O mau funcionamento das estruturas sociais do Estado explicará as duas mortes referenciadas no filme? Harashima suicida-se porque lhe vão recusando ajuda (insolitamente, um dos funcionários públicos aconselhou-a a prostituir-se para arranjar o dinheiro que pedia) e Yamanuchi decide também pôr termo à vida pela pressão colossal dos seus encargos e uma incapacidade de ver os "howevers" da vida. Pode parecer-nos demasiado massudo, mas a mensagem política não se desactualizou. Koreeda recorre à objectividade para comprovar a inexorável realidade dos seus  protagonistas ausentes, no entanto, nem era preciso fazê-lo. O melhor deste documentário é o mergulho íntimo do que eles nos deixaram. O poema do senhor Yamanuchi ("Devolvam-me a minha confiança!") não explica psicologicamente o seu suicídio porque o transcende: não choramos meramente os mortos pois aprendemos com eles. É o seu exemplo trágico que se busca indefinidamente. Em Lessons From a Calf, Koreeda filmou durante três anos o processo educativo curioso da Escola Elementar de Ina. Ao criarem uma vitela, supôs-se que os alunos dessa escola aprenderiam e exercitariam conhecimentos (matemática, desenho, a língua, etc.) de uma forma pragmática e com um objectivo em comum. A tese é simples (as crianças estão mais predispostas a conhecer quando captivadas) mas, mais uma vez, a tese em causa é derivada dos casos concretos e são esses casos que Koreeda persegue com um olho amável mas atento às nuances do real. Portanto, rapidamente se comprova que aquilo que as crianças aprendem, no final dos períodos, não é algo meramente confinado a "cadeiras" ou "matérias". Se Koreeda filma o ambiente das salas de aula, o que lhe interessa verdadeiramente são os afectos que as crianças desenvolvem com o animal no exterior. Esse contacto introduz-lhes a gravidade do mundo e abre a porta para os primeiros conhecimentos dificilmente assimilados numa sala de aula: a reprodução, a importância do trabalho e, finalmente, o peso da morte. Destaco as duas cenas da morte (primeiro, a morte prematura da cria e, depois, a despedida simbólica da vitela) para sublinhar o modo emotivo como as crianças reagem e aprendem. Só aprendemos certas coisas quando nos investimos de corpo e alma. Só há aprendizagem com sofrimento. Pode parecer um lugar comum cristão, mas visto assim não é



Beasts of Winter (2011) de Nobuteru Uchida: 0
Vivemos numa era onde as facilidades técnicas proporcionam uma maior sensação de imediatez.  No cinema, muitos realizadores independentes deixaram de planificar os seus argumentos ou se os planificam tentam ao máximo causar impressões do imediato usando planos tremidos, close-ups repentinos ou iluminação natural. Esta sensação errónea de filmar documentado - que resulta de uma negação das capacidades miraculosas presentes no conceito de mise-en-scène - foi-se associando a produções com baixos valores orçamentais. Beasts of Winter tem todos estes ingredientes: sendo uma primeira obra é claramente low-budget e independente. Mas é-o no mau sentido, isto é, convence-se que a forma imediata e irreflectida como filma é sinónimo de uma maior intimidade arrancada aos seus personagens. E são supostas intimidades que o filme relata. Quatro colegas envolvem-se num "quadrado amoroso" e a traição e rejeição acabam por puxá-los contra a parede dos afectos irresolvidos: dois são amantes, um é mal amado e outra vítima de traição. Os quatro jovens actores fazem um trabalho razoável (já que a câmara foca-os exclusivamente) mas as imagens que traduzem os seus problemas são francamente medíocres. Nobuteru Uchida faz parte de uma geração que esqueceu a importância do plano-fixo ou dos movimentos suaves e que, provavelmente, não vê problema nas carências técnicas completamente saturadas no seu drama cansativo para o olhar (está por provar que conseguimos mais intensidade quando mexemos a câmara como um epiléptico) e até para os ouvidos (péssima gravação de som com composições de Beethoven pouco eficazes). Pode ser que só haja aqui um realizador a tentar lutar contra os óbvios problemas técnicos do seu budget, mas senti aqui uma estética irritante e deliberada, filha do seu tempo e obviamente equivocada quanto às suas pretensões.



Unforgiven (2013) de Lee Sang-Il: ***
Desde a descoberta de Akira Kurosawa no Ocidente, ficou conhecido o talento americano de fabricar remakes de filmes japoneses. Essa é ainda uma tradição mantida pela indústria dos milhões e se, por exemplo, nos debruçamos nos blockbusters deste ano damos de caras com, pelo menos, mais uma criação japonesa reimaginada por Hollywood - falo obviamente de Godzilla. Pois bem, o contrário é que foi sempre bastante mais raro. Dificilmente, uma produção americana foi transposta para o universo cinéfilo japonês, quer porque os realizadores não tinham grandes preferências por matérias estrangeiras quer porque o próprio público preferia ver "cada macaco no seu galho". Claro que com estas análises fáceis esquecemo-nos que a cultura americana - como boa cultura imperialista que é - é, porventura, a mais elástica e a mais camaleônica. É aquela que mais absorve e menos idolatra em stricto sensu. Naturalmente, Unforgiven do japonês de ascendência coreana Lee Sang-Il não pode superar o original de Clint Eastwood como The Magnificent Seven jamais pode equivaler-se aos Seven Samurai ou até mesmo A Fistfull of Dollars não ultrapassava Yojimbo. No entanto, a transposição em causa é inteligente o bastante para dar novas identidades e matizes aos personagens, mesmo que muito pouco ou nada de substancial se altere em termos diegéticos. Lee Sang-Il reitera a fusão antiga dos westerns com os chambara, alterando ligeiramente o agricultor Eastwood com passado criminoso pelo Ken Watanabe ex-guerreiro traumatizado na batalha de Sekigahara (o actor japonês tinha já trabalhado com o colossal realizador em Letters From Iwo Jima). Durante a película é impossível esquecer as referências, mas simultaneamente não podemos afirmar que o remake tenha perdido o charme e até a amargura do predecessor. Se julgarmos pela aparência e se não conhecêssemos o original, diríamos que o Unforgiven de Lee assentava perfeitamente na tradição japonesa: as cores, os sets, até a constante discussão tão badalada na época entre sabre e arma de fogo provam que a ponte entre os universos ocidental e oriental não foi forçada. Por outro lado, se há coisas que funcionam muito melhor na versão de Eastwood (muito importante: o vilão), não encontramos nada que seja desrespeitoso ou ofensivo nesta nova leitura. Portanto, Lee executa um remake polido como se fazia antigamente no cinema americano, isto é, muda a envolvência e a superfície, mas mantêm o espírito, a força e a matéria-prima da adaptação.



Before the Vigil (2013) de Isao Yukisada: **
A nova proposta de Isao Yukisada é difícil de classificar. Por um lado, vemos retomada a forma do seu anterior Parade, isto é, também aqui temos fragmentação dos vários enredos, sendo eles respectivos a cada personagem na esperança de os colar no mesmo e derradeiro fluxo narrativo. Só que se em Parade todos os episódios se aproximavam entre eles (eram vários contos intercalados acerca dos residentes no mesmo apartamento), em Before the Vigil, produção muito mais ambiciosa e com um cast desnecessariamente mais extenso, falta-nos coesão dramática. Não vos quero enganar: a direcção de actores é soberba e cada "segmento" visto isoladamente pode comprovar a qualidade quer da realização (de saudar a aposta exigente nos planos sem cortes), quer das interpretações em causa (maioritariamente femininas mas assistir a Hiroshi Abe é sempre um happening!). No entanto, insisto: falta homogeneidade no tom e na maneira como as histórias deviam encaixar umas nas outras. Quanto ao tom inconsistente, por exemplo, temos parcelas completamente contemplativas, outras bastante mais cínicas, outras mais humorísticas e alguns momentos (até mesmo personagens) que pouquíssimo trazem para a narrativa principal e que se arrastam por nenhuma razão convincente. Outro problema que não podemos deixar passar é a própria inutilidade que perpassa por toda a experiência já que Yukisada desenvolve uma quantidade infindável de personagens e pequenos episódios e jamais se atreve a concluí-los dignamente no desenlace (e não, não nos basta uma pequena montage final de trinta segundos a resumir mais de duas horas investidas e à espera de mais). Isto não quer dizer que Before the Vigil não seja um visionamento interessante, acima de tudo, pelas fortes prestações. Demasiado longo e desconexo, ter-se-ia ganho muito mais se, em vez de perdermos a atenção a cada nova personagem apresentada, as pudéssemos harmoniosamente integrar no mesmo plano e com o mesmo foco.



Kids Return - The Reunion (2013) de Hiroshi Shimizu: *
Passaram dezassete anos para nós e dez para Shinji e Masaru. A última vez que os vimos tinha sido naquele plano da bicicleta junto aos escombros da infância, súmula kitanesca dos jovens que a despeito de estarem condenados ao fracasso ainda assim bracejavam e tentavam outra vez. "Achas que estamos acabados?", perguntava Shinji meio derrotado. "Ainda agora começámos", respondia Masaru com um sorriso ambíguo. Esse final aberto podia ser interpretado de várias formas consoante a imaginação do espectador. Por um lado, poderia indiciar uma mudança fortuita dos destinos dos dois rapazes: daí o "Return" do título, eles regressam mesmo na adversidade. Todavia, a resposta misteriosa de Masaru e o final abrupto poderiam muito bem anunciar desgraças futuras e circulares que iriam ser respondidas da mesma maneira e com o mesmo estado de espírito. "Tentamos de novo?" Isto são tudo conjecturas, mas esse é o poder dos finais abertos. Takeshi Kitano sabia-o. Com eles podemos realmente saber qual o mundo construido pelo espectador e quais as ferramentas de resposta se subitamente lhe tirarem o tapete dos pés e lhe negarem um desenlace certo. Portanto, finais anfibológicos são péssimas receitas para sequelas, pois denigrem a relação de fantasia que o espectador inevitavelmente criou na sua imaginação para preencher a incerteza. Principalmente se a sequela - e já entrámos neste desastroso Kids Return "2" - The Reunion - não conservar o cast original e fornecer respostas fraquíssimas à pergunta: como continuar a vida de Masaru e Shinji? Dez anos passaram para eles e, infelizmente, Hiroshi Shimizu volta à caracterização do primeiro filme, nunca conseguindo dar a impressão que esse tempo passou realmente (no final do primeiro, os rapazes parecem bastante mais maduros do que no início desta penosa sequela). Masaru sai da prisão e continua envolvido com os yakuzas, já Shinji prossegue a sua malfadada carreira como pugilista. Os dois actores, Yuta Hiraoka, e Takahiro Miura, embora até se assemelhem fisicamente ao Shinji e Masaru de Masanobu Ando e Ken Kaneko jamais recriam o carisma e a química daquela relação. The Reunion está tão preso ao original e ao mesmo tempo tão distante dele que só à posteriori (e com a repetição superficial dos passeios de bicicleta) identificamos os personagens de antes. Na realização académica, na unidimensionalidade dos seus personagens e na incapacidade de continuar ou finalizar convenientemente aquilo que deveria ter ficado como estava, Shimizu não vai além do medíocre

13/05/14

Fragmentos de 2014/05/13



Duel at Yagyu Valley (1945) de Eizuke Takisawa: *
Conto sobre a espiritualidade na guerra, Duel at Yagyu Valley do pouco falado Eizuke Takisawa embora não tão agressivo como alguns dos seus predecessores ou contemporâneos continua sendo um produto do seu tempo. Pela sua reduzida duração (um pouco mais de 50 minutos) e pelas questionáveis (mas não menos presentes) tendências pacifistas - veja-se a última cena onde o aperfeiçoamento da arte marcial de Hozoin permite vencer o duelo sem deixar escorrer uma gota de sangue - podemos adivinhar que o ano de produção (1945) não é mera contingência. Do retrato ardente, bélico e competitivo de Date Masamune do filme de Hiroshi Inagaki em 42 à caracterização do espiritual Hozoin Kakuzenbo deste Duel at Yagyu Valley vão três anos completamente significativos para a história mundial. Em 45, a dúvida que recaía sobre a vitória japonesa no Pacífico era mascarada no cinema com um maior equilíbrio mental dos seus heróis (o regresso da batalha não exterior e expansionista, mas interior, esta última tão bem personificada na figura de Miyamoto Musashi), como se conseguíssemos antever nos jidai-gekis da altura a inconstância e as flutuações das projecções e mentalidade nacional. Estritamente falando, Duel é robótico, apressado e sem tempo para dar conteúdo aos seus personagens. É uma obra esquecida, com algum interesse histórico mas que decididamente não resistiu ao teste do tempo.



Big Shots Die at Dawn (1961) de Kihachi Okamoto: **
Sobre os seus primeiros filmes rodados na Toho, Kihachi Okamoto diria numa entrevista com Chris D.: "Eu estava muito contente porque sempre tinha querido realizar filmes de acção. Mas com esses primeiros filmes, eu senti que estava apenas a fazer o meu trabalho e não os apreciava assim tanto." Embora Big Shots Die at Dawn seja posterior a Desperado Outpost, o primeiro trabalho em que Okamoto, pelas suas próprias palavras, se sentiu Okamoto, a verdade é que ainda há aqui muitas semelhanças com as películas de gangsters que dirigiu industrialmente para o estúdio. Este sentimento de filme por encomenda nota-se na ligeireza do enredo e, principalmente, na maneira fácil e artificiosa como fica tudo resolvido no final. Como na maior parte dos noirs a que a Toho chamou Tales from the Underworld, Big Shots Die at Dawn inicia-se com um assassinato e todo o filme resume-se a um vai-e-vem entre dois gangues de mafiosos, a polícia e um protagonista perspicaz mas gozão (como quase todos os heróis de Okamoto). A trivialidade narrativa é compensada com a realização. Apesar dos defeitos e dos lugares comuns irritantes, cada plano encerra um festival de cores e nunca sentimos que qualquer enquadramento (por mais fugaz que surja) seja aleatório. Este é um caso paradigmático de como o estilo se suplanta a qualquer outra determinação e é muita a variedade de truques imagéticos e pantominas que se usam para jamais aborrecer a plateia. O ritmo apressado, néons a fazer sombra nos personagens, enquadramentos mais arriscados (destaca-se o plano aproximado como efeito cómico), ligação de espaços heterogéneos com o foque-desfoque, etc. Ou seja, percebemos, por um lado, a componente de ofício ligada ao desinteresse pela arte narrativa, mas não deixamos de notar a alegria quase infantil de criar ilusões e jogar com as convenções da imagem.



Bride of White Castle (1961) de Tadashi Sawashima: **
Com Bride of White Castle, Sawashima corrobora a assinatura que algures nestes escritos tinha já preconizado. Ao contar as desventuras de um bandido mascarado de senhor feudal e uma jovem demasiado cândida e pouco perspicaz que acredita na sua mentira, o realizador demonstra, mais uma vez, o gosto pela comédia dos enganos e por contos feudais que levemente parodiavam as diferenças da hierarquia social da altura. Talvez a única coisa que se destaca das fórmulas do costume são os cenários detalhados e alguns travelings mais arriscados para o tipo de produção em causa. Tirando esses detalhes, Bride of White Castle não é muito brilhante nos números musicais nem tão pouco consegue ser bem sucedido, lá para o final, na mistura entre comédia ligeira e dramalhão.



Seventeen Ninja 2 - The Great Battle (1966) de Morohiro Tori: *
Bastante mais desajeitado do que o primeiro capítulo realizado por Toshikazu Kono, The Great Battle tenta misturar o niilismo e uma certa aura de desencanto presente nos filmes de ninjas (daí o uso recorrente do preto-e-branco nestas produções) com uma série de lugares-comuns ou escolhas diegéticas que prejudicam a sobriedade e a negritude que tanto apreciamos neste género (e que chegou ao seu auge, por exemplo, num Ninja Hunt). Falo do romance shakesperiano de pacotilha (que opõe artificialmente dois ninjas apaixonados de dois clãs rivais), do desnecessário segmento onde o nosso herói (sempre com muito pouco carisma) mata o pai que nunca conheceu, entre outros momentos pouco consistentes e polidos. É este tipo de melodrama que faz de Seventeen Ninja 2 um filme menor mesmo com uma banda-sonora avant-garde muito satisfatória e um início poderosíssimo (aqule freeze-frame do começo).



The Orphan Gambler (1971) de Shigehiro Ozawa: *
Por volta de 1971 a fórmula ninkyo estava pela hora da morte. Se ao longo do anos 60, bastava explorar o mundo masculino (as irmandades desfeitas, o conflito permanente entre honra e humanidade)  para se fazerem bons filmes yakuzas, desde pelo menos a saga Red Peony Gambler, ou seja, desde 68, que os estúdios (principalmente a Toei) se encantaram pela personificação feminina da fragilidade dos dilemas desse mundo marginal mas com claras intenções de justiça popular. Na maior parte das vezes - e também neste Orphan Gambler - era Junko Fuji que ficava encarregue de interpretar essas mulheres yakuza com o mesmo equilíbrio de frieza e emoção que já encontrávamos nos heróis do género (Ken Takakura, Koji Tsuruta, etc.) . Contudo, a estrutura fíilmica nada diferia de um caso para o outro, ou seja, os ninkyos mais do que qualquer outro género são caracterizados pela repetição dos seus motivos narrativos e por uma declarada previsibilidade, quer sejam protagonizados por homens ou mulheres. Eram filmes que raramente prescindiam dos seus lugares comuns porque o seu público estava refém dessa familiaridade, num certo sentido desejava rever mais do que ver. Portanto, a repetibilidade não durou para sempre e teve o seu desgaste em 1972 com Red Cherry Blossom Family que reunia todas os actores que tinham contribuído para a popularidade do género e demonstrava a última celebração oficial de um estúdio, antes desse género cair no esquecimento. Até lá, uma série de filmes obviamente exaustos ainda conseguiam sobreviver, não obstante a sua falta de criatividade e uma capacidade para criar déjà vus incómodos. Com The Orphan Gambler passa-se exactamente isso. Por um lado, estão cá todos os ingredientes de um ninkyo: os conflitos de honra, a música enka, a propensão para o melodrama mais lacrimejante e uma cena final catártica onde o gangue maldoso é dizimado. Mas, por outro, jamais há qualquer factor de imprevisibilidade e todos os pontos determinantes do enredo são dados explicitamente de modo a sabermos sempre a direcção dramática de todo o filme. Sabemos que a personagem de Junko irá encontrar a sua mãe perdida, sabemos que o gangue rival não parará de atormentar os heróis até ser violentamente exterminado, sabemos que Koji Tsuruta - que parecia ter morrido no início - voltará para acompanhar o duelo final, etc, etc. Um filme cansativo de um género cansado.



Blue Christmas (1978) de Kihachi Okamoto: 0
Sejamos francos: a desmesurada ambição de Kihachi Okamoto é causadora maior da sua ruína. Não bastavam já os incontáveis personagens, cenas e situações completamente desnecessárias ao fio condutor narrativo - algumas dessas cenas tão mal filmadas que custa a crer ter sido Okamoto quem as dirigiu - e tínhamos ainda de engolir pretensões alegóricas, sem a agudez e a cautela das melhores distopias, sobre o mau génio humano, a emergência de novas formas de totalitarismo e, principalmente, a discriminação racial. Perpassa por todo o visionamento um sentido agudo de épico, quer na escala, quer na extensão da mensagem, porém, no final do dia são tantas as perguntas que ficam por responder (e sublinho, tantas cenas claramente a mais: o ritmo está morto desde o início) que apenas permanecemos num pessimismo de trazer por casa (equivalente à sentença: humanidade é lixo), sem qualquer satisfação convincente à fábula que se construiu e sem a robustez dramática que claramente se pretendia passar e se exigia. Blue Christmas é, por isso, constrangedor a vários níveis: em primeiro lugar, porque associa o nome de Okamoto a toda esta trapalhada, em segundo, porque Tatsuya Nakadai, um dos actores principais e um dos mais aptos da sua geração, bem se esforça em tornar interessante o seu personagem mas o que lhe é oferecido é escasso e insuficiente, e em último lugar, mesmo sendo a ideia de um holocausto alienígena remotamente perspicaz (e até é louvável nunca se mostrarem os extra-terrestres), o modo como essa ideia é executada corta pela raiz qualquer boa intenção que poderia haver. Em suma, um filme datado, dolorosamente longo e enganador quanto às capacidades cinematográficas do seu realizador.



Dream Crimes (1985) de Naosuke Kurosawa: *
A assinatura de um argumentista pode ser preciosa mas também pode significar a morte do artista. Em 1985, Takashi Ishii escreveu três argumentos para três roman-porno da Nikkatsu: Love Hotel, obra prima conciliadora de visões e assombros, Scent of a Spell, interessante transgressão de Toshiharu Ikeda sobre uma jovem em apuros e finalmente este Dream Crimes, com um tema caracteristicamente ishiiano, a saber, uma mulher hitman com um passado negro numa estrutura rotineira onde as imagens deveriam falar mais do que o conteúdo escasso. Pois bem, as obsessões do argumentista vão sendo organizadas numa parada consecutiva sendo até difícil esquecer a sua marca  ao longo de todo o filme: note-se a sequência dramática e muda torrencialmente chuvosa, o pendor onírico de certas sequências e, claro, a mistura entre a sujidade noir e um erotismo agressivo (aquilo que muita gente classificou como neo-noir). É caso para dizer que Naosuke Kurosawa, completamente abafado pela melancolia de Ishii filma as suas obsessões sem grandes significados ou revelações. Já vimos coisas muito melhores e muito menos avulsas e vazias.



August Without Him (1994) de Hirokazu Koreeda: ***
O cinema de Hirokazu Koreeda foi sempre um cinema subtil e intimista. Contudo, os seus documentários inaugurais por vezes podem parecer demasiado perseguidores dos seus protagonistas. August Without Him a par com Without Memory tratam dois casos médicos limite na procura pela "realidade" do sofrimento das suas vítimas. Seja na radical perda de memória em Without Memory ou no demorado desfalecimento do Sr. Hirata, o primeiro paciente japonês que publicamente admitiu estar infectado com o vírus da SIDA em August Without Him, a câmara de Koreeda capta a rotina difícil destas existências encostadas a um canto da sociedade e sem quaisquer esperanças de se curarem das doenças que padecem. São filmes paliativos no sentido de apenas tentarem minorar e informar sofrimentos inultrapassáveis cujos testemunhos, por causa do seu peso privado, não deixam sequer santificar ninguém ou fabricar mártires. No caso de Hirata, o narrador não se priva a classificar a sua atitude por vezes de egoísta e aproveitadora quando obriga a equipa de filmagem a fazer as mais variadas tarefas ou mesmo quando usa o formato de documentário para promover o seu caso. No entanto, Koreeda jamais culpa estas tentativas desesperadas de alguém que vê chegar antecipadamente o seu fim e necessita desesperadamente da companhia dos outros, da presença dos outros. Por isso, tanto esta solidão triste como a degenerescência gradual das suas capacidades (para além da magreza, a visão é severamente afectada) torna-se difícil de assistir sem vincularmos sentimentos de compaixão. Uma cena em particular avisa Koreeda que a sua câmara não pode captar mais esse corpo doente e é a pedido do frágil Senhor Hirata que a imagem vai a negro e somos informados do seu falecimento. A habituação à ideia da morte é posta em causa num testemunho comovente em que Hirata diz ter ouvido morrer os doentes que partilhavam o quarto com ele. "Fiquei assustado", diz ele. E nós assustados por ele e por nós.



Tokyo Skin (1996) de Yukinari Hanawa: **
O primeiro filme de Yukinari Hanawa é também um obscuro exercício sobre minorias étnicas perdidas na grande metrópole de Tóquio. Semelhante a Swimming With Tears de Hirotaka Tashiro - outro visionamento recente - , o cast é quase exclusivamente não japonês e a noite na grande e anónima cidade serve de palco ao rol de personagens que nela vagueiam perdidas. A abertura lembra-me os filmes noctívagos de Takashi Miike (o primeiro Dead or Alive, o multi-cultural The City of Lost Souls, etc.) pela maneira directa como aborda os ambientes transgressores e sujos da urbe negra e despersonalizada e como põe no centro da intriga os forasteiros sociais. Para além disso, uma certa dispersão não ajuda à constância emocional da película. Dos vários personagens, contam-se um emigrante chinês ilegal que cita máximas de Confúcio, um paquistanês ludibriado, um artista de rua mendigo, uma japonesa maltratada pelas comunidades marginais, etc. Tokyo Skin perde-se neste esquema de mosaico e apenas ficamos com momentos quase documentais pertencentes a personagens e vidas que dificilmente têm tempo e espaço nas películas sobre a opressiva cidade.