28/02/14

Fragmentos de 2014/02/28



Miniature (1953) de Kaneto Shindo: ****
"Miniature é o trabalho decisivo que me fez um realizador". As palavras são do próprio Kaneto Shindo que, num belo testemunho, classifica esta sua obra - e não Children of Hiroshima - como verdadeiro marco de carreira, constituindo, por assim dizer, a passagem de argumentista (ofício que o ocupava desde os inícios dos anos 40) a autor - e não metteur en scène, como já diferenciava Truffaut. Observemos mais duas passagens importantes que reforçam essa convicção: "Fui contra as tradições dos filmes de geisha. Construí pequenas gruas para mover a câmara em torno do quarto japonês. A beleza da arquitectura japonesa, com as suas portas deslizantes e assentos, consiste na sua simetria cúbica. Tentei quebrar com isso. Ginko vive nesse tipo de espaço. Quebrar com esse padrão significa aproximarmo-nos de frente para Ginko." Tão certeiras são estas palavras quando notamos a imensa expressividade da câmara, não só quando ela percorre os espaços (efectivamente, Shindo não quebra radicalmente com a disposição cúbica que fala) mas quando segue a geisha Ginko, de frente, loucamente apaixonado pela sua miséria e tremenda força, essa que é capaz de a levantar todas as vezes que caí e é enganada. Como é hábito nos filmes inteligentes sobre mulheres, os homens são sempre a causa da sua ruína. Miniature apresenta-nos três relações que representam o ciclo trágico do sofrimento amoroso (e são elas, cronologicamente, o choque, a tentativa falhada de reconciliação e, finalmente, o cinismo descrente) e em todas elas, Ginko saí como a maior vítima do mercado da carne, que a faz equivaler sempre a uma mercadoria facilmente vendível aos compradores - por mais que o tempo passe, ela terá de voltar as costas à casa que a criou e trabalhar como uma mulher, como carne. Esta denúncia feroz, sem qualquer tipo de fetichismo erótico nem possibilidade de enamoramento, é o que separa este Miniature dos filmes de geisha mais tradicionais. "Eu pedi o maior realismo possível aos meus actores e à minha equipa". É também esse peso do real que encerra a película: "Apenas diz o teu preço. Eu pago."



Ditch (1954) de Kaneto Shindo: ****
Foi uma paisagem particular que influenciou Shindo a construir esta tragicomédia sobre as peripécias dos residentes de um bairro da lata. Dizia-nos ele que o que via por entre as janelas do comboio todos os dias antes de chegar à sua recém criada produtora, a Kindai Eiga Kyokai, era a "melancolia da paisagem do pós-guerra japonês" e que se sentiu forçado a tornar real essa representação fina, disseminada no meio do quotidiano. Talvez seja por isso que Ditch tenha laivos de neo-realismo italiano: a pobreza e a exclusão social estão quase sempre ligadas a uma excentricidade existencial, e todos os habitantes do bairro exprimem-se através de um exagero nos comportamentos e uma visão do mundo em que só a patranha e o biscate têm cabimento. A componente cómica não é mais do que denúncia disfarçada. De repente, o país vencido esvaziou-se de ideais e tornou-se numa autêntica balbúrdia (desde a prostituição às negociatas pela aquisição de terrenos para construções modernas) onde as acções sem dignidade parecem ser bastante mais recompensadas do que todas as outras. Shindo não esconde a leitura a retirar deste frenesim moral: "O ser humano tem boas e más intenções. As más intenções excedem em número as boas intenções, pois são decretadas pelo instinto. Mas há também a vontade de praticar o bem. Poderás sobreviver se trabalhares mais do que os outros, mas não é fácil trabalhar no duro. Uma outra alternativa será meter-se no caminho dos outros para sobreviver. Ninguém pensará: «Eu estou bem com qualquer coisa, desde que os outros estejam melhor». Se há uma pessoa assim, chamar-lhe-íamos louco. No entanto, se todas as pessoas só se amarem a si próprias, então ninguém será capaz de resistir a este mundo". Esta equivalência entre bondade extrema (inconsciência de si mesmo) e loucura está bem presente na personagem central de Nobuko Otowa, Tsuru, que acaba por ser explorada pela gente da vala, precisamente porque não há nada que a possa incomodar, ela não tem amor-próprio. Curioso como Shindo trata a pureza de carácter de Tsuru: em vez de a tornar angelical (virginal, usando o poder fetichista do cinema a seu favor), filma-a como uma desvairada, uma selvagem sem qualquer tipo de inteligência. Até aqui assistimos a uma transfiguração da actriz como se ela tivesse de se sujar para mostrar uma autêntica limpeza e inocência de espírito. "Eu pensei que a maquilhagem dela (Otowa) era perfeita, mas os seus fãs ficaram furiosos. Pensaram que eu tinha destruído a imagem pura e inocente da actriz." Tsuru é à imagem e semelhança da paisagem desolada que assaltou a criatividade de Shindo: no meio da desolação há beleza, no meio do lixo, santidade.



Wolf (1955) de Kaneto Shindo: ***
Baseado numa histórica verídica, Wolf relata o assalto perpetrado por cinco cidadãos sem antecedentes criminais a uma carrinha de transporte com dinheiro. Forçados pela pobreza, o grupo age por necessidade, mas também por revolta. No princípio do filme, mergulhamos no processo de selecção de candidatos a vendedores de seguros, mais uma tentativa frustrada de conseguirem arranjar emprego. A competição é forte e o modo como os poderosos olham para os participantes, pessoas desesperadas cuja situação económica e social fez perder toda a dignidade e credibilidade, é realmente agressiva e denuncia um certo espírito das eras de crise, onde é rei quem tem olho na terra dos cegos. É também devido a esta cena que podemos dizer que Wolf traduz um caso raro e irónico de autenticidade no que à crítica social diz respeito. De facto, Shindo encontrou diversos problemas de financiamento, visto não ser um realizador contratado pelos estúdios e a situação monetária das companhias independentes não ser a melhor. A razão principal desses contratempos foi, todavia, o tema hostil da película mas em particular a dita cena dos vendedores de seguros. Quando propôs à Nikkatsu a leitura do argumento, Shindo relata que os encarregados ficaram chocados com a inclusão dessa cena. Rapidamente e sem grandes apoios, o dinheiro que havia foi-se esgotando com as rodagens e parafraseando o realizador: "os cinco assalariados roubaram por desespero, nós filmámos o filme com uma disposição semelhante". Percebemos a revolta que perpassa por toda a película mas simultaneamente o sentimento de impotência quando o crime é praticado e só resta esperar ser detido pela polícia. Da mesma maneira, a estreia de Wolf  foi má recebida pela crítica e pouco vista pelo público mas é nas alturas de crise que os valores sobrevêm e Shindo nunca iria prescindir da sua liberdade criativa apesar da indigência desses tempos, aqui tão bem capturados.



Travels of Hibari and Chiemi 1 - The Tumultous Journey (1962) de Tadashi Sawashima: **
Travels of Hibari and Chiemi 2 - The Lovebird's 1000 Ryo Umbrella (1963) de Tadashi Sawashima: ***
O tratamento injusto em relação à obra de Tadashi Sawashima foi compensado, ao longo do tempo, com elogios inesperados por parte de alguns especialistas e críticos. Lembro a minha incredulidade quando, por exemplo, Tadao Sato no estudo de referência "O Cinema Japonês", colocava no mesmo parágrafo Kihachi Okamoto, Shohei Imamura, Yasuzo Masumura e, adivinham, Sawashima. Parece um pouco exagerado comparar um realizador de comédias musicais hollywodescas às obras acima citadas, mas Sato persistia na comunhão de visões, salvaguardando diferenças óbvias: "na recusa do sentimentalismo característico do cinema realista, (esses quatro realizadores, cada um no seu estúdio) tentavam captar o homem com toda a liberdade e vitalidade." É caso para dizer que a comédia e o artificialismo espectacular que daí decorrem são provas absolutas de distanciamento do real: aqui o chambara não denuncia nem descreve, mas dança. Para Sawashima, a música é mais um aspecto da comunicação anacrónica da farça, tornando as coisas sempre dignas de espectacularidade cénica. Mas esta distância do real, que no caso é também alegre imprecisão histórica (quem é que sapateava e dançava charleston na era Edo?) não nos alheia da "realidade" que existe em todo o excesso e vitalidade humanas, antes pelo contrário. Tudo aqui tem de ser visto com um sorriso, porque tudo é motivo de festa e tudo é motivado por uma alegria efervescente e pouquíssimo contida. Nestes dois filmes com a diva Hibari Misora e a sua companheira musical Eri Chiemi, percebemos, finalmente, a comparação exótica de Tadao Sato. No primeiro, The Tumultous Journey, as duas amigas trabalham num teatro kabuki e após várias peripécias, acabam presas e decidem fazer-se à estrada, apaixonando-se as duas pelo mesmo homem. É um road-movie pitoresco repleto de cor, números musicais exagerados e um modo de apresentar as coisas próximo de um cartoon (veja-se o recurso humorístico à celebérrima melodia do Yankee Doodle). O segundo filme, The Lovebird's 1000 Ryo Umbrella, pode por vezes debruçar-se na saturação das emoções mas demonstra o gosto "autoral" de Sawashima na arte do disfarce e na comédia ligeira com toques sociais já que Hibari, a princesa, troca de lugar com a sua serva, Chiemi, desencadeando dois (des)encontros amorosos e abalando, por assim dizer, a hierarquia de classes. Parafraseando D. Trull, Sawashima "parece amar particularmente o tema das pessoas disfarçadas e socialmente invertidas, como samurais fingindo serem plebeus, cobardes fingindo serem heróis e camponeses fingindo ser nobreza." Decididamente um gosto carnavalesco de um realizador, em tudo, carnavalesco.



Song of the Horse (1970) de Akira Kurosawa: **
Este documentário desconhecido, emitido na televisão japonesa uns meses antes de estrear Dodes'ka-den, demonstra a admiração, pessoal e profissional, que Kurosawa nutria pelo vigor e nobreza dos cavalos. Nunca existe uma denúncia ou vitimização pelo uso humano desses animais - o documentário abre referindo a extrema importância que eles tiveram no passado, no transporte e no auxílio dos trabalhos rurais e presta-se, posteriormente, a filmá-los nas corridas e competições, como se fossem atletas olímpicos, graciosos e divinos. A presença possante e fascinante destes animais parece ter sempre referente humano, e é esta relação de amizade e trabalho entre as duas espécies que Kurosawa capta, deixando sempre tempo para vermos a liberdade irredutível dos cavalos nos campos selvagens, correndo e saltando. Diríamos até que a componente de domesticação é inegável, só que os humanos são uma espécie de mão invisível - igual a um realizador - que os orienta, doma e cuida. Pela primeira vez, Kurosawa deixa os humanos na paisagem e segue aquelas criaturas que sempre tinha filmado como extensão dos humanos. É curioso como as questões biográficas podem-nos dar uma nova luz sobre este documentário, o primeiro e o último do cineasta. Desde Red Beard, ou seja há mais de 5 anos que Kurosawa não filmava e a segunda metade dos anos 60 viu nascer uma quantidade de projectos abortados (entre eles, o caso Tora! Tora! Tora!) que despoletaram a depressão que motivaria a tentativa de suicídio do realizador no final de 1971. Dodes'ka-den é tido, hoje, como uma tentativa declarada de superar o pessimismo dessa altura (maioritariamente, através da imaginação que poderia vencer qualquer constrangimento do real, mesmo os mais profundos e materiais). Mas não será, portanto, esta entrega à bravura, rijeza e beleza não reflexiva dos cavalos um modo de também tentar contornar a tristeza e desilusão (demasiado humanas) de uma carreira à beira de desabar? Susumu Hani, quando se cansou da ficção, virou-se, como um asceta, para os documentários da vida animal. Kurosawa, com a sua candura de gigante, parece ter feito qualquer coisa de semelhante.



Stray Cat Rock - Beat '71 (1971) de Toshiya Fujita: *
Má maneira de nos despedirmos da pentalogia Stray Cat Rock (SCR) que, como tivemos oportunidade de referir noutro lado, representa a última tentativa da Nikkatsu produzir exercícios rebeldes de e com jovens, antes de exclusivamente produzir películas eróticas. A saga de cinco filmes começou por ser um veículo para a cantora Akiko Wada estrelar em cinema, porém a actriz secundária, a mítica Meiko Kaji, rapidamente substituiu o seu protagonismo nos episódios subsequentes. Cada instalação começa no famoso bairro de Shinjuku e os personagens, sempre variando de filme para filme, são inspirados por diferentes tribos urbanas da altura. Desde motoqueiros (SCR: Female Juvenile Delinquent Leader), beatnicks (SCR: Sex Hunter e SCR: Wild Jumbo), diletantes do psicadelismo (SCR: Machine Animal) até aos hippies (este SCR - Beat '71), parecia não haver maneira de não açambarcar as minorias que constituíam, todas juntas, uma maioria, a juventude forasteira dessa viragem de década. Toshiya Fujita, neste último capítulo, foge tanto à fórmula da série que acaba por descaracterizá-la, prescindindo dos pontos altos e conservando aquilo que podia ter sido alterado. Em primeiro lugar, a presença de Meiko Kaji é de tal maneira breve que a sua personagem é, em tudo, insignificante. Com isto, Fujita quis dar ênfase aos homens - e tanto Tatsuya Fuji como o quase estreante Yoshio Harada estão bem - mas essa escolha adultera a característica principal da série: a preponderância das mulheres no meio da acção. Por último, o filme acaba por se perder tanto no sentido de humor infantil e despropositado como no dramatismo vulgar e facilitista da última cena. Esperávamos bem melhor vindo de quem vem.



The Glacier Fox (1978) de Koreyoshi Kurahara: **
No final dos anos 70 e ao longo dos anos 80 o cinema japonês assistiu à moda dos semi-documentários animais. Talvez motivados pelo desenvolvimento crescente do médio em captar a rapidez e a imprevisibilidade da fauna, os realizadores japoneses sentiram sempre a necessidade de antropomorfizar a vida natural, conferindo-lhe emoções bastante mais fáceis de reconhecer e explicar a um público mais jovem (supostamente o público alvo: relembre-se que foi a Sanrio, a empresa de Hello Kitty, que produziu este filme). Quer existisse a presença efectiva de humanos (por exemplo, na relação dono/animal como acontecia em Antartica, também realizado por Kurahara, ou ainda no aclamado Hachi-ko) ou houvesse simplesmente uma narração que cozia os fragmentos da vida selvagem (como é o caso neste The Glacier Fox ou no polémico e alegadamente cruel The Adventures of Chatran), podíamos constatar a necessidade de contar as agruras da Natureza de um ponto-de-vista comovente, isto é humanizado, e quase sempre nestes filmes - e este não é excepção - assistimos à fatalidade dos animais sucumbirem à violência ou da lei natural, indiscriminada e amoral, ou da lei humana, excessiva e maldosa. The Glacier Fox é, no entanto, um filme datado. Prova disso são, não só as sequências musicais, números "pop" bastante distractivos e irregulares que pontuam o silêncio contemplativo do mundo selvagem, como também as condições precárias a que as raposas estão sujeitas, parecendo algumas dessas situações provocadas pelos humanos e não meros produtos neutralmente assistidos do registo documental. Não podemos negar o poder poético de certas imagens (a expressão de lenta agonia de Rera ao pôr do sol ou o confronto heroico de Flep com a neve no final) mas os defensores dos animais teriam aqui muito com que se queixar.



To the Bracken Fields (2003) de Hideo Onchi: ***
Já imaginaram o que seria Ballad of Narayama se a importância do olhar não recaísse no ponto-de-vista das gerações que abandonaram os anciãos progenitores na montanha agreste, mas estivesse esse olhar  sempre preso às condições de sobrevivência reais da geração para sempre abandonada e à espera de morrer? O veterano Hideo Onchi demorou um ano a filmar este duro relato de uma aldeia cujos preceitos tradicionais obrigam à deslocação de todas as pessoas que chegam aos sessenta anos para uma terra árida, longe casa, chamada Warabino. Em Warabino, o conjunto de velhotes aguarda a morte certa: lá quase não se alimentam e rapidamente a morte começa a instalar-se na comunidade situada entre o além e o aquém. Onchi não sexualiza tanto as coisas como Shohei Imamura, mas a mesma sensibilidade é comum aos dois realizadores. Tanto num caso como no outro, não há artifício ou nobreza, apenas uma quase animalidade, quase humanidade que se verifica ainda com mais força nas situações extremas e limítrofes como esta. A maneira como as sociedades antigas encaravam a morte (racionalizando as idades da vida, portanto, não sentindo a necessidade de conservar o seu último estádio) serve aqui para poéticamente nos devastarmos com a injustiça calada da fragilidade humana. Onchi, portanto, é aquilo que Pasolini chamava um metafísico-realista. Por mais paradoxal que possa parecer, é realista na intenção e crueza artística, mas metafísico porque não olvida, no meio dessa escatologia, as aparições imaginadas e os últimos sonhos dos pobres idosos. Basta ver a última cena do filme - a "guerra" de neve com os fantasmas sorridentes e as gargalhadas em off - para entendermos essa duplicidade esmagadora.



Walking with the Dog (2004) de Makoto Shinozaki: 0
Há anos que desespero para ver Okaeri, o filme que lançou Makoto Shinozaki nos anos 90 e criou, digamos assim, o estatuto de nova promessa entre os críticos. A dívida para com o estilo de Takeshi Kitano parecia ser clara nas resenhas sobre o filme e, de facto, Shinozaki chegou a realizar o romance auto-biográfico do comediante mais famoso do Japão, Asakusa Kid e ainda seguiu o mentor nas rodagens de Kikujiro, tendo acabado por filmar o seu making-off. Ora, depois destes projectos, a promissora iniciação do realizador começara a abrandar até ao ponto da estagnação (hoje em dia, Shinozaki virou-se para os insignificantes J-horror). Contando a história de duas existências desamparadas, a saber, um cão e um homem abandonados respectivamente pelos seus próximos, Walking with the Dog é demasiado aborrecido para ser minimamente interessante e é tão horizontalmente previsível na sua contenção formal (diria mesmo esvaziamento) que não vai mais longe do que um filme gentil de domingo à tarde, quer porque com a sua insignificância narrativa não ganhamos em atmosfera, quer porque não encontramos qualquer exigência de visão, qualquer ganho. E, por acaso, nada aqui nos ofende grandemente pela sua presença. A escolha do comediante Naoki Tanaka para o papel principal, umas cameos aqui e acolá do gangue kitanesco (Susumu Terajima, etc.) e ainda o facto de se filmarem animais demonstra a tentativa de tornar amigável toda a experiência. Tirando os poucos momentos propositadamente cómicos, o tom do filme não muda e quando muda é para pior. A gentileza inofensiva rapidamente faz-nos perceber que tudo aqui peca por defeito e não por excesso.



The Kiss (2008) de Kunitoshi Manda: ***
Num dos filmes anteriores de Kunitoshi Manda, Unloved, já tínhamos percebido o gosto em fintar o óbvio naquilo que era, mais na teoria do que na prática, um filme descrente no amor (quão raros são os triângulos amorosos descritos em arte que credibilizam a segunda relação a ser construida no triângulo?). Com The Kiss o equilíbrio entre a seriedade dramática, isto é, a economia nos gestos e nas palavras (até uma certa circunspecção estilística) e escolhas psicológicas insólitas deixariam antever um puzzle complexo de problemas e o perigo de se tropeçar nas próprias pernas já que o gosto de fintar é grande. Como se saí, então, Manda quando, sem pretensões comportamentais descarta a necessidade de explicitar os motivos que levam Kyoko, uma jovem rapariga, a corresponder e a apaixonar-se pelo assassino de uma família que nunca viu (e ouviu) a não ser por relatos e jornais? Como se saí Manda quando deixa incerto o perfil psicológico desse assassino, envolvendo-o quase sempre numa bruma impenetrável, distanciando-o de nós a toda a força? Sai-se bastante bem, pois tudo é fiel àquilo que já estava estipulado em Unloved, isto é, os personagens não são comidos pelo plot - não são seus fieis seguidores -, mas é a sua imprevisibilidade (diria mesmo, a sua insondabilidade) que os vai revelando e vai avançando a narrativa misteriosamente. Porque os homens são isso mesmo, misteriosos. Mesmo tendo uma particular aversão por twists que desvirtuam o seguimento natural do filme para apenas criar tensão em quem vê, sobre o twist de The Kiss - talvez demasiado artificial e repentino para algumas sensibilidades - diria que é a prova derradeira de como no cinema de Manda a relevância das coisas vêm de baixo para cima. A intuição, a comoção e o indecifrável vencem a causalidade, o racional, as palavras (e não era Mitsuko, a mal-amada em Unloved que dizia ao seu amante Hiroshi: "não deixes que as palavras te enganem!"?)

15/02/14

Fragmentos de 2014/02/15




Miyamoto Musashi - Duel at Kongo-In Temple (1947) de Daisuke Ito: ****
A par com os 47 Ronin, poderíamos dizer que a odisseia de Miyamoto Musashi foi - e é - uma das mais adaptadas não só para o grande ecrã, como para outros tipos de média mais improváveis (um exemplo a destacar é Vagabond, o manga longo e ambicioso de Takehiko Inoue sobre o carismático espadachim). No cinema, sempre houve a dificuldade em contar todas as aventuras do valente personagem e até à trilogia de Hiroshi Inagaki (oscarizada em 1956) e à heptalogia de Tomu Uchida (1961-1971), os argumentistas tinham de fazer escolhas sobre a parte da história que queriam contar e a que teriam de deixar de fora. Kenji Mizoguchi em 1944, talvez motivado pela eminente catástrofe bélica, escolheu o duelo final de Musashi e o arqui-inimigo Sasaki Kojiro e engendrava, em apenas uma hora, um clímax sem preparação, uma despedida épica sem qualquer princípio. É por essa razão que entrei nesta versão de Daisuke Ito (o pai do jidai-geki) com um cepticismo algo justificado. Como dar a Musashi aquilo que é de Musashi, ou melhor, como exprimir a complexidade de um personagem tão marcante se começamos in-media-res e acabamos in-media-res? Pois bem, rapidamente percebi que o carácter fragmentário da narrativa jogava a favor de Ito, aqui muito mais empenhado na forma do que no conteúdo, ou, como através da forma podemos exprimir largas intuições do que está em causa em termos temáticos. Logo numa das primeiras cenas, quando Musashi renega o amor de Otsu na ponte, podíamos achar que apenas o melodrama (distanciado e lacrimejante) iria imperar, já que essa é a primeira vez que no filme os vemos juntos. Como filmar uma despedida sem um encontro prévio? Ora, a câmara de Ito aproxima-nos do drama do casal somente através da câmara que, a cada fala de Musashi avança para Otsu como se lhe desse chicotadas. Um movimento destes coloca-nos logo na intensidade desejada, mesmo que nos falte informação sobre essa recusa. A incompletude surpreendentemente regala-nos com abstracção e a abstracção faz-nos compreender as coisas como se adivinhássemos o que está em causa.



Sex Zone (1968) de Masao Adachi: ***
Pelo que sabemos esta é a quarta e última aparição do personagem Marukido Sadao (japonização do célebre escritor Marquês de Sade) no universo criativo de Masao Adachi. Podemos estabelecer um paralelo psicológico (talvez psicopatológico) nessa tetralogia que poderíamos apelidar - e correctamente - da misoginia. The Embryo Hunts In Secret, realizado por Koji Wakamatsu mas escrito por Adachi, revelava sérias inclinações edipianas quando a amante aprisionada se sacrificava no altar da maternidade e Sadao desejava metaforica e literalmente regressar ao útero. Em Abortion e Birth Control Revolution, ambos realizados por Adachi, Marukido é um ginecologista interessado em separar a reprodução sexual do prazer e estandardizar, assim, a vida das mulheres, comparadas sempre a animais ignorantes. Finalmente, em Sex Zone - aparentemente o mais convencional dos pinks acima descritos - o nosso anti-heroi vai pulando de relações em relações, chegando sempre e de forma fatalista ao assassinato das suas amantes. O tema em comum destes bizarros contos é sadiano não na medida em que a transgressão radical é possível sem afectação, mas sim porque, tal como em Sade, não há violência sem ideal, não há acção sem imaginação. A verdade é que Marukido Sadao consagra o assombro do cinema pink - isto é, quando esse cinema não está interessado em propagar prazer - : relaciona sempre a repulsa e exploração da mulher concreta a um estado doentio de vingança abstracta, traumática ou real. Portanto, as inclinações surrealistas de Adachi que se traduzem em estados alucinatórios, puxam o erotismo para dentro da mente do protagonista e, desse modo, já não enxergamos o sucessivo extravasar do desejo na exterioridade - é isto o filme pornográfico - mas os limites dessas disposições no ideal que as condiciona.



The Morning Schedule (1972) de Susumu Hani: ****
Hani é certamente o cineasta privilegiado da nostalgia. Já o sabíamos: desde os primeiros documentários sempre lhe interessou o mistério da infância e os ritos de passagem que levam à transição de um estado de inocência para um de conhecimento. Várias vezes (e sobretudo no aterrorizador Nanami - Inferno of First Love) essa mudança trazia consigo mágoa, porém, o que constitui Hani como o cineasta da nostalgia é o facto de, primeiro, o seu cinema reconstituir, como uma obsessão, os momentos chave e primordiais da vida dos entes filmados e, segundo, projectar esses mesmos momentos como sacralização de uma memória reencontrada, mas ao mesmo tempo perdida. Ao recente ciclo integral da obra do cineasta, o Harvard Film Archive apelidou de "As If Our Eyes Were in Our Hands" e trata-se, efectivamente, de um título que ilustra muito bem o seu cinema e este filme em específico. Em The Morning Schedule, com efeito, os olhos das protagonistas estão nas suas mãos: a sua amizade, o seu passado, as suas paixões estão consagrados no universo poético dos 8mm enquanto o tempo real diegético situa-se no tom monocromo. A ideia do testamento em filme - que já estava presente no tremendo Oshima em The Man Who Left His Will on Film - ressoa também aqui. Por mais inocente, corriqueiro e caseiro que esse testamento seja (e Hani deixou os seus "actores" filmarem-se a eles mesmos nas sequências de super 8, retirando completamente a sua autocracia e controlo artístico), a ideia era destilar na ficção um pendor do real que não pudesse ser fingido ou mesmo encenado. Hani cria, por várias vezes, momentos de pura intimidade que escapam ao controlo canibal da câmara. Por isso mesmo, essas filmagens têm qualquer coisa de melancólico e inatingível - tal e qual como os personagens que olham para elas nostalgicamente -, como se celebrássemos a despedida, reencontrando-a, como se pudéssemos ver aquilo que há de real em toda a ficção.



Okinawa Yakuza War (1976) de Sadao Nakajima: **
Há somente uma razão para verificar Okinawa Yakuza War: Sonny Chiba! A sua interpretação explosiva e imprevisível e sobretudo a sua falta de medo em arriscar e exagerar, claramente confessando um over-acting estranhamente contagiante, ecoa a folia grind-house que o tornou tão popular, por exemplo, na saga Street Fighter. Ao longo destas longas guerras de yakuza - que replicam a estética então consagrada de Kinji Fukasaku, a saber, câmara fervilhante, enquadrada nas diagonais e os célebres movimentos em espiral nas cenas de acção - Nakajima, por constrangimentos narrativos, não aproveita a cem por cento a energia fulgurante de Chiba, a sua selvagem maldade, e executa, com pertinência mas sem grandes rasgos, o conto típico dos yakuza sem honra nem humanidade rebelando-se contra os seus superiores e desencadeando uma guerra entre gangues. Muitas traições e muita violência (irreal e sem quaisquer travões legais) robotizam a segunda parte da película, onde as várias execuções sumárias do rol também excessivamente grande de mafiosos acabam por tornar o desfecho previsível e até um pouco desinteressante.



Orchids Under the Moon (1991) de Takashi Ishii: ***
Se passarmos por cima de Angel Guts: Red Vertigo (1988), poderíamos dizer que Orchids Under the Moon - um straight-to-video rodado no mesmo ano de estreia do outro Takashi, Miike - é o primeiro filme que honra a assinatura de Takashi Ishii. Com isto não queremos ignorar a presença erótica em Angel Guts que flutuaria fantasmagoricamente nas outras criações da carreira do realizador e argumentista (infelizmente as suas últimas obras até se renderam ao óbvio instinto do pornógrafo), porém, aqui assistimos ao desabrochar de todas as obsessões temáticas e formais, mesmo que algumas delas estejam ainda num estado semi-embrionário. Portanto, o film noir à la Ishii nasce aqui e será daqui que partirão as subsequentes tentativas de reformular os cânones desse mesmo cinema. Original Sin, Night in The Nude, Red Flash, Alone in the Night, todos estes títulos partilham da mesma linguagem e nelas podemos encontrar um só percursor, Orchids Under the Moon. Veja-se a recorrência da noite e o personagem perdido nessa mesma escuridão, mas acima de tudo, o uso do plano-sequência para imprimir a mistura idiossincrática entre sonho e realidade. Para além do primeiro plano do filme ser todo filmado num falso e contínuo point-of-view, há ainda outro plano que dura cerca de 7 minutos (sim, eu contei!) em que o protagonista ferido alucina na sua cama enquanto imensas figuras irreais o vêm visitar, revivendo traumas e projectando desejos e ilusões. Há um jogo intenso de luzes, sons (a chuva está e estará sempre presente nestas febris sequências) e só depois regressamos ao suposta real. Mas não será exagero encarar as coisas filmadas por Ishii como sonhos vãos de noites angustiosas e aguadas. Tudo o resto (incluem-se aqui os gangsters, as armas de fogo, o filme noir ele mesmo) parece ser apenas um pretexto para chegarmos a estas imagens, ambíguas e fatais, poéticas na sua brutalidade.



Chinese Dinner (2001) de Yukihiko Tstutsumi: ***
Em 2003, o produtor Shinya Kawai lançou o seguinte desafio aos realizadores Yukihiko Tstutsumi e Ryuhei Kitamura: seria possível, no espaço de uma semana, apenas com dois actores e usando um local, realizar uma longa-metragem com pouco mais de uma hora? Assim nasceu o Duel Project, onde cada um dos realizadores era forçado, de acordo com as limitações prévias, a construir uma intriga, dar o mote para o duelo e escolher um vencedor. Mal sabíamos nós que dois anos antes de 2LDK (foi assim que se chamou a tentativa de Tsutsumi) o mesmo realizador tinha feito um exercício de estilo bastante semelhante ao que o produtor lhe tinha sugerido. Chinese Dinner antecipa, pois, a originalidade da proposta de Kawai e, à sua imagem e semelhança, usa apenas um local, maioritariamente dois antagonistas (a jantar) e cria uma tensão do princípio até ao fim pelo meio de truques de câmara, décors, ritmadas interrupções e até metáforas (lembro, logo no início, o plano aproximado do aquário, que ilustra bem a relação caçador/presa presente depois). Aqui faz-se muito com pouquíssimo e esse labor minimalista é de assinalar, mesmo quando todo o filme é devedor daquele lugar-comum (que pode irritar alguns) do "fala antes de disparar". O filme entretém, é dono do seu espaço e sabe o que está a fazer.



R100 (2013) de Hitoshi Matsumoto: 0
Falta-me latim para escrever sobre mais um falhanço - e que falhanço! - do cómico tornado realizador Hitoshi Matsumoto. Esta privação de palavras e paciência deve-se principalmente à forma como tem vindo a ser encarado o humor no seu cinema e com quatro filmes feitos - e apesar de todos aparentarem diferenças - podemos elaborar um retrato-robô daquilo que decididamente não funciona e devia ser deitado fora das suas criações abjectas. O retrato deixar-se-ia descrever assim: miscelânea de conceitos narrativos estranhos em que o protagonista se encontra perdido numa situação maior que ele, humor físico e uma propensão para fins inesperados (eu diria, cinematicamente alarves) onde o realizador dá aso ao absurdo facilitista (aquilo que na gíria da internet se chama um momento What the Fuck?), vendendo a todos os leigos a sua genialidade absurda. Infelizmente para Matsumoto, não caímos na esparrela do seu não-humor que muito remotamente tem uma ligação com aquilo que primeiramente o tornou popular na televisão, isto é, os Batsu Game: jogos que são punidos fisicamente caso as suas regras fictícias sejam transgredidas. Também aqui um homem é perseguido por dominadoras que de forma não programada o castigam, o atormentam e, surpreendentemente, lhe dão prazer. Alguma da metáfora social (a agressão absurda pode ser mais quotidiana e silenciosa do que imaginamos) perde-se completamente e R100, que passa mais tarde a ser um filme dentro do filme (com tendências idiotas de satirizar o sistema de rating de idades da indústria cinematográfica japonesa), fica a viver apenas do humor idiota que encontramos quando alguém escorrega numa casca de banana. Depois de canibalizar o plot e de entrarmos na aleatoriedade narrativa (repito: sem qualquer tipo de piada) apenas podemos baixar os braços como se estivéssemos a ser agredidos. "Matsumoto, Out"!



Miss Zombie (2013) de Sabu: **
A experiência de ver Miss Zombie podia ser descrita assim: juntem o Romero de Day of the Dead com o The Housemaid de Kim Ki-Young e não esqueçam nessa mistura um toque estético da nouvelle vague japonesa (o cinemascope óbvio e até um caso de alternância entre preto-e-branco e cor tão característico, por exemplo, do cinema pink dos anos 60). Sabu esforça-se em pôr em prática os seus conhecimentos cinéfilos para renovar o filme de zombies - um género tão irritantemente popular nos dias que correm - e, portanto, estavam todas as condições para assistirmos a algo de surpreendente e até de louvar, visto a falta de cultura cinematográfica que muitos realizadores japoneses parecem ter quando não aplicam nem aproveitam conhecimentos e experiências do passado. No entanto, narrativamente não há como nos relacionarmos com a exploração da rapariga zombie e a sua sucessiva revolta contra os humanos. O carácter fantástico e a mistura com um cinema mais íntimo e silencioso (que Sabu tinha levado às últimas consequências em The Blessing Bell) estranhamente torna distante qualquer relação afectiva que possamos ter com os personagens. É de lamentar, pois percebemos onde Sabu quer chegar e quais são as suas referências para tecnicamente construir um exercício robusto e bem filmado. A intenção está cá, mas falta alma.



The Ravine of Goodbye (2013) de Tatsushi Omori: ***
Os limites do perdão e a possibilidade de encontrar a absolvição (nem que seja moral) são os temas da derradeira obra de Tatsushi Omori, cineasta que aos poucos está a encontrar a sua voz depois de ter rodado contos negros em que a violência surgia sempre excessiva, inquestionável. Em The Ravine of Goodbye o interesse recaí nas chagas desses actos, que antes eram impenetráveis, e a questão agora é a seguinte: como é possível lidar, desculpar ou ser desculpado dessa violência que agride e que não sai impune, isto é, que deixa as suas marcas tanto na vítima como no agressor? Ao contrário de Whispering of the Gods e A Crowd of Three - filmes que propositadamente obscureciam os seus intervenientes para tornar os seus actos ainda mais difíceis de julgar ou perceber - este Ravine é, acima de tudo, um estudo de personagens, e um estudo de personagens honesto e claro. Em primeiro lugar, porque a prestação de Shima Onishi e Yoko Maki permite ver a tremenda complexidade das emoções aqui tratadas. Conseguimos, de facto, sentir as suas contradições - até a linha tênue que vai do amor ao ódio - através de expressões, mímica e olhares e raramente por palavras. Em segundo, a própria mise-en-scène de Omori nunca parece explorar ou condenar quem quer que seja sem antes ter tentado escavar na profundidade do coração. Na profundidade nem sempre encontramos beleza, mas é na aceitação da culpa, da fragilidade e da tragédia alheia que se cumpre todo o esforço da comunicação humana. Omori não sabe se é inteiramente possível tal acontecer, mas esforça-se para torná-lo realidade.

05/02/14

Fragmentos de 2014/02/05




One More Time (1947) de Heinosuke Gosho: ***
Parece haver uma constância histórica que molda a preocupação central das obras do pós-guerra japonês. Grande parte das vezes a trama é semelhante: o amor é separado ou impossibilitado pelo clima político difícil que reinava durante a Segunda Guerra Mundial. Com One More Time, Heinosuke Gosho alcançava uma tremenda popularidade e juntava-se a Akira Kurosawa, que no ano de 46 descrevia semelhantes misturas entre opressão e romantismo em No Regrets for My Youth. Apesar da roupagem política (até de uma inclinação comunista e de um certo repúdio, personificado no protagonista, pelas elites económicas) no seu núcleo, One More Time é um filme que destila humanismo: aquela palavra tão frequentemente usada quando descrevemos um cinema comprometido com o papel do homem e os seus afectos no meio de uma sociedade em convulsão e evolução permanentes. Arthur Nolletti bem o disse: "Mas o romantismo de Gosho não é somente um caso estilístico ou temático, como vimos, é também uma filosofia de arte e vida e um meio para um fim ainda mais elevado e nobre: humanitarismo." De facto, temos uma fusão bastante interessante - mas não assim tão original ou desprovida de determinismo histórico, como parecia afirmar Nolletti - entre as paixões puras e belas (não era Kinoshita que dizia: "Tudo o que é belo é verdadeiro?") e uma certa resistência do real que obriga os protagonistas a esperar e a serem fieis a eles mesmos. Filmado num comprido "flashback" recortado pelo olhar de um relógio - enxergar o tempo da separação - , Gosho não termina o romance nem na indeterminação, nem na tragédia fatalista (como Tadashi Imai faria no seu Until We Meet Again), pelo contrário, abre espaço para o reencontro prometido, como se todos os sonhos pudessem, ao fim de muito esforço e dignidade, ser cumpridos. Evidentemente, a mensagem chegava a bom porto para os espectadores de então, assolados pela memória ainda tão presente da derrota na Guerra.



The Blue Sky Maiden (1957) de Yasuzo Masumura: ***
Segunda produção de Yasuzo Masumura e primeira de várias colaborações com a diva da Daiei, Ayako Wakao, The Blue Sky Maiden foi descrito por Jonathan Rosenbaum - aquando de um enquadramento da obra do realizador por grandes temas - como filme sobre mulheres fortes e simultaneamente filme de juventude. Depois da sua estreia com Kisses, que mimetizava os famigerados Taiyozoku, filmes rebeldes sem causa originalmente escritos por Shintaro Ishihara, Masumura encontra nesta protagonista feminina um meio de confrontar a tradição (o meio rural onde ela vive e que é banhado por um céu fortemente azul - daí o título) e a modernidade (a busca pela sua mãe coloca-a na grande cidade de Tóquio, onde tudo é barulhento e artificial), mas este confronto jamais declina para a violência ou para atitudes mais selváticas e bestiais como acontecia na juventude filmada por Ko Nakahira num Crazy Fruit, por exemplo. A mulher em Masumura sempre foi mais robusta e interessante do que os homens - e aqui não é excepção. Rosenbaum, no artigo marcante "Discovering Yasuzo Masumura - Reflections on Work in Progress", tem razão quando aponta apenas a cena final como algo (que no futuro seria) distintivamente masumuriano e descreve o resto como estando enquadrado nas comédias românticas do seu tempo. Dizia ele: "Mas o que dá uma específica inflexão japonesa, e uma realmente transgressiva, é o clímax no qual Wakao culpabiliza o seu pai doente e fá-lo aceitar a responsabilidade de todos os problemas familiares." Essa cena, mesmo não sendo tão energética e psicótica como nos seus filmes posteriores, anuncia já as tensões que uma obra destas carregava e como uma dinamite se instalava, discretamente, nos filmes de estúdios para os fazer explodir.



Rebellion of Japan (1967) de Heinosuke Gosho: **
Arthur Nolletti Jr. termina o seu estudo sobre o cinema de Heinosuke Gosho, "Laughter Through Tears" com uma passagem extremamente certeira de Charles Dickens em Great Expectations: "Heaven knows we need never be ashamed of our tears, for they are rain upon the blinding dust of earth, overlying our hard hearts." Se é verdade que o cineasta japonês nunca esqueceu a sua propensão para o melodrama clássico sem pudores nem rodeios, também é certo que essa assinatura baseia-se nas possibilidades, se não redentoras pelo menos necessárias dessa expressão que estetiza e embeleza a impossibilidade, o desencontro e a tragédia. Em suma, há nas lágrimas a tradução máxima da humanidade. No entanto, pode ser que este Rebellion of Japan esteja mais datado do que, por exemplo, o desencanto sorridente e negro presente num Inn at Osaka - embora, tal como nos diz Nolletti, Rebellion terá de ser visto como a "última grande produção de Gosho". A razão para esse quase anacronismo é uma rendição ao óbvio que espelha um certo academismo, uma incapacidade de modificar as representações mais tradicionais e clássicas (como tinha feito, por exemplo, num Elegy of the North). A bela Shima Iwashita protagoniza uma mulher apaixonada por um jovem oficial, embriagado pelo espírito do seu tempo e crente nas teorias que estariam na origem do famoso Golpe de Estado de 26 de Fevereiro de 1936. Conseguimos perceber logo pelos primeiros sinais que a não concretização desse amor será uma certeza no resto da acção. O papel da mulher como alguém que se cumpre amando e o homem como aquele que vive dividido entre obrigação e emoção parece ser também uma consequência lógica, bastante trilhada por filmes do género. Excluindo uma certa teatralidade (originada pelas sequências bem filmadas de Noh), Gosho não aponta para além da competência melodramática (o uso excessivo de close-ups de Iwashita vai ao encontro de uma certa imediatez sentimental). Destaque apenas mais para a sensualidade da célebre cena da neve: quanto mais inatingível o desejo nos surge, mais ele é erótico.



A Woman In Revolt (1970) de Masao Adachi: **
A Woman In Revolt, penúltima agressão adachiana antes da entrega à causa palestiana e sucessivo afastamento da sétima arte traz consigo alguns problemas. Demasiado críptico e enevoado, é uma mistura de dois registos: por um lado, filme que relata dois homicídios e, por outro, exercício de estilo com propensão alegórica (se bem que sempre ténue e obscura). No seu melhor, é uma película com sequências assombrosas, mas que vistas na sua continuidade não conseguem reflectir bem a essência (é expectável que haja uma) do que se quer transmitir. Um sentimento de veneração e pasmo pela rijeza da figura feminina parece ser o denominador comum a todas as imagens, assim como uma componente mítica/tradicional (expressa na personagem da "bruxa" velha) dessa milagrosa e primitiva força. Os propósitos de Adachi são sempre arrojados e a sua cartilha sempre transgressora mesmo quando o reduzido orçamento e a sua necessidade constante de se rebelar (desafiando por vezes inconsequentemente os modos narrativos) seja um entrave.



The Fossil (1975) de Masaki Kobayashi: ****
Originalmente filmado para televisão, o sentimento que esta obra transcendia as limitações do pequeno ecrã levou Kobayashi a reeditá-la ligeiramente e transpô-la para as salas de cinema, trazendo consigo mais de três horas de duração. Faço minhas as palavras de Vincent Caby sobre este monumental The Fossil: "Kobayashi filmou-o como um romancista escreve. Ele fornece detalhe atrás de detalhe - por vezes visualmente, outras vezes nos diálogos, ou ainda através da voz de um narrador omnisciente - e fá-lo em tal alto grau que acaba por perfurar na superfície das coisas de uma maneira que nenhuma outra câmara convencionalmente consegue fazer. Isto leva o seu tempo. Para alguém apreciar The Fossil terá de estar atento a um realizador que não se preocupa em sorrir e dizer: "por favor". Não há tentativas de sedução". E como são verdade estas palavras! Esta experiência tem tudo de colossal e de épico, embora a sua origem televisiva a faça parecer discreta e pouco ambiciosa, pelo menos no que à forma diz respeito. Ora, como dizia Caby, a verdade é que Kobayashi premeia vários tipos de meditação, várias modalidades formais que encaixam umas nas outras e aprofundam um tema tão complexo como é o da morte: vejam-se os enquadramentos, a música (Toru Takemitsu, esse druida sonoro), voz-off das personagens, a voz-off do narrador (destaco como é raro uma narração ser tão literariamente perspicaz). O que para alguns parece ser ineficácia imagética (pelo facto de se recorrer tanto à palavra, narrada ou dita), para nós é um traço quase experimental de como várias linguagens (estritamente cinematográficas ou não) podem fortalecer e aprofundar a arte da narrativa, dividindo-a em vários trilhos. Aqui Kobayashi escreve como filma e filma como escreve.



Rape and Death of a Housewife (1978) de Noboru Tanaka: ***
À primeira vista, o título chocante e jornalístico (digno de manchete) deste filme de Noboru Tanaka devia apontar para zonas e disposições sensacionalistas, isto é, explorações indevidas e justiceiras sobre a criminalidade e crueldade humana. Os tiques de filme policial (por exemplo, cada vez que um personagem relevante surge, o seu nome é lentamente gravado na imagem como se fosse escrito numa máquina dactilógrafa) também aparentavam uma sórdida ficção, inspirada em factos verídicos - três jovens rapazes violam a esposa de um amigo mais velho - e que distribuiria culpas e representaria as coisas sob o ponto de vista da patologia, da monstruosidade e da brutalidade libidinosa (como Oshima fez no seu Violence at High Noon). Ora, Tanaka censura esta forma de filmar: para ele, a monstruosidade não é alheia ao homem, ela surge momentaneamente, quando menos se espera ou no seio das próprias relações sociais. Mas, podíamos categorizar esta forma de ver as coisas ainda como fantasista e perigosa, bem à maneira das filmografias "eróticas" que tendem a branquear a violência sexual e apresentá-la aos espectadores como, se não desculpável, ao menos desejável e atingível. A crítica japonesa da altura ao apontar Rape and Death of a Housewife como um filme sério e honesto não deixava de, nas entrelinhas, contradizer-se, como se Tanaka abrisse mão dos seus vícios de cineasta erótico para fabricar algo sem quaisquer condicionalismos, algo mais convencional e mais "sério". A verdade é que encontramo-nos sempre num espinhoso equilíbrio entre a estética vigente na Nikkatsu dos anos 70 e uma vontade de, sem julgamentos, pintar uma situação bastante mais delicada do que parece. O sexo aqui é filmado sempre como ritual masculino de grupo: seja nas conversas, seja nos actos ou nas tentativas frustradas ou desejadas de os efectuarem, os rapazes estão sempre a dirigir-se para os seus semelhantes. É um jogo, antes do mais, de socialização com os outros homens e só depois íntimo, com as mulheres. Neste sentido, pode parecer que se está a desculpar levianamente a brutal violação (filmada quase sempre num plano fixo realmente desconfortável), mas ao mesmo tempo, como podemos esquecer a complexidade da reacção do viúvo quando declara: "Eu apenas tive azar. Só isso." Esse sofrimento apático tem tudo a ver com uma não-vitimização mesmo quando se foi, de alguma maneira, vítima. Pode ser que os filmes eróticos tenham usado este raciocínio para suspender o choque dos actos neles praticados. Porém, aqui Tanaka apenas quer sublinhar as consequências devastadoras para a(s) vítima(s), criando dificuldades e uma obrigatoriedade trágica de realce.



The Cowards Who Looked to the Sky (2012) de Yuki Tanada: **
Sobre Yuki Tanada, diríamos que é quase impossível evitar o estatuto (muitas vezes abusivo) de "cineasta feminina", principalmente quando desde Moon and Cherry todo o seu corpus fílmico explora questões carnais com visceralidade e sem paninhos quentes. Desde já confessamos o preconceito, porém não deixa de ser inédito haver uma cineasta capaz de descrever a descoberta sexual, o fenómeno da vergonha e, claro, a diferenciação entre esfera privada e pública sem facciosismos sexistas. Em The Cowards, não há pontos-de-vista privilegiados, femininos ou masculinos. Há sim, multiplicidade, pontos de atracção e repulsa, desejo e vergonha, mulheres e homens encalacrados nas suas fantasias, tornadas públicas aos olhos sempre cruéis dos outros. Tanada, com efeito, executa um drama longo (talvez longo demais) onde a sexualidade é sempre problemática, principalmente quando os outros podem assisti-la. O tema da maternidade é recorrente e talvez aponte, metonimicamente, para a redenção, renascimento e perdão que os mesmos personagens necessitam para seguir em diante. Apesar, portanto, da envergadura do projecto, este é mais um caso de excessiva duração e outros pequenos desvios narrativos parecem estar a mais. Uma visitazinha à sala de montagem não teria sido nefasta.



Real (2013) de Kiyoshi Kurosawa: *
Sabe muito a pouco este drama inconsequente e erradamente apelidado de exercício "psicológico", apenas porque o realizador é Kiyoshi Kurosawa e a maior parte da acção narrativa se passa na mente de um casal, separado por uma tentativa de suicídio, que induziu um dos seus membros a um estado vegetativo, e misteriosos problemas do passado. Assim como já tinhamos visto em Penance, não parece haver o mínimo receio de misturar referências várias (horror onírico, ficção científica, romance, até o monster movie) numa embrulhada pouco ou nada coerente que salta de registo em registo (porque tudo é mental - justificação que serve ao filme, mas destabiliza a sua coerência formal) e vai tornando mais claro o drama (aparentemente tão intrincado, mas idiota de tão simples) deste casal. Valha-nos a sensibilidade estética de Kurosawa que constrói sequências ao seu estilo com imagens sempre misteriosas que quase nunca recorrem ao plano detalhe e projectam toda a sua intensidade críptica por serem declaradamente indefinidas. Ainda assim, esta componente atmosférica é completamente subtraída pelos diálogos escandalosos que sobre-expõem em demasia as reacções e os sentimentos dos personagens como explicam instantaneamente pressupostos narrativos sem qualquer preparação prévia. Não conseguimos, portanto, rever-nos minimamente no sofrimento e na urgência de cura deste casal. Mesmo o twist no final (que induz à estrutura já pouco original do "sonho dentro do sonho") surge demasiado imprevisível e irreflectido num filme cansado e prolixo.