Miniature (1953) de Kaneto Shindo: ****
"Miniature é o trabalho decisivo que me fez um realizador". As palavras são do próprio Kaneto Shindo que, num belo testemunho, classifica esta sua obra - e não Children of Hiroshima - como verdadeiro marco de carreira, constituindo, por assim dizer, a passagem de argumentista (ofício que o ocupava desde os inícios dos anos 40) a autor - e não metteur en scène, como já diferenciava Truffaut. Observemos mais duas passagens importantes que reforçam essa convicção: "Fui contra as tradições dos filmes de geisha. Construí pequenas gruas para mover a câmara em torno do quarto japonês. A beleza da arquitectura japonesa, com as suas portas deslizantes e assentos, consiste na sua simetria cúbica. Tentei quebrar com isso. Ginko vive nesse tipo de espaço. Quebrar com esse padrão significa aproximarmo-nos de frente para Ginko." Tão certeiras são estas palavras quando notamos a imensa expressividade da câmara, não só quando ela percorre os espaços (efectivamente, Shindo não quebra radicalmente com a disposição cúbica que fala) mas quando segue a geisha Ginko, de frente, loucamente apaixonado pela sua miséria e tremenda força, essa que é capaz de a levantar todas as vezes que caí e é enganada. Como é hábito nos filmes inteligentes sobre mulheres, os homens são sempre a causa da sua ruína. Miniature apresenta-nos três relações que representam o ciclo trágico do sofrimento amoroso (e são elas, cronologicamente, o choque, a tentativa falhada de reconciliação e, finalmente, o cinismo descrente) e em todas elas, Ginko saí como a maior vítima do mercado da carne, que a faz equivaler sempre a uma mercadoria facilmente vendível aos compradores - por mais que o tempo passe, ela terá de voltar as costas à casa que a criou e trabalhar como uma mulher, como carne. Esta denúncia feroz, sem qualquer tipo de fetichismo erótico nem possibilidade de enamoramento, é o que separa este Miniature dos filmes de geisha mais tradicionais. "Eu pedi o maior realismo possível aos meus actores e à minha equipa". É também esse peso do real que encerra a película: "Apenas diz o teu preço. Eu pago."
Ditch (1954) de Kaneto Shindo: ****
Foi uma paisagem particular que influenciou Shindo a construir esta tragicomédia sobre as peripécias dos residentes de um bairro da lata. Dizia-nos ele que o que via por entre as janelas do comboio todos os dias antes de chegar à sua recém criada produtora, a Kindai Eiga Kyokai, era a "melancolia da paisagem do pós-guerra japonês" e que se sentiu forçado a tornar real essa representação fina, disseminada no meio do quotidiano. Talvez seja por isso que Ditch tenha laivos de neo-realismo italiano: a pobreza e a exclusão social estão quase sempre ligadas a uma excentricidade existencial, e todos os habitantes do bairro exprimem-se através de um exagero nos comportamentos e uma visão do mundo em que só a patranha e o biscate têm cabimento. A componente cómica não é mais do que denúncia disfarçada. De repente, o país vencido esvaziou-se de ideais e tornou-se numa autêntica balbúrdia (desde a prostituição às negociatas pela aquisição de terrenos para construções modernas) onde as acções sem dignidade parecem ser bastante mais recompensadas do que todas as outras. Shindo não esconde a leitura a retirar deste frenesim moral: "O ser humano tem boas e más intenções. As más intenções excedem em número as boas intenções, pois são decretadas pelo instinto. Mas há também a vontade de praticar o bem. Poderás sobreviver se trabalhares mais do que os outros, mas não é fácil trabalhar no duro. Uma outra alternativa será meter-se no caminho dos outros para sobreviver. Ninguém pensará: «Eu estou bem com qualquer coisa, desde que os outros estejam melhor». Se há uma pessoa assim, chamar-lhe-íamos louco. No entanto, se todas as pessoas só se amarem a si próprias, então ninguém será capaz de resistir a este mundo". Esta equivalência entre bondade extrema (inconsciência de si mesmo) e loucura está bem presente na personagem central de Nobuko Otowa, Tsuru, que acaba por ser explorada pela gente da vala, precisamente porque não há nada que a possa incomodar, ela não tem amor-próprio. Curioso como Shindo trata a pureza de carácter de Tsuru: em vez de a tornar angelical (virginal, usando o poder fetichista do cinema a seu favor), filma-a como uma desvairada, uma selvagem sem qualquer tipo de inteligência. Até aqui assistimos a uma transfiguração da actriz como se ela tivesse de se sujar para mostrar uma autêntica limpeza e inocência de espírito. "Eu pensei que a maquilhagem dela (Otowa) era perfeita, mas os seus fãs ficaram furiosos. Pensaram que eu tinha destruído a imagem pura e inocente da actriz." Tsuru é à imagem e semelhança da paisagem desolada que assaltou a criatividade de Shindo: no meio da desolação há beleza, no meio do lixo, santidade.
Wolf (1955) de Kaneto Shindo: ***
Baseado numa histórica verídica, Wolf relata o assalto perpetrado por cinco cidadãos sem antecedentes criminais a uma carrinha de transporte com dinheiro. Forçados pela pobreza, o grupo age por necessidade, mas também por revolta. No princípio do filme, mergulhamos no processo de selecção de candidatos a vendedores de seguros, mais uma tentativa frustrada de conseguirem arranjar emprego. A competição é forte e o modo como os poderosos olham para os participantes, pessoas desesperadas cuja situação económica e social fez perder toda a dignidade e credibilidade, é realmente agressiva e denuncia um certo espírito das eras de crise, onde é rei quem tem olho na terra dos cegos. É também devido a esta cena que podemos dizer que Wolf traduz um caso raro e irónico de autenticidade no que à crítica social diz respeito. De facto, Shindo encontrou diversos problemas de financiamento, visto não ser um realizador contratado pelos estúdios e a situação monetária das companhias independentes não ser a melhor. A razão principal desses contratempos foi, todavia, o tema hostil da película mas em particular a dita cena dos vendedores de seguros. Quando propôs à Nikkatsu a leitura do argumento, Shindo relata que os encarregados ficaram chocados com a inclusão dessa cena. Rapidamente e sem grandes apoios, o dinheiro que havia foi-se esgotando com as rodagens e parafraseando o realizador: "os cinco assalariados roubaram por desespero, nós filmámos o filme com uma disposição semelhante". Percebemos a revolta que perpassa por toda a película mas simultaneamente o sentimento de impotência quando o crime é praticado e só resta esperar ser detido pela polícia. Da mesma maneira, a estreia de Wolf foi má recebida pela crítica e pouco vista pelo público mas é nas alturas de crise que os valores sobrevêm e Shindo nunca iria prescindir da sua liberdade criativa apesar da indigência desses tempos, aqui tão bem capturados.
Ditch (1954) de Kaneto Shindo: ****
Foi uma paisagem particular que influenciou Shindo a construir esta tragicomédia sobre as peripécias dos residentes de um bairro da lata. Dizia-nos ele que o que via por entre as janelas do comboio todos os dias antes de chegar à sua recém criada produtora, a Kindai Eiga Kyokai, era a "melancolia da paisagem do pós-guerra japonês" e que se sentiu forçado a tornar real essa representação fina, disseminada no meio do quotidiano. Talvez seja por isso que Ditch tenha laivos de neo-realismo italiano: a pobreza e a exclusão social estão quase sempre ligadas a uma excentricidade existencial, e todos os habitantes do bairro exprimem-se através de um exagero nos comportamentos e uma visão do mundo em que só a patranha e o biscate têm cabimento. A componente cómica não é mais do que denúncia disfarçada. De repente, o país vencido esvaziou-se de ideais e tornou-se numa autêntica balbúrdia (desde a prostituição às negociatas pela aquisição de terrenos para construções modernas) onde as acções sem dignidade parecem ser bastante mais recompensadas do que todas as outras. Shindo não esconde a leitura a retirar deste frenesim moral: "O ser humano tem boas e más intenções. As más intenções excedem em número as boas intenções, pois são decretadas pelo instinto. Mas há também a vontade de praticar o bem. Poderás sobreviver se trabalhares mais do que os outros, mas não é fácil trabalhar no duro. Uma outra alternativa será meter-se no caminho dos outros para sobreviver. Ninguém pensará: «Eu estou bem com qualquer coisa, desde que os outros estejam melhor». Se há uma pessoa assim, chamar-lhe-íamos louco. No entanto, se todas as pessoas só se amarem a si próprias, então ninguém será capaz de resistir a este mundo". Esta equivalência entre bondade extrema (inconsciência de si mesmo) e loucura está bem presente na personagem central de Nobuko Otowa, Tsuru, que acaba por ser explorada pela gente da vala, precisamente porque não há nada que a possa incomodar, ela não tem amor-próprio. Curioso como Shindo trata a pureza de carácter de Tsuru: em vez de a tornar angelical (virginal, usando o poder fetichista do cinema a seu favor), filma-a como uma desvairada, uma selvagem sem qualquer tipo de inteligência. Até aqui assistimos a uma transfiguração da actriz como se ela tivesse de se sujar para mostrar uma autêntica limpeza e inocência de espírito. "Eu pensei que a maquilhagem dela (Otowa) era perfeita, mas os seus fãs ficaram furiosos. Pensaram que eu tinha destruído a imagem pura e inocente da actriz." Tsuru é à imagem e semelhança da paisagem desolada que assaltou a criatividade de Shindo: no meio da desolação há beleza, no meio do lixo, santidade.
Wolf (1955) de Kaneto Shindo: ***
Baseado numa histórica verídica, Wolf relata o assalto perpetrado por cinco cidadãos sem antecedentes criminais a uma carrinha de transporte com dinheiro. Forçados pela pobreza, o grupo age por necessidade, mas também por revolta. No princípio do filme, mergulhamos no processo de selecção de candidatos a vendedores de seguros, mais uma tentativa frustrada de conseguirem arranjar emprego. A competição é forte e o modo como os poderosos olham para os participantes, pessoas desesperadas cuja situação económica e social fez perder toda a dignidade e credibilidade, é realmente agressiva e denuncia um certo espírito das eras de crise, onde é rei quem tem olho na terra dos cegos. É também devido a esta cena que podemos dizer que Wolf traduz um caso raro e irónico de autenticidade no que à crítica social diz respeito. De facto, Shindo encontrou diversos problemas de financiamento, visto não ser um realizador contratado pelos estúdios e a situação monetária das companhias independentes não ser a melhor. A razão principal desses contratempos foi, todavia, o tema hostil da película mas em particular a dita cena dos vendedores de seguros. Quando propôs à Nikkatsu a leitura do argumento, Shindo relata que os encarregados ficaram chocados com a inclusão dessa cena. Rapidamente e sem grandes apoios, o dinheiro que havia foi-se esgotando com as rodagens e parafraseando o realizador: "os cinco assalariados roubaram por desespero, nós filmámos o filme com uma disposição semelhante". Percebemos a revolta que perpassa por toda a película mas simultaneamente o sentimento de impotência quando o crime é praticado e só resta esperar ser detido pela polícia. Da mesma maneira, a estreia de Wolf foi má recebida pela crítica e pouco vista pelo público mas é nas alturas de crise que os valores sobrevêm e Shindo nunca iria prescindir da sua liberdade criativa apesar da indigência desses tempos, aqui tão bem capturados.
Travels of Hibari and Chiemi 1 - The Tumultous Journey (1962) de Tadashi Sawashima: **
Travels of Hibari and Chiemi 2 - The Lovebird's 1000 Ryo Umbrella (1963) de Tadashi Sawashima: ***
O tratamento injusto em relação à obra de Tadashi Sawashima foi compensado, ao longo do tempo, com elogios inesperados por parte de alguns especialistas e críticos. Lembro a minha incredulidade quando, por exemplo, Tadao Sato no estudo de referência "O Cinema Japonês", colocava no mesmo parágrafo Kihachi Okamoto, Shohei Imamura, Yasuzo Masumura e, adivinham, Sawashima. Parece um pouco exagerado comparar um realizador de comédias musicais hollywodescas às obras acima citadas, mas Sato persistia na comunhão de visões, salvaguardando diferenças óbvias: "na recusa do sentimentalismo característico do cinema realista, (esses quatro realizadores, cada um no seu estúdio) tentavam captar o homem com toda a liberdade e vitalidade." É caso para dizer que a comédia e o artificialismo espectacular que daí decorrem são provas absolutas de distanciamento do real: aqui o chambara não denuncia nem descreve, mas dança. Para Sawashima, a música é mais um aspecto da comunicação anacrónica da farça, tornando as coisas sempre dignas de espectacularidade cénica. Mas esta distância do real, que no caso é também alegre imprecisão histórica (quem é que sapateava e dançava charleston na era Edo?) não nos alheia da "realidade" que existe em todo o excesso e vitalidade humanas, antes pelo contrário. Tudo aqui tem de ser visto com um sorriso, porque tudo é motivo de festa e tudo é motivado por uma alegria efervescente e pouquíssimo contida. Nestes dois filmes com a diva Hibari Misora e a sua companheira musical Eri Chiemi, percebemos, finalmente, a comparação exótica de Tadao Sato. No primeiro, The Tumultous Journey, as duas amigas trabalham num teatro kabuki e após várias peripécias, acabam presas e decidem fazer-se à estrada, apaixonando-se as duas pelo mesmo homem. É um road-movie pitoresco repleto de cor, números musicais exagerados e um modo de apresentar as coisas próximo de um cartoon (veja-se o recurso humorístico à celebérrima melodia do Yankee Doodle). O segundo filme, The Lovebird's 1000 Ryo Umbrella, pode por vezes debruçar-se na saturação das emoções mas demonstra o gosto "autoral" de Sawashima na arte do disfarce e na comédia ligeira com toques sociais já que Hibari, a princesa, troca de lugar com a sua serva, Chiemi, desencadeando dois (des)encontros amorosos e abalando, por assim dizer, a hierarquia de classes. Parafraseando D. Trull, Sawashima "parece amar particularmente o tema das pessoas disfarçadas e socialmente invertidas, como samurais fingindo serem plebeus, cobardes fingindo serem heróis e camponeses fingindo ser nobreza." Decididamente um gosto carnavalesco de um realizador, em tudo, carnavalesco.
Song of the Horse (1970) de Akira Kurosawa: **
Este documentário desconhecido, emitido na televisão japonesa uns meses antes de estrear Dodes'ka-den, demonstra a admiração, pessoal e profissional, que Kurosawa nutria pelo vigor e nobreza dos cavalos. Nunca existe uma denúncia ou vitimização pelo uso humano desses animais - o documentário abre referindo a extrema importância que eles tiveram no passado, no transporte e no auxílio dos trabalhos rurais e presta-se, posteriormente, a filmá-los nas corridas e competições, como se fossem atletas olímpicos, graciosos e divinos. A presença possante e fascinante destes animais parece ter sempre referente humano, e é esta relação de amizade e trabalho entre as duas espécies que Kurosawa capta, deixando sempre tempo para vermos a liberdade irredutível dos cavalos nos campos selvagens, correndo e saltando. Diríamos até que a componente de domesticação é inegável, só que os humanos são uma espécie de mão invisível - igual a um realizador - que os orienta, doma e cuida. Pela primeira vez, Kurosawa deixa os humanos na paisagem e segue aquelas criaturas que sempre tinha filmado como extensão dos humanos. É curioso como as questões biográficas podem-nos dar uma nova luz sobre este documentário, o primeiro e o último do cineasta. Desde Red Beard, ou seja há mais de 5 anos que Kurosawa não filmava e a segunda metade dos anos 60 viu nascer uma quantidade de projectos abortados (entre eles, o caso Tora! Tora! Tora!) que despoletaram a depressão que motivaria a tentativa de suicídio do realizador no final de 1971. Dodes'ka-den é tido, hoje, como uma tentativa declarada de superar o pessimismo dessa altura (maioritariamente, através da imaginação que poderia vencer qualquer constrangimento do real, mesmo os mais profundos e materiais). Mas não será, portanto, esta entrega à bravura, rijeza e beleza não reflexiva dos cavalos um modo de também tentar contornar a tristeza e desilusão (demasiado humanas) de uma carreira à beira de desabar? Susumu Hani, quando se cansou da ficção, virou-se, como um asceta, para os documentários da vida animal. Kurosawa, com a sua candura de gigante, parece ter feito qualquer coisa de semelhante.
Stray Cat Rock - Beat '71 (1971) de Toshiya Fujita: *
Má maneira de nos despedirmos da pentalogia Stray Cat Rock (SCR) que, como tivemos oportunidade de referir noutro lado, representa a última tentativa da Nikkatsu produzir exercícios rebeldes de e com jovens, antes de exclusivamente produzir películas eróticas. A saga de cinco filmes começou por ser um veículo para a cantora Akiko Wada estrelar em cinema, porém a actriz secundária, a mítica Meiko Kaji, rapidamente substituiu o seu protagonismo nos episódios subsequentes. Cada instalação começa no famoso bairro de Shinjuku e os personagens, sempre variando de filme para filme, são inspirados por diferentes tribos urbanas da altura. Desde motoqueiros (SCR: Female Juvenile Delinquent Leader), beatnicks (SCR: Sex Hunter e SCR: Wild Jumbo), diletantes do psicadelismo (SCR: Machine Animal) até aos hippies (este SCR - Beat '71), parecia não haver maneira de não açambarcar as minorias que constituíam, todas juntas, uma maioria, a juventude forasteira dessa viragem de década. Toshiya Fujita, neste último capítulo, foge tanto à fórmula da série que acaba por descaracterizá-la, prescindindo dos pontos altos e conservando aquilo que podia ter sido alterado. Em primeiro lugar, a presença de Meiko Kaji é de tal maneira breve que a sua personagem é, em tudo, insignificante. Com isto, Fujita quis dar ênfase aos homens - e tanto Tatsuya Fuji como o quase estreante Yoshio Harada estão bem - mas essa escolha adultera a característica principal da série: a preponderância das mulheres no meio da acção. Por último, o filme acaba por se perder tanto no sentido de humor infantil e despropositado como no dramatismo vulgar e facilitista da última cena. Esperávamos bem melhor vindo de quem vem.
The Glacier Fox (1978) de Koreyoshi Kurahara: **
No final dos anos 70 e ao longo dos anos 80 o cinema japonês assistiu à moda dos semi-documentários animais. Talvez motivados pelo desenvolvimento crescente do médio em captar a rapidez e a imprevisibilidade da fauna, os realizadores japoneses sentiram sempre a necessidade de antropomorfizar a vida natural, conferindo-lhe emoções bastante mais fáceis de reconhecer e explicar a um público mais jovem (supostamente o público alvo: relembre-se que foi a Sanrio, a empresa de Hello Kitty, que produziu este filme). Quer existisse a presença efectiva de humanos (por exemplo, na relação dono/animal como acontecia em Antartica, também realizado por Kurahara, ou ainda no aclamado Hachi-ko) ou houvesse simplesmente uma narração que cozia os fragmentos da vida selvagem (como é o caso neste The Glacier Fox ou no polémico e alegadamente cruel The Adventures of Chatran), podíamos constatar a necessidade de contar as agruras da Natureza de um ponto-de-vista comovente, isto é humanizado, e quase sempre nestes filmes - e este não é excepção - assistimos à fatalidade dos animais sucumbirem à violência ou da lei natural, indiscriminada e amoral, ou da lei humana, excessiva e maldosa. The Glacier Fox é, no entanto, um filme datado. Prova disso são, não só as sequências musicais, números "pop" bastante distractivos e irregulares que pontuam o silêncio contemplativo do mundo selvagem, como também as condições precárias a que as raposas estão sujeitas, parecendo algumas dessas situações provocadas pelos humanos e não meros produtos neutralmente assistidos do registo documental. Não podemos negar o poder poético de certas imagens (a expressão de lenta agonia de Rera ao pôr do sol ou o confronto heroico de Flep com a neve no final) mas os defensores dos animais teriam aqui muito com que se queixar.
To the Bracken Fields (2003) de Hideo Onchi: ***
Já imaginaram o que seria Ballad of Narayama se a importância do olhar não recaísse no ponto-de-vista das gerações que abandonaram os anciãos progenitores na montanha agreste, mas estivesse esse olhar sempre preso às condições de sobrevivência reais da geração para sempre abandonada e à espera de morrer? O veterano Hideo Onchi demorou um ano a filmar este duro relato de uma aldeia cujos preceitos tradicionais obrigam à deslocação de todas as pessoas que chegam aos sessenta anos para uma terra árida, longe casa, chamada Warabino. Em Warabino, o conjunto de velhotes aguarda a morte certa: lá quase não se alimentam e rapidamente a morte começa a instalar-se na comunidade situada entre o além e o aquém. Onchi não sexualiza tanto as coisas como Shohei Imamura, mas a mesma sensibilidade é comum aos dois realizadores. Tanto num caso como no outro, não há artifício ou nobreza, apenas uma quase animalidade, quase humanidade que se verifica ainda com mais força nas situações extremas e limítrofes como esta. A maneira como as sociedades antigas encaravam a morte (racionalizando as idades da vida, portanto, não sentindo a necessidade de conservar o seu último estádio) serve aqui para poéticamente nos devastarmos com a injustiça calada da fragilidade humana. Onchi, portanto, é aquilo que Pasolini chamava um metafísico-realista. Por mais paradoxal que possa parecer, é realista na intenção e crueza artística, mas metafísico porque não olvida, no meio dessa escatologia, as aparições imaginadas e os últimos sonhos dos pobres idosos. Basta ver a última cena do filme - a "guerra" de neve com os fantasmas sorridentes e as gargalhadas em off - para entendermos essa duplicidade esmagadora.
Walking with the Dog (2004) de Makoto Shinozaki: 0
Há anos que desespero para ver Okaeri, o filme que lançou Makoto Shinozaki nos anos 90 e criou, digamos assim, o estatuto de nova promessa entre os críticos. A dívida para com o estilo de Takeshi Kitano parecia ser clara nas resenhas sobre o filme e, de facto, Shinozaki chegou a realizar o romance auto-biográfico do comediante mais famoso do Japão, Asakusa Kid e ainda seguiu o mentor nas rodagens de Kikujiro, tendo acabado por filmar o seu making-off. Ora, depois destes projectos, a promissora iniciação do realizador começara a abrandar até ao ponto da estagnação (hoje em dia, Shinozaki virou-se para os insignificantes J-horror). Contando a história de duas existências desamparadas, a saber, um cão e um homem abandonados respectivamente pelos seus próximos, Walking with the Dog é demasiado aborrecido para ser minimamente interessante e é tão horizontalmente previsível na sua contenção formal (diria mesmo esvaziamento) que não vai mais longe do que um filme gentil de domingo à tarde, quer porque com a sua insignificância narrativa não ganhamos em atmosfera, quer porque não encontramos qualquer exigência de visão, qualquer ganho. E, por acaso, nada aqui nos ofende grandemente pela sua presença. A escolha do comediante Naoki Tanaka para o papel principal, umas cameos aqui e acolá do gangue kitanesco (Susumu Terajima, etc.) e ainda o facto de se filmarem animais demonstra a tentativa de tornar amigável toda a experiência. Tirando os poucos momentos propositadamente cómicos, o tom do filme não muda e quando muda é para pior. A gentileza inofensiva rapidamente faz-nos perceber que tudo aqui peca por defeito e não por excesso.
The Kiss (2008) de Kunitoshi Manda: ***
Num dos filmes anteriores de Kunitoshi Manda, Unloved, já tínhamos percebido o gosto em fintar o óbvio naquilo que era, mais na teoria do que na prática, um filme descrente no amor (quão raros são os triângulos amorosos descritos em arte que credibilizam a segunda relação a ser construida no triângulo?). Com The Kiss o equilíbrio entre a seriedade dramática, isto é, a economia nos gestos e nas palavras (até uma certa circunspecção estilística) e escolhas psicológicas insólitas deixariam antever um puzzle complexo de problemas e o perigo de se tropeçar nas próprias pernas já que o gosto de fintar é grande. Como se saí, então, Manda quando, sem pretensões comportamentais descarta a necessidade de explicitar os motivos que levam Kyoko, uma jovem rapariga, a corresponder e a apaixonar-se pelo assassino de uma família que nunca viu (e ouviu) a não ser por relatos e jornais? Como se saí Manda quando deixa incerto o perfil psicológico desse assassino, envolvendo-o quase sempre numa bruma impenetrável, distanciando-o de nós a toda a força? Sai-se bastante bem, pois tudo é fiel àquilo que já estava estipulado em Unloved, isto é, os personagens não são comidos pelo plot - não são seus fieis seguidores -, mas é a sua imprevisibilidade (diria mesmo, a sua insondabilidade) que os vai revelando e vai avançando a narrativa misteriosamente. Porque os homens são isso mesmo, misteriosos. Mesmo tendo uma particular aversão por twists que desvirtuam o seguimento natural do filme para apenas criar tensão em quem vê, sobre o twist de The Kiss - talvez demasiado artificial e repentino para algumas sensibilidades - diria que é a prova derradeira de como no cinema de Manda a relevância das coisas vêm de baixo para cima. A intuição, a comoção e o indecifrável vencem a causalidade, o racional, as palavras (e não era Mitsuko, a mal-amada em Unloved que dizia ao seu amante Hiroshi: "não deixes que as palavras te enganem!"?)
Stray Cat Rock - Beat '71 (1971) de Toshiya Fujita: *
Má maneira de nos despedirmos da pentalogia Stray Cat Rock (SCR) que, como tivemos oportunidade de referir noutro lado, representa a última tentativa da Nikkatsu produzir exercícios rebeldes de e com jovens, antes de exclusivamente produzir películas eróticas. A saga de cinco filmes começou por ser um veículo para a cantora Akiko Wada estrelar em cinema, porém a actriz secundária, a mítica Meiko Kaji, rapidamente substituiu o seu protagonismo nos episódios subsequentes. Cada instalação começa no famoso bairro de Shinjuku e os personagens, sempre variando de filme para filme, são inspirados por diferentes tribos urbanas da altura. Desde motoqueiros (SCR: Female Juvenile Delinquent Leader), beatnicks (SCR: Sex Hunter e SCR: Wild Jumbo), diletantes do psicadelismo (SCR: Machine Animal) até aos hippies (este SCR - Beat '71), parecia não haver maneira de não açambarcar as minorias que constituíam, todas juntas, uma maioria, a juventude forasteira dessa viragem de década. Toshiya Fujita, neste último capítulo, foge tanto à fórmula da série que acaba por descaracterizá-la, prescindindo dos pontos altos e conservando aquilo que podia ter sido alterado. Em primeiro lugar, a presença de Meiko Kaji é de tal maneira breve que a sua personagem é, em tudo, insignificante. Com isto, Fujita quis dar ênfase aos homens - e tanto Tatsuya Fuji como o quase estreante Yoshio Harada estão bem - mas essa escolha adultera a característica principal da série: a preponderância das mulheres no meio da acção. Por último, o filme acaba por se perder tanto no sentido de humor infantil e despropositado como no dramatismo vulgar e facilitista da última cena. Esperávamos bem melhor vindo de quem vem.
The Glacier Fox (1978) de Koreyoshi Kurahara: **
No final dos anos 70 e ao longo dos anos 80 o cinema japonês assistiu à moda dos semi-documentários animais. Talvez motivados pelo desenvolvimento crescente do médio em captar a rapidez e a imprevisibilidade da fauna, os realizadores japoneses sentiram sempre a necessidade de antropomorfizar a vida natural, conferindo-lhe emoções bastante mais fáceis de reconhecer e explicar a um público mais jovem (supostamente o público alvo: relembre-se que foi a Sanrio, a empresa de Hello Kitty, que produziu este filme). Quer existisse a presença efectiva de humanos (por exemplo, na relação dono/animal como acontecia em Antartica, também realizado por Kurahara, ou ainda no aclamado Hachi-ko) ou houvesse simplesmente uma narração que cozia os fragmentos da vida selvagem (como é o caso neste The Glacier Fox ou no polémico e alegadamente cruel The Adventures of Chatran), podíamos constatar a necessidade de contar as agruras da Natureza de um ponto-de-vista comovente, isto é humanizado, e quase sempre nestes filmes - e este não é excepção - assistimos à fatalidade dos animais sucumbirem à violência ou da lei natural, indiscriminada e amoral, ou da lei humana, excessiva e maldosa. The Glacier Fox é, no entanto, um filme datado. Prova disso são, não só as sequências musicais, números "pop" bastante distractivos e irregulares que pontuam o silêncio contemplativo do mundo selvagem, como também as condições precárias a que as raposas estão sujeitas, parecendo algumas dessas situações provocadas pelos humanos e não meros produtos neutralmente assistidos do registo documental. Não podemos negar o poder poético de certas imagens (a expressão de lenta agonia de Rera ao pôr do sol ou o confronto heroico de Flep com a neve no final) mas os defensores dos animais teriam aqui muito com que se queixar.
To the Bracken Fields (2003) de Hideo Onchi: ***
Já imaginaram o que seria Ballad of Narayama se a importância do olhar não recaísse no ponto-de-vista das gerações que abandonaram os anciãos progenitores na montanha agreste, mas estivesse esse olhar sempre preso às condições de sobrevivência reais da geração para sempre abandonada e à espera de morrer? O veterano Hideo Onchi demorou um ano a filmar este duro relato de uma aldeia cujos preceitos tradicionais obrigam à deslocação de todas as pessoas que chegam aos sessenta anos para uma terra árida, longe casa, chamada Warabino. Em Warabino, o conjunto de velhotes aguarda a morte certa: lá quase não se alimentam e rapidamente a morte começa a instalar-se na comunidade situada entre o além e o aquém. Onchi não sexualiza tanto as coisas como Shohei Imamura, mas a mesma sensibilidade é comum aos dois realizadores. Tanto num caso como no outro, não há artifício ou nobreza, apenas uma quase animalidade, quase humanidade que se verifica ainda com mais força nas situações extremas e limítrofes como esta. A maneira como as sociedades antigas encaravam a morte (racionalizando as idades da vida, portanto, não sentindo a necessidade de conservar o seu último estádio) serve aqui para poéticamente nos devastarmos com a injustiça calada da fragilidade humana. Onchi, portanto, é aquilo que Pasolini chamava um metafísico-realista. Por mais paradoxal que possa parecer, é realista na intenção e crueza artística, mas metafísico porque não olvida, no meio dessa escatologia, as aparições imaginadas e os últimos sonhos dos pobres idosos. Basta ver a última cena do filme - a "guerra" de neve com os fantasmas sorridentes e as gargalhadas em off - para entendermos essa duplicidade esmagadora.
Walking with the Dog (2004) de Makoto Shinozaki: 0
Há anos que desespero para ver Okaeri, o filme que lançou Makoto Shinozaki nos anos 90 e criou, digamos assim, o estatuto de nova promessa entre os críticos. A dívida para com o estilo de Takeshi Kitano parecia ser clara nas resenhas sobre o filme e, de facto, Shinozaki chegou a realizar o romance auto-biográfico do comediante mais famoso do Japão, Asakusa Kid e ainda seguiu o mentor nas rodagens de Kikujiro, tendo acabado por filmar o seu making-off. Ora, depois destes projectos, a promissora iniciação do realizador começara a abrandar até ao ponto da estagnação (hoje em dia, Shinozaki virou-se para os insignificantes J-horror). Contando a história de duas existências desamparadas, a saber, um cão e um homem abandonados respectivamente pelos seus próximos, Walking with the Dog é demasiado aborrecido para ser minimamente interessante e é tão horizontalmente previsível na sua contenção formal (diria mesmo esvaziamento) que não vai mais longe do que um filme gentil de domingo à tarde, quer porque com a sua insignificância narrativa não ganhamos em atmosfera, quer porque não encontramos qualquer exigência de visão, qualquer ganho. E, por acaso, nada aqui nos ofende grandemente pela sua presença. A escolha do comediante Naoki Tanaka para o papel principal, umas cameos aqui e acolá do gangue kitanesco (Susumu Terajima, etc.) e ainda o facto de se filmarem animais demonstra a tentativa de tornar amigável toda a experiência. Tirando os poucos momentos propositadamente cómicos, o tom do filme não muda e quando muda é para pior. A gentileza inofensiva rapidamente faz-nos perceber que tudo aqui peca por defeito e não por excesso.
The Kiss (2008) de Kunitoshi Manda: ***
Num dos filmes anteriores de Kunitoshi Manda, Unloved, já tínhamos percebido o gosto em fintar o óbvio naquilo que era, mais na teoria do que na prática, um filme descrente no amor (quão raros são os triângulos amorosos descritos em arte que credibilizam a segunda relação a ser construida no triângulo?). Com The Kiss o equilíbrio entre a seriedade dramática, isto é, a economia nos gestos e nas palavras (até uma certa circunspecção estilística) e escolhas psicológicas insólitas deixariam antever um puzzle complexo de problemas e o perigo de se tropeçar nas próprias pernas já que o gosto de fintar é grande. Como se saí, então, Manda quando, sem pretensões comportamentais descarta a necessidade de explicitar os motivos que levam Kyoko, uma jovem rapariga, a corresponder e a apaixonar-se pelo assassino de uma família que nunca viu (e ouviu) a não ser por relatos e jornais? Como se saí Manda quando deixa incerto o perfil psicológico desse assassino, envolvendo-o quase sempre numa bruma impenetrável, distanciando-o de nós a toda a força? Sai-se bastante bem, pois tudo é fiel àquilo que já estava estipulado em Unloved, isto é, os personagens não são comidos pelo plot - não são seus fieis seguidores -, mas é a sua imprevisibilidade (diria mesmo, a sua insondabilidade) que os vai revelando e vai avançando a narrativa misteriosamente. Porque os homens são isso mesmo, misteriosos. Mesmo tendo uma particular aversão por twists que desvirtuam o seguimento natural do filme para apenas criar tensão em quem vê, sobre o twist de The Kiss - talvez demasiado artificial e repentino para algumas sensibilidades - diria que é a prova derradeira de como no cinema de Manda a relevância das coisas vêm de baixo para cima. A intuição, a comoção e o indecifrável vencem a causalidade, o racional, as palavras (e não era Mitsuko, a mal-amada em Unloved que dizia ao seu amante Hiroshi: "não deixes que as palavras te enganem!"?)
How did you see Song of the Horse, the Kurosawa TV film? Is it available on video? I refer to it in my Wikipedia page about Kurosawa as part of his filmography, but I have not seen it, nor do I know *anybody*, even the Kurosawa fanatics I know, who has.
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