30/03/15

Fragmentos de 2015/03/30



Okayo's Preparedness (1939) de Yasujiro Shimazu: ****
A cada nova descoberta cine-arqueológica, começa a ser criminosa a ignorância ocidental acerca do cinema japonês dos anos 30, principalmente a de um punhado de cineastas relevantíssimos que ainda hoje é como se não tivessem existido e exercido influência em toda a indústria, sobretudo, nos mestres do costume que tanta e demasiada reverência concentram. O que podemos esperar da massa crítica que só há pouquíssimo tempo descobriu a obra de um Mikio Naruse (que sempre esteve , como as Américas do Cristovão Colombo) e parece já estar satisfeita com a epifania tardia, agora que em vez da triple entente (Mizoguchi, Ozu, Kurosawa), afinal tínhamos um quarteto? Considerações críticas à parte, Okayo's Preparedness prova que a criatividade e o arrojo de Yasujiro Shimazu vão muito para lá do simples trabalho de estúdio e que a exploração dos sofrimentos femininos não é uma temática exclusiva nem de Mizoguchi, nem de Naruse. Habituado a um registo mais ligeiro de comédias quotidianas, Shimazu em pouco menos de uma hora esculpe a desilusão amorosa da professora de dança Okayo (sublime Kinuyo Tanaka!), que nem sequer chega a esse estatuto por responsabilidade do sujeito amado (o passivo Ken Uehara), mas pela sociedade que premeia os casamentos rápidos por encomenda, não dando tempo nem para os sentimentos maturarem, nem para os confessar devidamente. Através da resignação silenciosa de Okayo - e se bem que a situação narrada está confinada ao mais banal dos desencontros - Shimazu introduz uma segunda dimensão nos últimos quinze minutos que transfigura por completo a concretude, a actualidade e a contemporaneidade estética dos shomin-geki. Enquanto decorre o casamento do homem que ela ama, Okayo põe-se a dançar solitária no seu próprio mundo, enquanto somos transportados para um espaço abstracto kabukiano num tempo indeterminado. Bastavam-nos esses quinze minutos de expressão corporal dançada em que os décors e a presença dos pequenos diabretes ditam toda a simbologia, para conseguirmos extrair a densidade emocional de um primeiro amor obliterado pelo real (ou pelo destino que puxa a corda para trás a cada nova tentativa de aproximação). Será esta rêverie onírica uma demonstração de que o quotidiano esconde a profundidade de um mundo oposto, poético, ou simplesmente enuncia a transformação artística de um estado de alma que permite o consolo? Definitivamente, Shimazu segreda-nos: "a tristeza torna-nos sensíveis para o belo."



The Adventures of Kosuke Kindaichi (1979) de Nobuhiko Obayashi: ***
Uma nova incarnação do famosíssimo detective Kosuke Kindaichi e do seu fiel companheiro e rival, Inspector Todoroki, passa o tempo todo à procura de uma cabeça de estátua roubada, como se estivesse a querer recuperar essa parte do corpo humano que representa a sanidade, a racionalidade e bom senso. Ora, Nobuhiko Obayashi e os seus companheiros - dois anos volvidos daquela estreia abrasadora que foi House - parecem ter novamente prescindido qualquer atributo ou parte anatómica que metaforicamente representasse a ordem e a regularidade. O estilo radicalmente pop do realizador, tão pop que é mais experimental do que os experimentais, pode até não ter pés, nem cabeça mas é nessa ausência de fio condutor único e nessa negação entretida da coerência ficcionada (perdemos facilmente a conta de todos os momentos meta-cinemáticos) que encontramos um universo colorido, fragmentado e que pertence, sem tirar nem pôr, ao sonho acordado que a canção final, tão catchy como aliás é toda a banda-sonora funk e progressiva, faz alusão quando chama Kindaichi de "Mr. Dream". Na verdade, a incoerência propositada de Obayashi e a sua incrível capacidade auto-referencial poderá ser vista como desrespeitosa em relação ao legado clássico do detective, o equivalente japonês, tanto em termos literários como culturais, de Sherlock Holmes. Durante os anos 70, as aventuras de Kindaichi foram ressuscitadas no cinema por personalidades como Kon Ichikawa, que fez delas autênticos sucessos comerciais, ou até mesmo Yoichi Takabayashi, que assegurou a sobrevivência da, por essa altura, moribunda, Art Theatre Guild. Portanto, contrariamente às adaptações polidas dos seus predecessores (que eram muitas em 79) Obayashi não desejou filmar a típica narrativa whodunit associada à obra literária de Seishi Yokomizo, nem mesmo adaptar a dita obra mas antes criar de raiz um mito anacrónico (ou melhor deslocadamente seventies) onde todas a referências aos vários produtos culturais relativos a Kindaichi, e não só, inundassem o ecrã e fornecessem um insano e descontrolado sentimento kitsch de tributo: tributo cinéfilo (por exemplo, os Kindaichis interpretados por Chiezo Kataoka nos anos 40, projectados na tela diante o novo Kindaichi ou ainda a referência hilariante de Proof of the Man com Mariko Okada a fazer uma breve aparição), tributo autoral (a leitura e análise dos livros originais pelos personagens e pelo próprio Kindaichi, e aquela cena conclusiva em que vemos o próprio Seishi Yokomizo receber uma mala de dinheiro pelos direitos de autor da sua obra e claramente confessar para a câmara: "Eu não quis aparecer neste filme") e, finalmente, tributo do próprio ou obayashiano (com o realizador a lançar referências constantes à sua carreira publicitária - Mandom no fim de uma escadaria: lembram-se do anúncio com Charles Bronson?  - e cinematográfica, citando dois dos seus filmes anteriores: House num poster e If She Looks Back, It's Love num diálogo). O tsunami Obayashi (chamo-o assim pela incrível capacidade de condensação no plano, como uma onda gigante que nem o céu deixa ver) não se apraz em fazer um tributo asseado, com todas as coisinhas no seu devido lugar. Na acepção obayashiana, as despedidas têm de ser feitas precisamente por tudo se tentar e tudo se esgotar ao mesmo tempo (e como seria certeiro se o título fosse "para acabar de uma vez com Kosuke Kindaichi"). A estética irreal da referência e do questionamento induzem ao maravilhamento do fantástico e do sonho.



Disciples of Hippocrates (1980) de Kazuki Ohmori: ****
Durante dois anos consecutivos, Kazuki Ohmori (ou Omori, dependendo das transliterações) filmou para a Art Theatre Guild. O resultado foram dois seishun-eiga, filmes de juventude altamente apreciados pela mítica produtora que apostava também em novos realizadores: Disciples of Hippocrates em 1980 e, no ano seguinte, Hear the Wind Sing, este último baseado no primeiro romance do hoje célebre Haruki Murakami. Por esta altura, a estilística de Ohmori, cineasta que começou a carreira a rodar pequenos filmes em 8mm como Nobuhiko Obayashi, Yoichi Takabayashi, Sogo Ishii, etc, caracterizava-se por misturar algumas formas heterogéneas e estar sempre aberto para experimentalismos no que à imagem e à arte de narrar dizem respeito. O caso mais radical desta construção livre e deste gosto experimental comprova-se em Hear the Wind Sing, onde o realizador aproveitava o carácter disperso do romance homónimo para disparar em todas as direcções e renegar a ordem tradicional da narrativa, ecoando finalmente as palavras do mestre Godard (e posters da obra nouvelle vague de Godard aparecem nos décors de ambos os filmes): "uma história deve ter um começo, um meio e um fim, mas não necessariamente nessa ordem." Em Disciples of Hippocrates, já pressentimos esse gosto pela ordem da desordem (que aqui, felizmente para a experiência, ainda é só um presságio) mas o que ressalta mais é a atenção dada aos detalhes e aos personagens pequenos e secundários, que podem até aparecer durante meros segundos mas acabam por preencher a narrativa de segmentos coloridos (percorre os tons mais claros aos mais negros) e momentos que tornam rica e diversa a atmosfera juvenil de um dormitório de estudantes do último ano de medicina. Ohmori descreve a idade intermediária e problemática (não se é ignorante nem conhecedor, mas apenas discípulo) que se situa entre o fim da adolescência e a entrada no mundo adulto sendo que o hospital simboliza, acima de tudo, o local onde se reverencia, a contra gosto, a ordem estabelecida e se assume constantemente a ignorância e simultaneamente a habituação a esse mundo gélido e distante para finalmente integrá-lo (quando, porventura, se passar o exame final, esse monstro que desencadeia instabilidade emocional, todo o tipo de psicoses e a certeza que ninguém é muito diferente daqueles que estão na ala psiquiátrica). Entretanto, alguns dos estudantes sonham ser o protótipo do médico ideal (um poster de Red Beard de Akira Kurosawa está colado na porta do quarto de um estudante particularmente cinéfilo), outros ouvem cegamente os seus superiores (um deles, interpretado pelo genial Yoshio Harada, prega um ralhete dizendo que na medicina o essencial é a resistência visto que isso é a única coisa que resta a um estudante de medicina) e o nosso protagonista - mais apagado, como que perdido nos jogos de responsabilidade e expectativa - acaba por secretamente cometer o erro da sua vida para não cair nas más graças dos seus colegas e superiores. Disciples of Hippocrates fixa, melhor do que qualquer outro filme que conheça, as amarguras, a ansiedade e o medo de nos confrontarmos ou sermos aceites por uma instituição, que permanece muda e de bata branca, à nossa espera. Tendo em conta a invisibilidade latente desta agressão, Ohmori quer abraçar de braços bem abertos os agredidos, ou seja, os caminhos e as histórias desta geração à beira de um ataque de nervos. Filmando-a com grande afectividade pretende a partir daí construir um sentimento múltiplo de compaixão. Portanto, quando chegamos ao final, é evidente que o que observámos, sem nos termos apercebido, foi a luta nauseante de um processo de crescimento e como sucede em todas as lutas, uns sobrevivem e outros ficam no campo de batalha.



Kaisha Monogatari - Memories of You (1988) de Jun Ichikawa: ****
Uma das grandes revelações do final dos anos 80, uma época particularmente triste para o cinema japonês que via os grandes estúdios definharem pouco a pouco, foi a obra solar de Jun Ichikawa. Para os entendidos mas também para os mais leigos, é possível ver nas entrelinhas dos gendai-geki de Ichikawa uma revitalização de uma estética que remonta a Ozu e que com Ozu tinha ficado por explorar. Não tanto pelo género escolhido (os filmes sobre o tempo presente, sobre as famílias e sobre as rotinas diárias são uma constante nas cinematografias orientais, principalmente na japonesa: por isso muitas vezes é um exagero comparar tudo o que seja mais rotineiro a Ozu), mas muito mais pela abordagem que, a despeito das diferenças formais (e o formalismo ozuniano não pode, nem deve ser replicado sob pena de o parodiarmos ou travestirmos), encontra o mesmo núcleo comum, o mesmo terreno de aceitação ataráxica face às mudanças sociais, face ao fim das gerações e dos ciclos de vida, em suma, face àquele conceito tão difícil de apurar, no caso japonês: o conceito de modernidade. Na sua segunda longa-metragem, Kaisha Monogatari (literalmente traduzido por História do Trabalho) Ichikawa várias vezes roça uma descrição profundamente absurda e melancólica de um velho trabalhador assalariado que está prestes a reformar-se e olha para o seu passado de 30 anos na mesma empresa como um grande dia que rapidamente passou e nada mais permitiu fazer. Agora que a reforma está próxima, os sonhos pálidos e esmagados de liberdade (simbolizados pela presença do jazz, essa música da livre improvisação tocada por gente impertinente, como diz um dos colegas) e juventude (representada pela paixão platónica por uma nova trabalhadora) tornam-se mais vívidos numa mistura confusa de quem já vai muito tarde para desejar seja o que for. Esta tensão e mal estar silenciosos raramente são libertados, quer positiva quer negativamente, e muito menos de um só rasgo. Não há momentos estritamente determinantes que mudem o panorama aflitivo do nosso personagem: não há amores que o salvem, não há uma doença terminal, como acontecia em Ikiru, que acordava o sentido da morte e, por conseguinte, a necessidade de vida de um sonâmbulo funcionário público, um personagem porventura numa situação muito semelhante à do nosso salaryman em Kaisha Monogatari. A causalidade diegética, que fornece sempre grandes desenlaces e soluções, é interrompida por um fluxo que mantêm constante a tensão resolvendo-a progressiva e lentamente apenas numa aceitação silenciosa das pequenas e ínfimas coisas, que - muito importante - nunca são grandes coisas (isso seria um truque minimalista), mas que se mantêm sempre fragmentárias e sujeitas a interpretação. Isto é o traço ozuniano, o traço dos pequenos momentos enquanto pequenos momentos, que Ichikawa conseguiu transpor, não sem adoptar uma atmosfera mais opressiva, sinistra e mais moderna para convir melhor ao seu próprio tempo. Kaisha Monogatari é o retrato do Japão que Ozu temia e, porventura, vaticinava. Um lugar onde os sorrisos estão mais apagados e as famílias já se encontram completamente desintegradas e à deriva, um lugar mais solitário onde as relações no trabalho são mais proeminentes do que quaisquer outras. Na senda dessa representação nacional, que sentido dar aos momentos em que a câmara de Ichikawa se desvia dos seus personagens e filma as ruas da cidade e todo o tipo de locais ou multidões de pessoas, completos estranhos ao drama mas que parecem ter uma vida própria, apenas induzida e imaginada, fora dos limites da narrativa? São elementos centrífugos, tão centrífugos como a estética dos pequenos indícios que filma, apesar de tudo, nas alturas de um ponto-de-vista omnisciente, que concede a mesma dignidade a tudo e todos, exactamente como acontece no plano aéreo dos créditos, o plano divino que observa a cidade e todas as vidas em simultâneo por mais rotineiras e insignificantes que possam parecer. Ichikawa filma a vida como uma sucessão de momentos e movimentos. Sem a causalidade totalitária, que parece resolver por si só os problemas, resta-nos uma imagem viva do que é a vida para os que a vivem realmente: uma aceitação das pequenas tragédias e das contingências.



Okaeri (1995) de Makoto Shinozaki: ****
O sempre atento Donald Richie, um dos maiores entusiastas de Okaeri (traduzido no mercado inglês por Welcome Home, aquilo que se diz quando alguém chega a casa), escreveu assim: "O fantasma de Une Femme Douce paira na superfície deste filme e o espírito de Bresson está sempre por perto. Mas neste trabalho igualmente lúcido, a mulher doce vive e diz-nos que a vida estruturada não é a real." A comparação com o estilo bressoniano não é um mero capricho do respeitado autor: a austeridade, o laconismo e a ausência de pontos divergentes possibilita uma concentração rigorosa dos esforços e das intensidades, nesse momento onde através da máxima densidade formal é expectável que se atinja a maior libertação espiritual. E tal e qual como em Une Femme Douce, Makoto Shinozaki pinta os desenvolvimentos de uma relação conjugal, mas em vez de bordar pessimismo em toda a passagem de tempo que anula o projecto a dois (como fazia Bresson e Dostoievski no original), opta por revelar intimamente o lento e doloroso processo de uma devoção que não é obrigatoriamente produzida a priori por um sentimento amoroso, mas que se descobre, de etapa em etapa, de lágrima a lágrima, de necessidade em necessidade. Na esteira da geração dos cineastas de Moe no Suzaku, Maboroshi ou, depois, Eureka, Okaeri é um filme que esculpe o silêncio e dedica-se quase em exclusivo à presença corpórea dos dois amantes, pois as palavras são mera extensão da imagem: acompanham-na mas nunca substituem o seu poder fascinante. A câmara de Shinozaki - tal como a de Tsai Ming Liang num Vive L'Amour - também não se coíbe em ficar parada, pacientemente, à espera de um milagre comovente ou de uma epifania sentimental. Fique isso provado num dos planos mais comoventes, que dura cerca de cinco minutos - embora o tempo interior não possa ser contabilizado desta maneira -, onde Kitazawa cuida da alucinada Yuriko e juntos abraçam-se enquanto ela chora sem quaisquer defesas perante uma câmara que persistentemente tenta deduzir a interioridade a partir da mais exposta exterioridade. A descida psicótica de Yuriko poderia até ser mal-interpretada (e foi por Tony Rayns que falou de necessidades afectivas cruéis) como um dispositivo que reabilitasse a ideia velha e gasta do cavalheiro que salva sempre a mulher fraca, porém, Richie parece acertar quando descreve a narrativa nestes modos: "um casal jovem típico que volta à sanidade através da loucura da esposa". Na verdade, Okaeri deixa entrever uma representação de amor mútuo e de uma exclusividade e cuidado absoluto que subverte a lógica racional do típico casamento japonês. E sabendo que não haverá "depois da loucura", o que fica para ver? Uma pietà incrível e cheia de ternura, os dois amantes ao longe, uma árvore de esperança na areia negra, o mar inaudível e o "bem-vindo a casa" mudo, mas que finalmente ganhou todo o seu sentido.



Kizuna (1998) de Kichitaro Negishi: **
Kizuna (a tradução não oficial dá pelo nome de Bonds, vínculos) é um filme de gangsters atípico. Em primeiro lugar porque se serve dos denominadores comuns do yakuza eiga para desenvolver um drama intimo que pouco ou nada tem a ver com as questões primordiais desse género tão específico. Quando logo na primeira cena, assistimos a um rufia ser punido por outro yakuza quando o primeiro intimidava um casal numa zona que não era da responsabilidade do seu clã, não seria muito descabido esperar pelos típicos cenários de guerra entre gangues e todo o tipo de jogos de poder com um clímax sangrento. No entanto, ao ver o protagonista Tetsuro (Koji Yakusho) num estado meio letárgico (a vaguear pela cidade, a recolher as mensalidades de alugueres, e a ouvir insistentemente um disco de música clássica) podemos depreender o ritmo e o mood que Kichitaro Negishi escolheu deliberadamente para esta pseudo-descontrução. Isto prende-se com o segundo motivo da anormalidade de Kizuna enquanto filme yakuza: o seu vagar apático promete-nos uma revelação qualquer que não se chega a concretizar na totalidade. Não será necessário relembrar Sonatine e Ryuji, dois yakuza eiga atípicos que conseguiam, através da negação ou variação dos lugares comuns, criar autênticas representações livres de constrangimentos e dissimulações onde "o outro lado" do género surgia com uma força comovente, poética e real. Mas em Kizuna, o ritmo pausado dá lugar a uma problematização do passado, um protagonista que encara o papel de mártir e uma investigação policial que decorre ao mesmo tempo e que, infelizmente, parece pertencer a outro filme. Mesmo a inconsistência das interpretações reforça a mesma ideia de desfasamento entre ideias e intenções: por exemplo, Koji Yakusho balança entre a monotonia e a comoção e Ken Watanabe, como polícia, é um pouco mal aproveitado. Os últimos quinze, vinte minutos são bastante emocionais (e Yakusho prova que, a despeito da confusão, é um excelente actor), mas não deixam de estar um pouco perdidos num todo que é mais desconexo do que parece.



Genpin (2010) de Naomi Kawase: **
Naomi Kawase filma sobretudo documentários pessoais onde, não só os temas abordados são preocupações que lhe dizem respeito (a maternidade, a relação originária com o mundo natural, o poético no prosaico: preocupações autorias, poderíamos dizer) como a própria câmara, como aliás afirma Arnaud Héé no vídeo introdutório no DVD de Genpin, assume uma extensão da própria realizadora, flutuando sempre uma presença de um "eu" que não se esvaí, mas observa, regista e participa nos temas filmados. Após o intimismo polémico de Tarachime, onde Kawase filmava o parto do seu próprio filho de maneira despojada e, alguns diriam, exploratória, Genpin retoma a temática da maternidade à flor da pele, documentando o ofício desgastante de Tadashi Yoshimura, um velho obstetra que utiliza métodos naturais para acompanhamento da gravidez e defende um parto sem qualquer intervenção hospitalar, o mais natural possível. O documentário dedica muito do seu tempo a ouvir os depoimentos das mulheres que procuram este método alternativo, quase sempre confessando más experiências passadas com a medicina moderna e criticando principalmente as cesarianas. Valorizam as lágrimas, a entrega primariamente simbólica à natureza do parto e fazem-no em pequenas reuniões e encontros, expressando-se (perante a câmara ou perante Yoshimura) em grupo. Se por vezes os relatos perante a câmara podem assumir uma dimensão de reportagem que poderia ser mais contida, a verdadeira intensidade reside nas cenas de parto em que vemos surgir, diante da câmara, esse aparelho de superfícies, uma transfiguração mística dos rostos, dos corpos e das vozes como se as mães fossem só uma mãe e se desligassem da sua individualidade, morressem e depois renascessem com um bébé nos braços. Genpin representa, finalmente, a busca de Kawase em fixar a intimidade e especificidade feminina, talvez pretendendo recuperar o processo pessoal da mãe que mal conheceu.



My Man (2014) de Kazuyoshi Kumakiri: ***
Kazuyoshi Kumakiri tem um dos percursos mais interessantes do cinema japonês contemporâneo, onde faltam não só vozes distintas que rumem contra a estandardização mas também a coragem que marcava as cinematografias de outrora. O polémico My Man continua o trilho autoral obsessivo da representação de locais e pessoas inconsoláveis, usando uma situação em tudo sensível para abrir bem o espectro do desconforto e quiçá abordar a questão de um ângulo bastante diferente e chocantemente (tendo em conta os nossos códigos sociais) mais desafectado. Começamos nos destroços: Hana (Nikaido Fumi), uma menina de dez anos sobrevive a um sismo violento e descobre num abrigo de refugiados que toda a sua família foi dizimada. Lá encontra um homem nos seus vinte e muitos anos que a decide estranhamente adoptar e preencher a função do pai ausente. Jungo (Tadanobu Asano) não é um homem qualquer e também ele não tem raízes nem laços que o apeguem a esta terra. A sua presença dir-se-ia sinistra se não fosse a réstia de dúvida que nos faz acreditar na sua humanidade. E, em rigor, Kumakiri acirra as dúvidas quando às questões humanas mesmo quando as acções desta paternidade encenada e improvisada rompem pelas costuras e se instala uma perturbadora tensão sexual, apenas consumada naquela tenebrosa cena onde metaforicamente sangue jorra e enche toda a casa, como se o acto sexual entre pai e filha marcasse o início do pecado e o fim literal da inocência. A partir daqui, My Man enegrece cada vez mais e cada vez mais vai apontando para o rasto de dor e destruição que uma relação destas (mesmo consentida por ambos) suscita e sugere. Para um espectador comum, todavia, Jungo será o abusador e Hana, a abusada, mas uma leitura mais atenciosa da cena final (e de outras que já nos vinham preparando para tal desfecho) diz-nos que nada é assim tão preto no branco. Os últimos minutos até relembram as palavras de João Bénard da Costa sobre o final refinadamente ambíguo de Él de Luis Buñuel: "Aos ziguezagues, é talvez a súmula e a soma desta obra (...), que nos impede qualquer certeza: quem são os "normais" e quem são os "anormais"; o que é deformar a realidade ou o que é conformar-se a ela? Que valores (psicológicos, morais ou estéticos) presidem a este universo?" De forma pertinente, suspendem-se os julgamentos de valor mais imediatos e corrosivos e ficam as seguintes questões no ar: "quem exerce o poder na relação? Quem é o abusador e o abusado: serão os dois ou não será ninguém? Será o poder provocante do sorriso de Hana uma ilusão de um psicótico decadente ou é precisamente essa a razão da degenerescência e da queda de Jungo? "Invertendo-os todos," Kumakiri "conduz-nos à negação da negação", diria Bénard e subscreveríamos nós logo a seguir.

11/03/15

Fragmentos de 2015/03/11



A Woman Crying in Spring (1933) de Hiroshi Shimizu: ****
"Este tempo suspenso, este espaço fora do mundo, ao mesmo tempo confinado e cheio de recantos, esta penumbra luminosa, as conversas de costas para a câmara (...) estas personagens com olhares intensos que pouco se entregam: tudo isto participa na epifania de um universo que se inscreve fortemente no ecrã e na memória do espectador." As palavras não são minhas. Retiro-as de uma crítica de Claude Rieffel que se esforça em replicar a atmosfera particular deste A Woman Crying in Spring, o primeiro filme sonoro de Hiroshi Shimizu e aquele que granjeara os maiores elogios de Yasujiro Ozu aquando da sua estreia. O lendário realizador estimava tanto o filme que via escrito nele, pela primeira vez (?), novas possibilidades da tecnologia sonora na construção narrativa, especialmente na forma como os silêncios, as canções e os barulhos distantes preenchem dramaticamente uma cena. Na verdade, A Woman Crying in Spring não contêm apenas ensinamentos sobre o uso  do som e as suas ramificações, mas é também um tratado sobre iluminação (ou os jogos de luz que existem na sua carência) e sobre filmagem em exteriores. Shimizu, portanto, colocou esta história de mulher(es) melancólicas na distante, glacial e invernosa (a Primavera, e tudo aquilo que metaforicamente representa, só existe mesmo no título) Hokkaido, um local onde mineiros e anjos caídos se encontram. A primeira cena num barco discrimina a disposição geral da película: homens que nada têm a perder preparam-se para aceitar um novo trabalho num local isolado, acompanhados por uma pequena criança e um conjunto de mulheres que, estando exactamente na mesma situação dos mineiros, vão para a terra de ninguém. Os sons de Hokkaido são sons de abandono (os sinos dos cavalos, um barco que apita lá ao fundo, nem se sabe onde), as paisagens ainda mais desoladas são (neve que caí, a que permanece no solo, a escuridão da mina) e os espaços privados quase sempre públicos (o dormitório colectivo dos trabalhadores e o bar onde homens e mulheres travam e aprofundam conhecimentos de si próprios). Nesta atmosfera gélida, Shimizu adapta a câmara aos seus locais, arranjando sempre novas maneiras de transfigurar as imagens e tornar sempre presente a componente natural e genuína dos seus cenários (por exemplo: impede parcialmente uma luta de ser vista por um barreira de neve). Mas talvez a cena mais pungente e a que muda completamente as coordenadas da narrativa seja a final: quando a dona do bar e mãe da única criança, uma personagem que não poderíamos dizer ser a principal até então, sacrifica a companhia do protagonista masculino e aconselha uma das suas empregadas, Ofuji (a rapariga que chorava no navio) a fugir com ele. Nessas últimas sequências de fuga, nem o mineiro nem Ofuji aparecem mais (e já antes tinham os dois ficado completamente na penumbra de um quarto, incapazes de se verem e serem vistos por nós). A câmara, na contramão da expectativa do espectador, insistentemente filma o rosto desencantado da dona do bar acompanhando o homem que procurava o mineiro e distraindo-o com canções e álcool. Aqui, a intensidade de Shimizu (que é a intensidade da contenção) atinge o seu paroxismo: a tonalidade das canções (primeiro a dela e depois as dos outros no background) é completamente esborrachada pelo contexto em que são cantadas. Da mesma maneira, o som do navio a partir (sem sabermos se a fuga dos dois amantes impostos foi realmente concretizada) funde-se melancolicamente com a luz sombria do quarto e o choro triste e resignado da mulher. Uma janela ao vento e à neve. Só assim poderia terminar este filme de almas sem dono.



The Adventure of Tobisuke (1949) de Nobuo Nakagawa: **
À primeira vista, The Adventure of Tobisuke poderá parecer um devaneio precoce na filmografia variada, mas com o horror a assumir género predilecto, de Nobuo Nakagawa (Nobuo e não "Nabuo" como António Rodrigues escreve, por duas vezes, na sua folha da Cinemateca). Uma história filmada por sketches, como se fosse um livro de ilustrações infantil, deixa Nakagawa explorar as potencialidades da linguagem e dos trejeitos caricaturados à Looney Tunes (veja-se logo o gag inicial do esconderijo fora de campo que por ser assim é-o também dentro de campo) mas com forte inspiração folclórica, encenando uma história que têm tanto de grotesco como de moral. O marionetista Tobisuke encontra uma menina que se perdeu da mãe. Após a salvar de um oni que a queria comer, Tobisuke perde a capacidade de contar números, o que impossibilita o seu trabalho itinerante como animador de crianças. A menina e o adulto abonecado (interpretado por Ken'ichi Enomoto, uma das grandes estrelas cómicas japonesas dos anos 30 e 40) viajam por várias terras na esperança de encontrarem a mãe perdida e um fruto com poderes mágicos (a magia da vontade, como diz a menina) que restituísse a memória ao marionetista. Narrado em off por um contador de histórias que se dirige abertamente ao público, The Adventures of Tobisuke aos poucos vai misturando, com alguma imaginação, o mundo infantil e naif de um road-movie feérico com o imaginário do terror mais subliminarmente adulto. Saltando de situação em situação e de perigo em perigo, os nossos dois heróis vão penetrando nos cenários mais tenebrosos e ominosos, quase sempre batizados com nomes sugestivos em que a palavra morte aparece mais do que uma vez e onde travam conhecimento com criaturas amaldiçoadas (a rainha das aranhas, uma mulher assassina, os onis) que inexplicavelmente procuram sempre a carnificina, a intimidação e a violência. Desde os décors surpreendentes (que assumem o traço forte e carregado de pinturas infantis com formas e vegetações que parecem ter saído de quadros surrealistas) a um ou outro efeito especial de destaque, eis que Nobuo Nakagawa encontrava, até na mais inocente das histórias, todos os ingredientes da estética do horror à japonesa que desenvolveria posteriormente na Shintoho durante os anos 50 e 60. O final feliz e simples (raramente os finais são a coisa mais interessante nos contos infantis) poderá ou não esconder uma segunda leitura. Relembre-se que apenas quatro anos tinham passado após a derrota japonesa na Segunda Guerra Mundial e as palavras do narrador ("Eles chegaram são e salvos porque nunca duvidaram deles próprios") assumem uma outra dimensão se as transportássemos para o próprio povo japonês que na altura ainda estava sob domínio e influência americana. Seriam os americanos os demónios que não deixam ver a mãe tão desejada e redentora debaixo do Monte Fuji, símbolo tão nacional como o sol nascente? Qualquer interpretação desta espécie é supérflua, no entanto, encontramos dificuldade em não cair em tentações simbólicas.



The Crowded Train (1957) de Kon Ichikawa: ****
Há muito que esperava pela oportunidade de verificar as comédias de Kon Ichikawa: autênticos marcos do género, pouquíssimo vistos, mas bastante reverenciados pelos especialistas. Graças à Cinemateca, que este ano resolveu apostar nas Comédias Japonesas (como se não houvesse decisões mais criativas de programação, tendo em conta a variedade esmagadora da cinematografia japonesa), tive o prazer de finalmente conferir The Crowded Train, uma vertiginosa descida ao mundo infernal da empregabilidade jovem com uma concepção bastante peculiar de humor negro. Resta saber se as outras comédias do realizador pertencem a este registo tão satisfatório (falo de Mr. Pu, A Billionaire, The Woman Who Touched the Legs, etc.) mas não deixa de ser estranha a quase total ausência deste filme do catálogo da Cinemateca de Ontario editado por James Quandt. Também no famoso texto de Donald Richie, "As muitas facetas de Kon Ichikawa", The Crowded Train não figura em nenhuma das duas listas de filmes (clareza/ escuridão) nas quais, segundo o próprio autor, se comporiam e definiriam as duas únicas tonalidades da sua obra. Com efeito, Train não é luminoso o suficiente para podermos rir, totalmente ausentes da crítica mordaz que se desenrola à frente do nosso nariz, nem tão pouco apresenta uma negritude forte o bastante para desesperarmos. O humor e a crítica hiperbolizada (e o hiperbólico é quase sempre desesperante, não é preciso ler Kafka para sabermos) balançam um no outro e criam tensões admiráveis, percursoras da obra de um Ko Nakahira, mas principalmente de um Yasuzo Masumura (que em 57 tinha acabado de iniciar a sua carreira como realizador no mesmo estúdio de Ichikawa, a Daiei). Raramente se atribuem sucessores à obra de Kon Ichikawa maioritariamente porque, tal como o próprio enunciou várias vezes, participou em todo o género de filmes, no entanto, não é arriscado considerar The Crowded Train uma inspiração confessa do cineasta Masumura que, ao longo da sua carreira, iria abordar o mesmo tipo de comentário social com a mesma agressividade simbólica e o mesmo horror pela massificação dos comportamentos numa sociedade sem travões à beira da caricatura e da psicose. Ele mesmo diria num texto deveras elogioso apelidado "O Método de Kon Ichikawa": "Os enquadramentos de Ichikawa habitualmente expressam ou apontam para algo mais. (...) Não será embaraçoso e patético apresentar o drama humano usando exclusivamente um realismo directo? Ichikawa não representa o humor, a ira, a tristeza e a alegria da humanidade com toda a sua crueza, mas pelo contrário, observa-a com um olhar irónico e distanciado, sublimando-o através do simbolismo, portanto conferindo a todo o trabalho uma beleza unificada. De que maneira podemos falar de simbolismo e ironia nesta paródia visceral? Vejam-se, por exemplo, os sucessivos discursos de encorajamento dos responsáveis pela formação daqueles que sairão de uma jaula para entrarem numa ainda maior. O discurso de graduação à chuva (incrível mau agouro para o que virá a seguir) faz um círculo perfeito e cáustico com o discurso final para as crianças incrédulas (ainda não susceptíveis de conformação ao mundo das mentiras adultas) que assistem às mesmas palavras esperançosas que não coadunam com a realidade selvagem e precária que circunda todo um país. Tamio Moroi, o jovem licenciado que inicia a sua viagem no mundo das obrigações adultas despedindo-se das suas amantes com uma terrível dor de dentes (que se arrasta, mas permite uma dolorosa adaptação), mistura-se com as multidões a perder de vista, no comboio lotado, nas ruas, na fábrica de cerveja (dois planos contrastam o magote com um conjunto empilhado de garrafas), até nos momentos de relativa descontração como uma visita às lojas da baixa, onde ninguém compra nada e toda a gente apenas se limita a ver o que poderiam ter através de um vidro. Os espaços privados são igualmente constrangedores e desolados. Ichikawa parece atribuir também um significado metafórico às doenças corpóreas e mentais. As sucessivas visitas ao médico simbolizam o mal estar geral que vai apoderando as forças inconsequentes dos trabalhadores, já a loucura dos pais de Tamio (acontecimento que muda radicalmente a narrativa para o delírio fantasista) parece apontar para a degenerescência das gerações mais velhas que acreditaram e fomentaram piamente este sistema não menos louco do que as suas ilusões. A extensão da crítica vai obviamente bem longe: o Japão é o verdadeiro comboio lotado, demasiado lotado para sonhos e aspirações individuais que não estejam profundamente inseridas numa lógica de empregabilidade fortemente demarcada, vitalícia e esclavagista. Trabalhar, trabalhar, para desaparecer sem deixar vestígios.



Did You See the Barefoot God? (1986) de Kim Soo-Gil: ****
Ao lado de nomes como Koichi Goto, Hojin Hashiura, Asai Shinpei ou ainda Juro Kara, Kim Soo-Gil pertence ao mesmo conjunto de cineastas que não conseguiu escapar (ou se alguns escaparam não foi sem francas dificuldades) ao circuito das primeiras obras financiadas pela Art Theatre Guild. Por motivos ignotos ou não, a carreira inusitada e quase one-hit wonder de Soo Gil coincidiu com os últimos dias da mítica produtora independente que só produziria apenas mais um filme, Bound for the Fields, the Mountains, and the Seacoast de Nobuhiko Obayashi e fechava as portas precisamente no mesmo ano de 1986, intervalando esse silêncio infeliz com algumas distribuições até 1992. Portanto, Did You See the Barefoot God? representa o último reduto do seishun-eiga (filme de jovens) produzido pela ATG, produtora que corajosamente sempre favoreceu novos talentos e novas visões cinematográficas, no fundo, colocando várias vezes e principalmente a partir dos anos 80, cineastas jovens a filmar a própria juventude com uma liberdade criativa quase total e sempre com uma acuidade pessimista jamais retomada pelos grandes estúdios. Barefoot God é um filme de fim de era sobre o fim tormentoso de uma idade, a adolescência. É um filme não só sobre as projecções que nos atormentam o presente impotente (o desejo de superação do estado intermediário entre o adulto e a criança pela via nobre, sendo pintor ou poeta quando ainda tão pouco se sabe sobre o chão que se pisa) mas é principalmente uma viagem pelas desilusões carnais cuja intensidade desvelam um mundo oculto de descontrolo e frenesim sensual. Confrontos latentes entre super-ego e id, se quisermos ser provocatórios e freudianos. Talvez pelas suas origens sul-coreanas, Kim Soo-Gil reveste o universo rural do filme (fortemente guiado pelas estações e a sua causalidade psicológica) com uma ambiência católica, presente quer nas idas à missa que entrecortam as discussões artísticas ou as actividades lúdicas dos dois amigos (Shigeru e Shinji), quer na fé infantil de Hitomi, de longe a presença do filme, que passa de devota inocente a explorada pela sua própria boa vontade e que renega o seu cristo quando se entrega ao amor, reencontrando-o psicoticamente quando enxerga as limitações perigosas da carnalidade. A pesada atmosfera católica não se faz sentir, todavia, nos décors sacros, mas antes na demonização conceptual do erotismo, ou se quisermos, na alegoria bíblica da expulsão do paraíso através da auto-consciência do corpo. Did You See the Barefoot God? fala-nos, mais uma vez, desse tempo crucial onde a descoberta da dimensão erótica significa a descoberta de uma transgressão que, ora enlouquece (veja-se a sifilítica tresloucada que convida os rapazes a ter relações sexuais num cemitério) ora brutaliza e profana as existências e as relações mais espontâneas, como são as da amizade. Neste sentido, Kim Soo-Gil, cineasta que só faria mais um filme para além deste, reivindica aqui uma herança mishimana quando mete na boca do jovem pintor, que venera uma modelo secreta sem jamais se confessar, as seguintes palavras dignas de um romance como O Templo do Pavilhão Dourado: "acredito que a beleza só existe para fazer o coração humano sofrer". Esta beleza, que é na verdade um irrestrito fascínio e desejo de posse para os que se acham feios, é o deus descalço do título que não sabemos ter estado em condições de realmente o ter observado. Pois, tal como as folhas das árvores que induzem o vento que nelas roça, dessa beleza só vemos as paixões que desencadeia e a energia invisível que desponta o caos. O olhar de artista embriagado, o rompimento do terço para descobrir a sexualidade, o suicídio herdado e a beleza que permanece muda perante isto tudo, mas que tudo isto causou. Sem haver nada de sagrado que redima, para Soo-Gil o único elo transcendente é o do mal.



Revolver (1988) de Toshiya Fujita: **
Após uma carreira como realizador assalariado maioritariamente na Nikkatsu decadente da década  de 70, Toshiya Fujita conseguiu continuar sempre a filmar mesmo quando o estúdio de modo sucessivo erotizava as suas películas para caminhos mais extremos. Mesmo assim, Fujita foi um dos primeiros a carnalizar o seu cinema juvenil no princípio dos anos 70 (na época em que a Roman Porno ainda era uma miragem) e continuou sempre a filmar as malaises da juventude com peculiar interesse e obsessão voyeurista. Revolver, que contêm jovens mas não é integralmente um filme sobre eles, acabou por ser a sua última obra, o seu testamento cinematográfico se quisermos. Sabemos que essa definição é sempre discutível, pois nem sempre um derradeiro filme exprime sem sinuosidades as imagens de marca e o cunho autoral de um realizador. Muitíssimo mal comparado - e salvaguardando as crassas diferenças formais - podíamos dizer que Revolver é o L'Argent de Toshiya Fujita. À semelhança da última tentativa de Robert Bresson, neste filme também podemos considerar que o personagem principal é um objecto (no caso um revólver como indicado no título), que unifica todos os outros personagens na mesma senda de infortúnios e maldições, passando de mão em mão e despertando aquilo que poderíamos chamar de mal adormecido no coração dos homens. Se em Bresson o desfecho é radicalmente pessimista (como se o mal, personificado no dinheiro, tivesse um poder causal, como se ele desencadeasse o caos necessariamente), em Fujita tal pressuposto serve para executar um thriller mais ou menos confuso quanto ao seu mood, com muitos personagens e nenhum deles muito marcante, com muitos actores talentosos e nenhum que sobressaia (neste sentido, Kenji Sawada desilude um pouco com uma interpretação demasiado rígida). Claro que seguir o paradeiro de um revólver roubado a um polícia é excitante para o espectador, assim como a acepção que um pequeno momento pode condicionar totalmente uma vingança, contudo, falta aqui algum brilhantismo no argumento, na construção de personalidades mais significativas e até na resolução final. Toshiya Fujita sabe filmar, mas cremos que infelizmente as vantagens de Revolver ficam decididas na parte técnica. Havia melhores maneiras de terminar uma carreira.



Deep River (1995) de Kei Kumai: ***
Um grupo de turistas japoneses viaja numa carrinha algures pelas paisagens rurais da Índia. Os passageiros, aparentemente partilhando a condição superficial de se ser turista com as fotografias do costume e os sorridos alheados, dirigem-se para Varanasi, a famosa cidade sagrada que é banhada pelo rio Ganges, o rio que ao mesmo tempo concede a purificação aos vivos e opera a libertação dos mortos. Somos informados do destino por uma voz-off de uma mulher misteriosa que permanece muda e com um olhar sorumbático, Mitsuko, que nada mais nos adianta dos motivos do tal périplo. Nesse seguimento, quando a noite cai, surge a primeira (de três) memórias que povoam a viagem e lançam os rastos de uma hipotética peregrinação colectiva, mesmo que os motivos de cada peregrino sejam, para cada caso, bastante diferentes. Isobe relembra as derradeiras palavras da sua esposa doente, nas quais era dito que com certeza iria reencarnar assim que morresse. Kiguchi, atormentado por memórias bélicas, recorda-se do falecimento de Tsukada (último papel de Toshiro Mifune), um ex-soldado alcoólico que nunca conseguiu superar um trauma particular de guerra. Finalmente, Mitsuko que desvela, pouco a pouco, os fragmentos de uma relação, ao princípio puramente carnal, com um estudante de filosofia devotadamente cristão, Otsu. Os três indivíduos são representações, mais ou menos conseguidas, de existências com um deficit e uma necessidade espiritual qualquer: Isobe pretende encontrar a reencarnação da esposa numa criança de três anos, Kiguchi espera poder velar pela arma do seu camarada e Mitsuko deseja reencontrar o devoto e idealista Otsu, não mais para criticar ou questionar sensualmente as suas crenças mas para eventualmente as seguir. Deep River, o rio profundo das vidas, foi o último romance de Shusaku Endo e nele está reflectido a essência universal das crenças religiosas, assim como dos anseios humanos para aderir e compreendê-las. Tanto para Endo como para Kei Kumai - que aqui filma com uma suavidade inabalável fortes tensões (a água sagrada, as flores, a cruz, a deusa Chamunda Devi) e faz-nos ouvir o cântico dos cânticos (a multiplicidade de orações hindus e budistas) - na essência de todas as religiões reside uma só inquietação. Prove-se este sincretismo religioso intradiegeticamente, mais uma vez, com Otsu, esse cristão libertado que diz haver sempre uma dose de mal no bem e de bem no mal, esse homem que religa emocionalmente as várias fés. Este ideal do asceta religioso que dissolve todas as diferenças e não castiga a vida mas progressivamente a vai apurando até tornar a morte num momento indiscriminado do fluxo interminável do grande Rio, parece ser a imagem mais permanente e demarcada de uma obra religiosa no mais profundo sentido do termo.



Lupin The Third (2014) de Ryuhei Kitamura: 0
Pressentimos na banda-sonora deste Lupin The Third referências ao estilo musical de Yuji Ohno, compositor que acompanha há quase 40 anos, com genialidade e identidade jazzística, todas as novas aventuras anime do neto japonês do mítico gentleman cambrioleur, Arsène Lupin. Se ouvirmos mesmo distraidamente, estão lá os ritmos funky no background, alguma bossa-nova sem vozes com swing, os instrumentos do costume a ocupar os silêncios, mas persiste, sem a menor dúvida, um sentimento de incompletude que não passa despercebida. Onde está a euforia do tema principal que aqui é completamente esquecido assim como qualquer composição de Ohno, esquecimento no mínimo ofensivo? Onde está a integração, diria mesmo colagem aventurosa e energética da música nas cenas de acção e comédia - de longe, a marca mais reconhecível das dezenas de filmes e centenas de episódios de Lupin The Third? Enfim, que é feito da autenticidade das melodias e da estética quando somos confrontados com uma pálida e decrépita imitação que apenas toca de leve na superfície? Pois bem, se transpusermos esta analogia musical a todos os outros departamentos artísticos que compõem uma película, temos uma ideia bem precisa daquilo que representa este falhanço com f grande de Ryuhei Kitamura. Quando, há dois anos, ouvimos a notícia que seria o realizador de Versus a ressuscitar o mítico franchise para o grande ecrã em imagem real, algo apenas tentado uma vez no bizarro Strange Psychokinetic Strategy de 1974, dirigido por Takashi Tsuboshima e que, na verdade, de Lupin apenas tinha o nome, três personagens, e uma ou outra referência visual da série, ficámos com alguma esperança que este poderia ser, se não um grande filme, uma visão diferente, arrojada, e autêntica do material original. Relembre-se que Kitamura depois de LoveDeath (filme que apesar dos seus defeitos possui dotes incrivelmente hilariantes), ou seja, depois de 2006 não mais filmou no Japão e virou-se para mercados mais ocidentais. Pela simbologia do regresso a casa e por agarrar num projecto tão doméstico e especial para os próprios japoneses, havia aqui a possibilidade de Kitamura se redimir e finalmente usar os seus talentos visuais, técnicos e humorísticos para tornar as aventuras de Lupin palpáveis, para além das duas dimensões. Infelizmente, o resultado final é mais do que decepcionante. Em termos de estética, Kitamura não percebeu que, se era para reciclar alguma coisa, deveria ter ido buscar referências aos filmes de acção série-B dos anos 70 e não dos sofríveis e foleiros filmes dos anos 90 com artes marciais e outro género de clichés futuristas que não pertencem ao universo já por si pastiche de Lupin. Por outro lado, porque razão se escolheu começar as relações entre personagens do zero (se já os conhecemos há quarenta anos!) e porque razão se inventaram péssimos vilões e uma organização de criminosos que nada têm a ver com o que habitualmente contamos de um filme destes? Qual é o motivo de aguentarmos penosamente, durante mais de duas horas, uma narrativa que não vai a lado nenhum e nem é remotamente interessante pela sua execução? Temos de sublinhar a completa falta de vida desta adaptação que de relativamente surpreendente tem a interpretação de Shun Oguri como Lupin, à primeira vista uma péssima escolha mas que nem é assim tão má. Tudo o resto, e mesmo Oguri que não faz milagres com aquilo que lhe deram, reveste-se de uma esterilidade preocupante que suga o entretenimento estiloso e divertido de Lupin e torna-o numa aborrecida lista de incumbências, com prestações demasiado razoáveis, uma dobragem péssima de actores estrangeiros (terá sido uma inside joke para o desfasamento das vozes no anime?) e os momentos dramáticos que são no mínimo embaraçosos de assistir e, de certeza, pertencem a outro filme. Apesar da bocejante experiência, o sucesso no box-office doméstico (porque qualquer mediocridade iria atrair os espectadores, inclusive eu), já meteu Kitamura a prometer sequelas. Mais valia terem deixado as coisas como estavam.