28/05/15

Fragmentos de 2015/05/28



The Homeless (1974) de Koichi Saito: ***
"Shintaro Katsu, que ficara impressionado com Tsugaru Folk Song (e que, por coincidência, era um grande admirador de Claude Lelouch), pediu a Koichi Saito para dirigir a sua mais recente produção, The Homeless. Este remake do filme de Robert Enrico Les Aventuriers, passado no Japão, acabou por ser um desastre financeiro e artístico. Todos os filmes posteriores de Saito foram igualmente desastrosos e é difícil acreditar que foram feitos pelo realizador de Tsugaru Folk Song, que permanece o ponto culminante da filmografia de Saito." As palavras amargas de Kimihiko Kimata parecem reflectir o insucesso unânime, eu diria mesmo esquecimento, que este road-movie modesto foi vetado. Poderíamos ainda adiantar que, a despeito do trio de actores lendários (Shintaro Katsu, Ken Takakura, Meiko Kaji) e do estilo inconfundível de Saito (extensivas filmagens em exteriores, personagens com passados problemáticos, um cinema caminhado, etc.) The Homeless contribuiu para a quase bancarrota da Katsu Productions que na altura tinha conseguido ressuscitar o mítico personagem Zatoichi da falência da Daiei e tinha encorajado cineastas de relevo (Hiroshi Teshigahara, Kihachi Okamoto, Yasuzo Masumura Kenji Misumi, Hideo Gosha, etc.) a continuar o seu percurso na sétima arte, apesar das dificuldades que os grandes estúdios começavam a passar. Só mais dois filmes, já nos anos 80, foram produzidos pela produtora independente e nunca Katsu conseguiu recuperar totalmente da não adesão do público a The Homeless e dos prejuízos de bilheteira (a juntar à maldição do título, note-se que nem mesmo a página de IMDB da película conta com o nome do realizador correcto, confundindo Koichi Saito com o artesão Takeichi Saito, mais conhecido por Buichi Saito). Mas será The Homeless um falhanço assim tão grande? Será um falhanço de todo? Como se se mantêm o mesmo traço estilístico do seu autor? Saito dialoga abstractamente com as narrativas dos ninkyos onde os personagens cumpriam uma pena de prisão e regressavam a casa, mas no mundo aberto e itinerante de The Homeless não há casa nem terra para regressar (o título assim o indica) e a vadiagem é partilhada pelos três "heróis" na pista dos sonhos e de um tesouro perdido no mar. Talvez a ligação entre os personagens não seja explicita ao ponto de entendermos o passado que os une, mas o caminho frio da estrada obriga a uma certa liberdade, presente na maneira desapegada de filmar e no prescindir de justificações, o que pode desiludir o espectador porém possibilitar um modo de filmar apropriado para o que se filma. Podemos argumentar que no final, Koichi Saito queria retomar o pessimismo do seu Tsugaru Folk Song: aí tal como aqui, os sonhos dos da má vida são obliterados tragicamente numa praia que pode representar a pureza da redenção não alcançada.



Queen Bee (1978) de Kon Ichikawa: **
Na quarta, de cinco, instalações do lendário personagem Kosuke Kindaichi resolveu-se ir buscar um dos seus casos menos conhecidos do público, baseado no romance homónimo, escrito por Seishi Yokomizo em 1951, no mesmo ano de The Inugami Family, essa que foi a primeira história a ser adaptada por Kon Ichikawa. Tal confusão cronológica - embora nunca prejudique o seguimento de cada filme que se encontra sempre fechado em si mesmo - não é nada de novo, pois já a segunda e terceira adaptações cinematográficas, The Devil's Ballad e Hell's Gate Island respectivamente, situavam-se em datas completamente opostas da obra do escritor (The Devil's Ballad foi a segunda aparição do detective em 1947 e Hell's Gate Island data de 1959). Talvez pela proximidade temporal desses dois romances, Queen Bee partilha mais ou menos o mesmo cenário de The Inugami Family. É certo que Yokomizo ficou conhecido pela sua obsessão pelas paisagens distantes das cidades e pelos assassinatos na ou em família, traços que são comuns a todos os casos de Kindaichi, porém um certo microclima rural e uma certa cerimónia familiar aproximam estas duas obras mais do que todas as outras. Começando com um flashback trágico mas envolto em mistério, os três assassinatos de Queen Bee estabelecem uma relação intrínseca com um acontecimento passado há dezanove anos, pelo que Kindaichi terá de desvendar, como habitual, as pontas soltas do enigma, embora, mais uma vez, os personagens mais suspeitos não se livrem da culpabilização algo previsível durante toda a película. Embora a fórmula possa estar um pouco gasta na quarta película, esta é, ainda assim, uma óptima oportunidade para conferir o trabalho de dois actores gigantes: Tatsuya Nakadai e Keiko Kishi



Lonely Heart (1981) de Kon Ichikawa: *
Ainda com Kindaichi detrás da orelha (o quinto e último filme do famigerado detective fora estreado em 1979), Kon Ichikawa decidiu adaptar livremente um outro autor clássico do policial. Desta vez, o autor era estrangeiro, Ed Mcbain, e o tempo em que se desenrolava a acção decididamente contemporâneo - como nos provam os cenários urbanos, a predominância das cores cinzas, dos sépias e a música completamente 80's. Todavia, de Lady, Lady, I Did It!, Ichikawa aproveitou sobretudo a premissa: um jovem inspector forense vê a sua noiva ser brutalmente alvejada num tiroteio que também ceifa outras duas vidas. A morte da rapariga inocente no filme pode não ser comparável à corajosa decisão de Mcbain em obliterar para sempre uma personagem que teria aparecido noutros romances seus, mas em Lonely Heart ficam bem delineadas as potencialidades desta narrativa policial que funciona como uma investigação minuciosa pelos conhecidos das vítimas até se chegar a alguma pista, motivo ou indício de um culpado. Infelizmente, do primeiro inspector, o tal directamente envolvido, saltamos para outro que também trabalha no caso, sendo que insistentemente Ichikawa passará a filmar a relação entre este e os seus dois filhos, algo que se situa completamente à margem do interesse primeiro do assassinato sangrento e só pode ser interpretado como uma tímida tentativa de conceder alguma dimensão humana a um personagem destoado. Então, após o início promissor, apenas temos direito a uma investigação bastante mais monocórdica do que, por exemplo, as dos filmes da saga de Kindaichi, como sabemos, baseadas exclusivamente na recolha de peças de um puzzle que resolve o mistério e culpabiliza quem cometeu o crime. Talvez para se distanciar um pouco do romance "whodunnit" e do esquema por ele trilhado pelo menos cinco vezes em anos anteriores, Kon Ichikawa escolheu silenciar o papel do criminoso (fique provado na celeridade com que é apanhado e até mesmo revelado) e virar-se para as vidas dos inspectores em redor e o passado da defunta (em flashbacks, como não poderia deixar de ser). Percebe-se porque é que Lonely Heart não é hoje relembrado, nem quase nada se escreveu sobre ele. É um filme que pertence ao lado menor de um realizador com uma obra esmagadora.



Bad Film (1995) de Sion Sono: ***
Algures entre 1993 e 1997 Sion Sono deixava o cinema para juntamente com um grupo de artistas e desconhecidos fundar o movimento Tokyo GAGAGA, funcionando simultaneamente como terapêutica espiritual, exercício absurdo e descarga emocional colectiva. Numa entrevista recente - e pelas suas palavras - Sono explicava que o movimento “poderia parecer simplesmente uma manifestação de rua, mas basicamente as pessoas escreviam poemas em bandeiras e passeavam pela rua, abanando-as. Não havia nenhuma mensagem social ou política, e também nada tinha a ver com arte ou performance. Das 200 pessoas que desciam as ruas, nenhuma delas considerava aquilo como arte. Era mais como uma multidão dirigindo-se para um concerto de punk-rock. Não era político. Não reivindicávamos nada. Eu gritava Gagaga! Gagaga!”. E o que significavam esses gritos? Sono explica: “Não significavam nada. Era o som da alma” (retirado de uma entrevista feita em 10 de Fevereiro de 2010 no blogue Tomblands). Na filmografia oficial do realizador, até muito recentemente, esses quatro anos de silêncio representavam uma desilusão e abandono do cinema dito artístico e a procura por essas "sonoridades da alma", por mais questionáveis que elas fossem para o snobismo intelectual e que já não poderiam passar por encenações frente a uma câmara. O que não se sabia é que o cinema, para o bem e para o mal, corria nas suas veias até mesmo nessa época de suposta negação: eis que, durante todo o ano de 1995, Sono e a trupe Tokyo GAGAGA filmaram extensivamente, em digital, um West Side Story caseiro e urbano até que a falta de dinheiro (auto-financiando até à escassez) ditasse o término de tal acto subversivo. Nunca antes editado nem visto, perdido numa cave qualquer, Bad Film era até então objecto de lenda ou de piada (um lost film em plenos anos 90!), mas em 2012, Sion Sono decidiu desenterrar as cassetes e editar as 150 horas de footage com quase 20 anos (nem sempre nas melhores condições técnicas, dentro e fora de plano) numa longa-metragem de quase três horas. O resultado final é francamente curioso. Primeiro, porque ele anuncia sem rodeios a estética frenética, megalómana e bipolar que prevaleceria na sua filmografia  depois de Love Exposure, mesmo se nos abstrairmos do editing que confere, por si só, a assinatura mais recente do realizador (confira-se o uso da música, por exemplo). Em segundo, porque a energia que desprende é, no mínimo, contagiante. Um montão de personagens, dois gangues rivais (fascistas japoneses contra emigrantes chineses), sub-gangues dentro dos gangues (os homossexuais, os dois tradutores, etc.), duas raparigas apaixonadas de facções diferentes... tudo em Bad Film evoca subversão (um filme mau que por ser mau é bom?) e uma vontade de transcender as limitações existentes explorando-as até ao tutano e celebrando-as no limite. Sem haver propriamente sets, muito do fascínio deste filme avulso e épico em dimensão mas não em meios, deve-se ao total desprezo pela autorização de filmagem nas ruas (um estilo de guerrila filmmaking muito presente na obra de Hisayasu Sato) que consequentemente integra os transeuntes no próprio filme e as suas reacções. Quase todos os erros em Bad Film dizem respeito a um domínio virtuoso do  meta-qualquer-coisa: as invasões das câmaras, microfones, sombras dos cameraman nos planos; os actores não profissionais (incluindo o próprio Sono) capazes de surpreender pela sua insondabilidade; até um plano infame de espancamento que, por razões técnicas, conserva ainda os tempos de filmagem embutidos em cima do ecrã provam que é necessário mergulharmos na insanidade. Alguém comparou a experiência de Bad Film à descoberta daquela cassete perdida no sótão dos nossos pais: ela nada tem a ver com a experiência gigante e colectiva de uma sala de cinema, mas com os prazeres ocultos do vídeo privado. Bad Film, Good Tape.



Like Asura (2003) de Yoshimitsu Morita: ***
"Na antiga mitologia indiana, Asura personificava a injustiça dos justos, o ciúme intenso, as lutas e a discórdia diárias, os enganos, a linguagem suja, a fúria como o símbolo da vida e o combate perpétuo contra todo o mundo". Alguma vez esperaríamos ver um incipit destes num filme que é, afinal, a transposição de uma célebre telenovela japonesa rodada nos anos 70? Nem por sombras, mas a verdade é que com este textinho inicial, Like Asura põe-nos logo na pista do que propõe fazer nas seguintes duas horas e quinze minutos: aprofundar, na medida do possível, as premissas que feitas de outra forma e interpretadas por outros (neste caso, outras), estariam certamente votadas ao falhanço melodramático e à insignificância da intriga. Mesmo confessando o desconhecimento da série televisiva, apetece arriscar e dizer que o mérito desta proposta vai para as quatro actrizes que conseguem conferir uma nova dignidade dramática às peripécias, outrora banais, de quatro irmãs chocadas com a descoberta da infidelidade do pai, muito estoicamente interpretado pelo enorme Tatsuya Nakadai, que poderá ou não ter um filho dessa relação extra-conjugal. No meio desse segredo, gerido com a máxima discrição para não atormentar a mãe passiva, as quatro irmãs (a viúva Tsunako, a casada Makiko, a solteira Takiko e a namorada de um pugilista rufião, Sakiko) vão descobrindo as dificuldades silenciosas das várias fases da vida adulta e apercebem-se, finalmente, que a sociedade conferiu-lhes um sofrimento que pertence ao seu sexo e que aos homens parece ser alheio. Uma destruidora de lar, outra gerindo-o não obstante as suspeitas de um casamento destronado e as outras duas construindo do zero uniões que podem não durar para sempre, as mulheres captadas por Yoshimitsu Morita personificam finalmente a entidade mitológica de Asura e as suas ramificações, os seus múltiplos membros e rostos, poderíamos dizer. De todos, no entanto, ressalta o que refere o "combate perpétuo contra todo o mundo", e é nesse cerne que se transforma a peripécia telenovelesca em constatação metafísica: do sofrimento, da injustiça e dos enganos não nos podemos escapar, mas esses males vivem-se colectivamente, em família. 



Crab Goalkeeper (2006) de Minoru Kawasaki: *
Minoru Kawasaki ficou conhecido pelos amantes do trash devido ao seu estilo de comédia surreal com baixíssimo orçamento onde conceitos absurdos são encarados com uma seriedade espartana, como se o realizador quisesse jogar ao sisudo com a sua plateia até às últimas consequências. De entre o rol de comédias infames (de onde se enquadra provavelmente o pior filme japonês a que tive o desprazer de assistir: The World Sinks Except Japan), um sub-género em particular pareceu conquistar certos espectadores ocidentais por causa do grau de bizarria carinhosa que nos é brindada. Falamos, certamente, da tetralogia que perfaz o bestiário antropomórfico de Kawasaki, isto é, filmes cujos protagonistas são animais que vagueiam pelo mundo dos humanos e, ora se tentam adaptar aos códigos sociais destes, ora estão tão plenamente integrados que chega a ser idiota questionar qualquer lógica ou legitimidade dessa integração. Depois de Calamari Wrestler (um choco que se apodera de um lutador de luta livre), Executive Koala (um coala salaryman com dupla personalidade) e Pussy Soup (um gatinho cozinheiro de ramen) eis que nos chega Crab Goalkeeper, um caranguejo mutante que descobrirá a sua vocação existencial após vários embates: ser guarda-redes de uma equipa de futebol. Já conseguem soltar uma gargalhada só com a ideia? Pois, é esse o objectivo de Kawasaki, mas se o filme opta pela paródia, seguindo todos os trâmites de um filme (ridiculamente) dramático com dilemas de personagem, interesses amorosos e amizades inquebráveis, o desleixo da produção, de alguns actores sem experiência (e mesmo assim, este é dos seus melhores filmes nesse âmbito) e da própria narrativa (que, afinal, fica estrangulada com a própria sisudez a que nos obriga) transformam Crab Goalkeeper numa película "so weird, it's weird", ou "so bad, it's bad". Este até pode ser o episódio mais carinhoso da tetralogia pela maneira sentimentaloide como os humanos tratam o nosso caranguejo herói e, claro, devido à sua bondade natural, porém seria necessária muito boa vontade para retirarmos daqui qualquer coisa que não fosse bizarria pura e dura.



The Workhorse & the Bigmouth (2013) de Keisuke Yoshida: ***
No final deste The Workhorse & the Bigmouth mas também em My Sweet Little Pea, o outro filme de Keisuke Yoshida estreado em 2013, as protagonistas reflectem sobre o que aprenderam numa caminhada que as dirige para fora de plano sem precisarem de muletas existenciais ou de grandes tiradas sobre a vida. Com tantas possibilidades de contacto oferecidas, eis que estas mulheres partem sós após terem descoberto algo de essencial: a própria autonomia que extravasa as linhas de uma folha de argumento. E não é por acaso que Yoshida, um autor no sentido mais forte do termo apesar da aparente superficialidade das suas tramas, escolheu filmar aprendizes de argumentista que perceberão as vicissitudes de (se) ser personagem num filme. Vemos os seus argumentos serem rejeitados pela indústria mesquinha das aparências e dos egos (e há aqui momentos discretos mas hilariantes, como a equivocidade da palavra kantoku, que pode querer dizer "realizador" ou "mestre de obras"), mas a verdadeira causa dessa não aceitação deve-se às diferenças crassas entre o verossímil e o artificial. Seria necessário que os argumentos da trabalhadora Mabuchi e do presunçoso Tendo fossem beber ao real esse sentimento curioso de não termos sido levados a acreditar em mentiras ou embelezamentos. Dentro do filme, o real surge, pois, nessas constantes desilusões ou "negas" (desculpe-se o termo, mas não há amor, esperança ou presunção que resista muito) e na forma como os personagens reagem à adversidade, o que corresponde ao pressuposto mais básico da construção do personagem. Quem me leia poderá achar que The Workhorse & the Bigmouth é pessimista propositadamente para fazer valer uma certa noção deturpada de autenticidade, mas ao haver um equilíbrio entre a crueldade do mundo e o poder de reacção e resposta, há também a confirmação de que podemos aprender com as lágrimas, com os erros e com os suspiros. Sem acreditar na comédia ou no filme romântico, Keisuke Yoshida inclina-se totalmente para aquilo que os gregos chamaram de anagnórise. Ele ama estas personagens que, no meio de um quotidiano nada assinalável, reconhecem e redescobrem o poder libertador de ficaram sozinhos.



Dawn of a Filmmaker - The Keisuke Kinoshita Story (2013) de Keiichi Hara: *
Alguém disse uma vez que as incursões "live-action" dos realizadores de animação resultam em obras difíceis de categorizar onde a inventividade, até um lado experimental, afina pelo diapasão da irreverência e do não-conformismo quanto à mistura fina entre imagem e história Dois exemplos marcantes são imediatos e não merecem grande contestação: Mamoru Oshii e Hideaki Anno. Ao passar de revista a obra "live-action" destes senhores que revolucionaram o modo como encaramos hoje a animação japonesa, damos de frente com um universo autoral que teima propagar-se também nos personagens e na imagem de carne e osso. Se Anno filmou menos - e menos consistentemente - do que Oshii, ambos concordam que fora dos desenhos em movimento há ainda muito terreno para devastar e muita criatividade para explorar. Talvez seja por isso que a primeira longa-metragem rodada por Keiichi Hara, igualmente distante do cânone da animação (e da aclamação recebida com Summer Days With Coo) soe um pouco estranha para os nossos ouvidos. Ao contrário dos seus compatriotas que trilharam a mistura entre géneros e inclusive confundiram os paradeiros a cada projecto, tratava-se de um filme biográfico sobre o realizador contemporâneo de Akira Kurosawa e Kon Ichikawa: Keisuke Kinoshita. Mas, esta biografia, que celebra os 100 anos do nascimento do cineasta, concentrava-se muito especificamente numa altura crítica da sua existência e não se propunha ser uma descrição completa da sua vida ou obra. 1945, a Guerra do Pacífico chega lentamente ao seu término e Kinoshita, fugindo dos bombardeamentos americanos e cuidando da sua mãe enferma, decide abandonar a Shochiku após a pressão exercida pela censura estatal aquando da saída de The Army, o filme que analisava já em 1944, o flagelo da guerra não a partir de um ponto-de-vista estritamente político, mas de um afectivo (no caso, servindo-se do pavor de uma mãe ao ver o seu filho ir para combate). Como podemos observar durante Dawn of a Filmmaker, com recurso às imagens de alguns dos seus filmes, Kinoshita é daqueles cineastas que se resolveu apelidar "humanistas" pelo extremo detalhe como retirava dos esforços humanos uma conduta ou simplesmente a beleza de os podermos contemplar. Neste sentido, Hara tenta provar esta tese clássica sobre o realizador, avançando com a hipótese de que, ao longo desse hiato ou desilusão com o cinema, o realizador de The Army nunca deixou de se inspirar nos eventos, transeuntes ou figuras mais próximas que o circundavam: a relação zelosa com a mãe (que ecoa The Ballad of Narayama), certos momentos humorísticos, até uma professora com os seus alunos (Twenty-Four Eyes, claro!) deixam-nos a pensar sobre as possíveis relações entre a experiência mais concreta e a criação de personagens autênticos que iriam marcar para sempre a indústria japonesa. No entanto, os elogios acabam por aqui. Em termos de visão cinematográfica, Keiichi Hara destoa dos seus compatriotas animadores: o seu "live-action" não pretende ultrapassar fronteiras mas fica incrustado numa espécie de classicismo vazio onde dizer vale mais do que mostrar e onde a câmara se contenta em registar acontecimentos superficiais (a despeito da relação mãe e filho não há aqui mais do que personagens unidimensionais) com uma narração igualmente linear com pretensões de verdade histórica. A tentativa de traçar o paradeiro dos irmãos Kinoshita, filmando os locais autênticos presentes no transporte da mãe, pode ter sido interessante a princípio mas limita a narrativa a uma só acção, o que se revela bastante insuficiente a longo prazo. Há quem diga, talvez maliciosamente, que a obra de Keisuke Kinoshita foi a que pior envelheceu dos mestres clássicos. Pode até nem ser verdade, mas a abordagem monótona, simplista e lacrimejante de Keiichi Hara não contribui muito para uma verdadeira revitalização da obra do cineasta, a não ser naqueles últimos dez minutos finais onde quarenta anos de cinema passam à frente dos nossos olhos como se nada fosse.

15/05/15

Fragmentos de 2015/05/15




Spy Swordsman (1964) de Sadao Funadoko: **
Qualquer especialista ou curioso em cinema japonês saberá que os anos 60 representaram uma queda de afluência do público nas salas e isso deveu-se à prevalência da televisão, um medium por essa altura democratizado o bastante para roubar público à sétima arte e criar a sua própria indústria de ficção. Normalmente, costuma-se citar a obra de Hideo Gosha como um caso onde uma certa promiscuidade entre o pequeno e grande ecrã era possível, mesmo sendo rara visto a total diferença e até rivalidade entre produções: não é por acaso que Gosha, oriundo da televisão, sempre foi algo ostracizado pela maior parte dos realizadores e técnicos de cinema mesmo quando a sua obra falava por si e fazia avançar o chanbara. No mesmo ano de Three Outlaw Samurai (primeira longa de Gosha que retomava os personagens da sua popular série de televisão), a Toei decidia trilhar o mesmo caminho e levar para as salas de cinema mais aventuras do samurai Shintaro, conhecido também pela série vagamente intitulada The Samurai. A série ficou conhecida pelo confronto, algo inovador para a altura, entre samurais e ninjas, os últimos representando o lado funesto e enganador do guerreiro (com as suas técnicas traiçoeiras de desaparecimento, manipulação, troca de corpo, etc.) enquanto que os samurais, personificados em Shintaro, simbolizavam a honra, a moral e a crença no humano - por isso, muitas vezes o nosso herói deixa-se cair nas armadilhas dos inimigos e a tensão reside maioritariamente aí, nesse abuso de confiança e na perigosidade, algo óbvia, dos antagonistas. A esta polaridade, o artesão Sadao Funadoko não adiciona muito mais complexidade. Spy Swordsman é um entretido objecto que usa a negritude do filme de ninjas (bastante popular por esta altura) para fazer nada mais do que a sua obrigação. Está longe de ser marcante, mas é divertido.



Retaliation (1968) de Yasuharu Hasebe: ***
Quarta longa-metragem de Yasuharu Hasebe para a Nikkatsu, Retaliation encena a típica narrativa yakuza que contempla disputas entre gangues (por um pedaço de terra), amor fraternal (mas não sem uma certa tensão homoerótica, como nos aponta Tony Rayns) e a emblemática dizimação final onde o sangue da vingança representa a descarga energética cujo decorrer da acção nos vai preparando. Se Hasebe não pôde experimentar nada de novo em termos estritamente diegéticos, repetindo as fórmulas do género, ele transportou uma criatividade borbulhante para algumas estranhas opções de enquadramento (uma certa competência para isolar rostos mesmo em plano aberto ou então escondê-los sobriamente entre as "ervas", como faz no plano da reunião dos possíveis amantes que deveria ter sido o mais emocional de todo o filme) e uma mensagem completamente desencantada de um mundo várias vezes glamorizado na sétima arte. A dupla Akira Kobayashi e Joe Shishido, rivais mas irmãos na desventura, após o massacre de onde ninguém saí vivo (muito sugestivamente filmado numa casa-de-banho branca e neutral à semelhança da calmaria interrompida pela vermelhidão agressiva do sangue), trocam as seguintes palavras feridos ao pé de uma porta gradeada: "não me apercebi que eram sacanas tão traiçoeiros."; ao que o outro responde: " O que esperavas? Todos os yakuza o são". Raramente estas tiradas eram proferidas numa cena conclusiva de um yakuza eiga, (mesmo nos mais corajosos e críticos), e segundo uma entrevista recente de Joe Shishido o brasão do portão gradeado focado no último plano não é nada mais nada menos do que o brasão de Hideki Tojo, primeiro ministro durante a Segunda Guerra Mundial e líder militar responsável pelos males da derrota. De um só travo, a palavra traiçoeiro abarca os militares e os yakuzas como se os primeiros fossem os predecessores dos segundos e como se tudo fosse farinha do mesmo saco.



Rape Shot - Momoe's Lips (1979) de Katsuhiko Fuji: **
Katsuhiko Fuji nunca granjeou a minha preferência nos delírios carnais dessa Nikkatsu lançada às cobras do erotismo e seus desvios cinemáticos. Das películas assistidas, fica-se com a impressão que Fuji normalmente seguia os passos dos seus colegas e não o contrário, e nenhuma verdadeira assinatura prevalecia aos seus esforços na realização (como acontecia por exemplo com Tatsumi Kumashiro, de longe o caso mais paradigmático do autor dentro dessa estrutura industrial). A verdade é que Momoe's Lips parece apenas operar, de forma automática e sem sintomas de genialidade, uma miscelânea de conceitos díspares do exploitation assinado pela Nikkatsu do final de 70: por um lado, filme chocantemente sexual na esteira dos disformes pesadelos violados de Yasuharu Hasebe; por outro, exercício pop de estrelas pop, à Koyu Ohara, sobre os meandros da indústria negra das cantoras-modelo que parecem ser mera mercadoria para os agentes (mais yakuzas do que outra coisa) e carne para canhão dos repórteres da especialidade. Momoe's Lips só é curioso na medida em que opta por desconfigurar esta dualidade tão difícil de apreender e deixá-la navegar em piloto automático, de libertinagem em libertinagem. Logo no início, uma fotografia do ídolo Julie (mais conhecido por Kenji Sawada) deixa-nos antever a relação que a paródia estabelecerá com artistas reais, pois também a Momoe do título remete para a famosíssima cantora e actriz Momoe Yamaguchi que, por esta altura, ainda estava no auge da sua carreira e também era conhecida pelos seus filmes, os quais se retiraria em 1980. Esta referencialidade, situada entre o anedótico e o ofensivo (estaria Fuji a deixar "recados" para a própria Momoe comparando-a à sua infeliz, explorada e drogada protagonista?) torna-se ainda mais grotesca, mas prazerosamente grotesca como só a série-B nos consegue oferecer, quando o final pessimista irrompe e muito cinicamente denuncia a situação mefistofélica das jovens ídolos e a relação vampiresca com os seus agentes. Contrato hipnotizante com o diabo que acaba a sorrir, este desfecho prova, se não o mau gosto contagiante da ligeireza erótica, pelo menos a sua surpreendente liberdade anárquica e mordaz.



Bound for the Fields, the Mountains and the Seacoast (1986) de Nobuhiko Obayashi: ****
A derradeira obra produzida pela Art Theatre Guild teve a assinatura de Nobuhiko Obayashi, que já anteriormente em 1982 e 1984 tinha deixado duas longas-metragens na produtora mais independente de sempre e preparava-se para fechar com chave de ouro um legado deveras inovador e heteróclita. Com efeito, 75 filmes produzidos ao longo de dezanove anos causa-nos espanto principalmente pela coragem e plasticidade das propostas como se o sonho da liberdade criativa tivesse sido realizado nessas quase duas décadas por tantas vozes distintas. ATG significou, pois, um carimbo de suprema qualidade infelizmente apenas reconhecido pelos "especialistas" que se dignaram (e dignam, pois ainda há tanto para descobrir) a desenterrar o universo inventivo desses mágicos que fizeram do cinema um pretexto para revolucionar a visão e esculpir as sensações. Na senda dos filmes nostálgicos acerca da insurreição militar, por sinal bastante populares nos anos 80, Bound for the Fields..., analisa surrealisticamente - à la Seijun Suzuki num Fighting Elegy, onde a hipérbole era crítica - o espírito das primeiras décadas do século XX japonês a partir da loucura bélica e das crenças adultas insufladas de patriotismo. Sublinhamos a palavra "adultas" porque, para contrastar o frenesim bizarro dos que apoiavam os costumes imperiais e a sua maneira de estar no mundo, Obayashi repescava um elenco de crianças precisamente para poder contar as coisas do seu ponto-de-vista mimético e, sem sombra de dúvida, parodiante. Embora haja uma contenção estilística maior do que nos seus outros filmes caracterizados por uma condensação pop, Obayashi não deixa de aplicar as lições de um Shuji Terayama quando, seja através do acting ou do guarda roupa, identifica esses "crescidos" como sendo, porventura mais infantis, misteriosos ou circenses do que as próprias crianças que, a princípio, os imitam fazendo da guerra um jogo de superioridade, uma mera encenação. Claro que Bound for the Fields..., transcende o típico comentário social e também ele opta por uma certa nostalgia dos dias da mocidade onde os primeiros amores surgem "às escondidas" e a rebelião contra o status quo é possível, mas se esse saudosismo podia encerrar uma distinção qualitativa em relação ao presente (algo que é apontado a vários filmes japoneses que apresentam visões idílicas dessas eras de crise como se fossem sempre mais puras) a gramática e o ritmo do filme pendem muito mais decisivamente para uma alucinação que têm a mocidade como objecto. Talvez essa nostalgia esteja também presente na decisão de se apresentarem duas versões do filme aquando da sua estreia: uma a cores (originalmente filmado assim) e outra a preto e branco. Pode ser que o preto e branco, por si só, induza a essa tal nostalgia alucinante que se almejava construir: e não esquecer títulos como To Sleep so as to Dream, Circus Boys, The Red Spectacles; todos realizados nos anos 80 e a preto e branco, numa era onde a cor era dominante, sublinhando, enfim, o carácter místico e mágico dos tons monocromáticos. 



My Sweet Little Pea (2013) de Keisuke Yoshida: ***
Keisuke Yoshida não é "o" grande cineasta japonês dos últimos 10 anos (também quem o foi?), no entanto, podemos apontar-lhe qualidades que, infelizmente, parecem ser excepções nessa geração que teve os seus inícios na realização desde 2005 até hoje: escreve quase todos os seus argumentos, filma personagens de acordo com um tradicional mas eficaz modelo de "character development" e ainda é uma das únicas vozes capaz de retratar, com humor e emotividade, a desestruturação familiar, principalmente a relação entre progenitores e descendentes. My Sweet Little Pea (tal como Rinco’s Restaurant ou Here Comes the Bride, My Mom) pertence a um conjunto recente de filmes no feminino que foram descritos por Cathy Monroe no Nishikata Film Review da seguinte maneira: "a sua essência não reside nas desgraças amorosas das heroínas mas na relação problemática entre mães e filhas." Com efeito, é sempre refrescante observarmos heroínas sem interesses amorosos e Yoshida dá-se ao luxo de os abdicar em função da descoberta dos laços familiares que faltam. Depois de viver sozinha com o seu irmão desde tenra idade, Mugiko é visitada pela mãe que os tinha abandonado e os três ficam a viver juntos por um bocado. A distância, mesmo o desconforto, entre filhos e mãe é evidente, mas a desastrada e simpática velhinha parece não se preocupar com a rejeição e sempre desafia a paciência da filha com um sorriso aceitador. Sem querer estragar o resto dos twists (porque eles são determinantes na construção do percurso de aprendizagem de Mugiko), chamamos à atenção para o modo como Yoshida é capaz de se desembaraçar de uma situação narrativa, passar para outra completamente diferente e só depois fechar o ciclo no cemitério onde o efeito retardado da despedida tem finalmente impacto emocional. Por mais simples que possa parecer, quantos realizadores (japoneses) são capazes de aproveitar a estrutura do crescimento interior e misturá-la na lógica do quotidiano, provocando, pois, epifanias baseadas no contacto real com o mundo e com os outros?



Close Range Love (2014) de Naoto Kumazawa: *
Embaraçoso para dizer no mínimo, Close Range Love será talvez a confirmação derradeira que Naoto Kumazawa não voltará mais a pegar na câmara para dar um novo alento ao "filme romântico" sem ceder, portanto, à simplificação telenovelesca - em bom japonês, com tiques de shojo manga - e a uma intriga que não redime em complexidade o conteúdo algo polémico que se resolveu adaptar. Um professor de inglês, Haruka Sakurai, decide dar explicações privadas a Yuni, uma aluna exemplar exceptuando na cadeira que ele lecciona. Haruka é cobiçado pela maior parte das alunas e a indiferente Yuni, aos poucos lá vai desenvolvendo uma paixão platónica pelo professor demasiado descontraído, mas exigente e demasiado abonecado para ser mais do que uma fantasia de teenagers. Tudo fica mais estranho quando a aluna confessa o seu amor e é, eventualmente, reciprocada pelo professor, num beijo debaixo da sua mesa a meio de uma aula (!), que quebra qualquer verossimilhança que ainda restava. A partir desse momento situamo-nos em terreno fantasista puro, mesmo que insistentemente Kumazawa nos tente vender a "realidade" das emoções dos seus personagens: uma nova professora, amiga de infância de Haruka, vê o beijo e decide aproximar-se do seu novo colega, Yuni, depois de rejeitada por Haruka que se apercebe dos problemas de uma relação proibida, também se aproxima de outro amigo seu... Enfim, todas estas jogadas de argumento extremamente artificiais e que, contrariamente ao pretendido, revelam pouquíssimo do interior dos personagens e só produzem intriga barata, diminuem o filme em todos os aspectos e, em particular, o talento que Kumazawa tinha em filmar relações. Eis o que acontece quando a adaptação de um manga é demasiado manga.



Puzzle (2014) de Eisuke Naito: **
Eisuke Naito prossegue a sua demanda segundo a qual o filme de terror rima com ódios viscerais, espírito de vendetta e, principalmente, um sentimento integral de suspensão de juízo recuperado dos bons velhos slashers dos anos 80. A narrativa ziguezagueante de Puzzle esconde somente os pretextos para exercer a crueldade sem precedentes: a violência surge-nos primeiramente gratuita porque se escondem os motivos, depois revelam-nos na esperança de ganharmos qualquer tipo de conexão e, finalmente, quando a procissão já passou há muito o adro sabemos que nenhuma réstia de racionalidade ou emoção podem sobreviver com as execuções sumárias dos personagens e uma disposição mental, comunicada ao espectador, que ultrapassa a psicose. Neste sentido, recupero as minhas próprias palavras acerca da assinatura deste cineasta tão novo e já tão peculiar: "apenas paira um sentimento de absurdo, para uns completamente gratuito e desnecessário, para outros (como eu) curioso, entretido e até humorístico de tão estranho." Vejam sem discrição e sem preconceitos.



The Tale of Nishino (2014) de Nami Iguchi: ***
Muitos são os filmes que pegam na imagem da mulher fatal para explorar o fenómeno da sedução, esse canto de sereia que tradicionalmente sempre conduz à desgraça dos afectos masculinos. Certos cineastas, como Buñuel, ramificaram este ideal em quase todos os seus filmes mas acrescentaram novas questões inquietantes pontualmente nas suas carreiras: e se o anjo exterminador não tivesse total consciência dos poderes eróticos que desencadeia nos outros? E se a sedução fosse endógena ao sedutor de maneira tal que a causalidade da sedução só pudesse ser feita através do olhar de quem é seduzido, como por magia, como se ambos, sedutor e seduzido, não tivessem escolha? E se a sedução representasse, assim, uma maldição para o sedutor que não se escapa jamais da sua natureza mesmo quando inocentemente deseja "amar"? Complicar a causalidade linear das acções e baralhar as cartas de um, muitas vezes, limitadíssimo behaviorismo cinematográfico reforça um cinema que prefere induzir interioridade através das dúvidas, tocando assim na complexidade do real. Nami Iguchi com o seu Don Giovanni revisitado pretende seguir o trilho de outros "realizadores masculinos", mas aplica todas as filmografias da mulher fatal ao universo masculino. Nishino não é um playboy que vangloria as suas conquistas (para si ou para a câmara - espectadores subentendidos), mas é um homem misterioso que não consegue parar de seduzir. O fascínio que emana naquelas que passam na sua vida nem sequer pode ser resumido através dos típicos chavões como "engate" ou "estilo". Só a dimensão genuína persiste e é essa que, retirando grandes responsabilidades, age inexplicavelmente e, por si só, gera a impressão fugaz do romantismo que sucumbe às recaídas eróticas, das paixões sem freio dessas mulheres que sempre acabam por se entregar e desistir após investimentos gratuitos e emoções afinal vazias. É claro que esta sondagem da sedução amoral - figurada em longas cenas e momentos que valem pelas interpretações e pelo clima natural que desprendem - deveria ter sido o único tema de Tale of Nishino que, a despeito da simbologia, infelizmente retoma a tendência hoje popular no cinema japonês (que poderia ter sido bastante mais enervante) de inserir um tema sobrenatural no meio de tanta rectidão quotidiana, o que resulta deslocado e artificial.



Tada’s Do-it-All House - Disconcerto (2014) de Tatsushi Ohmori: **
Três anos após o sucesso inesperado do primeiro filme, sucedido por uma série de televisão baseada também nos dois benriya (moços de recados ou literalmente solucionadores de problemas), Tada's Do-it-All House - Disconcerto apresenta-se, sem presunções, como um episódio de duas horas. Tatsushi Ohmori sabe que o encanto da sua película morna reside, não no brilhantismo cinematográfico, mas na relação idiossincrática dos dois amigos de infância, divorciados e solteiros, que executam todo o tipo de trabalhos dependendo da oferta: Tada (Eita), o bom rapaz que quase sempre faz as escolhas correctas e Gyoten (Ryuhei Matsuda), o sorumbático anti-social cujo comportamento é sempre imprevisível e misterioso. Quem não gostar remotamente dos dois actores e da atmosfera deadpan associada às suas prestações não perceberá como foi possível estes personagens terem ido tão longe e terem conquistado um público dedicado. Talvez a íntima ligação com a série no pequeno ecrã possa distanciar ainda mais os novatos e mesmo aqueles que só viram o primeiro filme, sendo que diversas personagens aparecem sem qualquer introdução, algo que não preocupará os que já as conhecem da televisão. No final, Disconcerto é inofensivo para aqueles que não apreciam o estilo e entretido para aqueles interessados nas extraordinárias qualidades dos seus dois actores.



Parasyte - Part 1 (2014) de Takashi Yamazaki: ***
Admirador do manga de Hitoshi Iwaaki desde novo, estranhamente não duvidei do potencial desta adaptação live-action como tantos outros fizeram, julgando-se donos do legado e conscientes da suposta conspurcação que aí vinha - não os culpo: o pessimismo não existe sem múltiplas desilusões. A razão do meu optimismo, todavia, soava ainda mais estranha porque a cinematografia de Takashi Yamazaki sempre me deixou, no mínimo, indiferente (acontece o mesmo com a sua aclamada trilogia Always Sunset on Third Street) ou um pouco maldisposto (como sucedeu em The Eternal Zero, película cujo esmagador sucesso comercial tornava a romantização histórica dos pilotos kamikaze socialmente preocupante) e, portanto, seria normal que também eu sentisse que Yamazaki não tinha mãos para tal empreitada. Ainda bem que confiei no meu instinto, pois Parasyte - Part 1 pode não ser uma obra-prima, mas é sem dúvida um dos thrillers japoneses mais eficazes dos últimos anos (MOTELx, estão a ouvir?). Para Yamazaki que, para os esquecidos, começou a sua carreira com duas longas sobre invasões alienígenas, viagens no tempo e quejandos da ficção científica, - em 2000, Juvenile, um híbrido Steven Spielberg-Fujiko Fujio para crianças e em 2002, Returner - o tema fantástico do manga de Hitoshi Iwaaki, em que pequenos parasitas roubam o corpo e a mente dos humanos, estava longe de lhe ser estranho. Esse respeito pela fonte aliado ao interesse pelos efeitos especiais (e Yamazaki sempre foi responsável por esse departamento nas suas películas) dão um muito satisfatório resultado, muito embora reconheçamos as limitações de um médio que condensa em menos tempo um que devia ser consumido de forma intervalada. Claro que Parasyte - Part 1 modifica alguns eventos da narrativa original, claro que o ritmo acelerado da narrativa assemelhasse muito mais a um blockbuster em que os momentos mais íntimos são diminuídos e algumas inconsistências subsistem, mas digam-me se não vibraram do princípio ao fim com a parceria, no mesmo corpo, entre Shinichi Izumi e Migi, esse parasita que se humanizou por não ter conseguido ocupar o cérebro e ter permanecido na mão do nosso protagonista, o local cuja indeterminação segundo a antropologia revela a caracterização do homem como ser marcado pela possibilidade? E é também no acto de desvendar possibilidades de confronto que encontramos todo o sentimento de perigo, até de horror, em Parasyte: a desumanização ameaçadora dos antagonistas é assinalável, mas também o sentimento de solidão de Izumi (como um super-herói, vítima de um acidente que lhe garantiu máximas responsabilidades) fazem-nos trocer por ele em todas as circunstâncias enquanto que a narrativa cresce e envolve cada vez mais personagens e meios. Tendo em conta que prefiro os primeiros volumes do manga que correspondem ao final desta primeira instalação, antevejo que a segunda parte, estreada no Japão no mês passado, possa incorrer nos perigos megalómanos do épico, onde se costuma perder o charme impagável do herói só contra todos em detrimento de "ir para todo o sítio", mas teremos de esperar algum tempo para confirmarmos, ou não, os nossos receios. Entretanto, não consigo disfarçar o contentamento com esta adaptação inteligente. Desfrutem-na e descubram o terrível medo da desumanização.