09/03/14

Fragmentos de 2014/03/09




The Fort of Death (1969) de Eiichi Kudo: ***
Segundo capítulo da trilogia Bounty Hunter, The Fort of Death é um caso paradigmático do cinema de Eiichi Kudo. É paradigmático porque por mais que se filmem diferentes películas de sabre, está sempre em causa, no seu cinema, uma sensibilidade profundamente contestatária onde os mais fracos se insurgem contra os maldosos e injustos senhores feudais (os famigerados daimyo), mas essa componente política não é motivo de grandes meditações sobre o poder nem inclinações partidárias de pendor comunista. Muitas vezes a simplicidade da visão maniqueísta deu lugar a grandes exercícios de estilo, onde contava para a arte de narrar a inteligência e a estratégia dos líderes na guerra - efectivamente, Kudo adora encenar a guerra dos pequenos contra os que detêm o poder e, principalmente, a maneira como os pequenos, através da perícia e da esperteza, ou mesmo altos valores de sacrifício, vencem ulteriormente os grandes (veja-se a esse aspecto The Thirteen Assassins). Por outro lado, a propensão para dar vida às orgias de sangue e violência dos campos de batalha, sem grandes concessões e com uma frieza e desapego que antecedem Kinji Fukasaku (relembre-se aquele final aterrorizador de The Great Duel), torna este The Fort of Death um filme a meio-caminho entre a encomenda (visto tratar-se de uma sequela) e a obcecada e incansável fantasia de um realizador que sempre adorou explodir com os antagonismos sociais e recriar revoluções ferozes onde a justiça política e moral seria, enfim, concretizada. Realço só a excelente cena de luta do nosso herói improvável com os ninjas ao serviço do daimyo: ritmo, humor, acção e suspense, todos medidos com exactidão de mestre.



Wicked Priest 2 - Ballad of Murder (1969) de Takashi Harada: *
Durante muito tempo pensou-se que as bobines da  segunda aventura do monge Shinkai tinham sido destruídas ou, simplesmente, os donos do estúdio desconheciam o seu paradeiro. Recentemente, Wicked Priest 2 foi exibido num canal de televisão japonês, contradizendo a fama que já tinha virado mito para os especialistas. Como acontece muito com os filmes perdidos ou indisponíveis, há uma certa tendência para romantizar não só todas as informações envoltas em bruma que os fizeram ficar indisponíveis, como o próprio filme em causa. Pois bem, este é daqueles casos em que qualquer romantismo engana. Ballad of Murder é inteiramente formulaico (neologismo incorrecto segundo os linguistas que, ainda assim, me atrevo a usar) onde vemos o nosso monge a fazer as mesmas coisas, sem tirar nem pôr, que fez e faria nos próximos filmes, sem contar com o típico pretexto narrativo da criança abandonada que o herói tem de cuidar (não nesta saga, mas muitas vezes usado na série Zatoichi). Takashi Harada subia na cadeira de realizador, e permaneceria por mais dois filmes e um spin-off de um dos personagens, e quem tenha visto outros episódios da série poderá perceber o padrão em causa: Shinkai viaja para uma terra e encontra problemas com yakuzas, Shinkai relaciona-se com mulheres, Shinkai defronta os seus inimigos e o arqui-rival Ryotatsu. O problema, como sabemos, não é o da existência de um esquematismo próprio da industrialidade das obras de estúdio, mas o de esse esquematismo estar completamente voltado para a repetibilidade e esterilidade criativa. Portanto, podíamos dizer que quando Ballad of Murder não demonstra um academismo bocejante, revela um sentido de humor idiota, até ofensivo (aquela cena "romântica" com a freira é de fugir) e um final aberto que não teria qualquer referência ou resolução no filme seguinte.



My Way (1974) de Kaneto Shindo: *
A cedência de um morto não identificado a uma universidade pelas autoridades suscita reacções de injustiça da viúva, contrafeita a resolver legalmente a questão nos tribunais. Podemos dizê-lo sem grandes rodeios: My Way é um Shindo menor. Trata-se de um filme longo, desordenado e frio. Nele não encontramos o primor da arte de contar histórias, nem somos seduzidos pelas poderosas imagens de outrora. Narrativamente, o filme é também uma trapalhada e nunca parece encontrar razão dramática consistente, caindo tanto na dispersão (pequenas situações sem cabimento nenhum, como os passeios do fotógrafo pelo meio rural abandonado) como no mais entediante e massudo dos formalismos. Com efeito, lá para a segunda parte mudam-se as coordenadas e recria-se o filme típico de tribunal, filmando extensivamente (e sem qualquer instinto de editing) cada depoimento com os mesmos movimentos de câmara e perguntas em tudo semelhantes. Essas cenas deixam-se arrastar indefinidamente, demonstrando um desapego emocional que dificulta qualquer extroversão ou proximidade, prova de um certo "objectivismo" redutor que Shindo parece querer captar na execução da discussão da lei, sem pensar na grande escala das coisas e de como isso afecta negativamente o pathos do seu filme. Da mesma maneira, podíamos dizer que o excelente rol de actores não têm aqui grande matéria prima para pegar. É caso para dizer que quando falha o general, falham também os seus soldados.


  
Melodies of a White Night (1978) de Sergey Solovyov e Kiyoshi Nishimura: ****
Aparentemente já vimos esta história contada em vários sítios. Dois estranhos, de nacionalidades diferentes, entregam-se à suprema emoção de um amor impossibilitado pela realidade, um amor discreto mas maior do que a vida. Mesmo antes de haver cinema, já contávamos o triste fado dos amantes separados pela geografia (excusado será referir Madame Butterfly de Puccini) mas foi, em grande medida, Alain Resnais (descance em paz) que imortalizou em Hiroshima, mon amour o amor pela outra cultura insondável, que compreendia resistências fenomenológicas e históricas deveras fascinantes (como é possível o acesso ao outro, à história, se o outro e a história não somos eu?). Depois desse caso franco-japonês de sucesso, uma sucessão de filmes sobre relações amorosas impossibilitadas pelo tempo e o espaço ergueu um novo tipo de arquétipo dramático conjugal. No entanto, neste trabalho a quatro mãos (duas japonesas e duas russas) não ousaríamos atribuir grandes predicados simbólicos ou abstractos. Trata-se da captura estonteante, ilustrada quer por meio de imagens miraculosas, quase místicas quer pelas melodias inebriantes do grande compositor Isaac Schwartz, de como amamos e de como nos perdemos na necessidade de amar, a despeito da impossibilidade, a despeito do real. Algo que sempre foi muito importante nestes filmes era a sensação de estranheza familiar, diria até, a descoberta de arrebatamento no estrangeiro por via das molduras arquitectónicas, as cidades silenciosas que devolvem o olhar ou ainda os espaços naturais que envolvem os amantes. Os locais foram sempre relevantes: são a corporeidade espiritual do amor. E de facto, quando amamos não somos alheios aos espaços que percorremos, nem somos indiferentes à extrema beleza marmórea que imediatamente cerca esses locais assim que começamos a amar, a percorrer com o ser amado o milagre do mundo existir. Há uma pessoa que liga todos os recortes, desde a sensibilidade japonesa à russa, passando pela materialidade das paisagens à intensidade lírica das sensações e acabando numa quase religiosidade pagã (sim, a que advém da beleza): Georgi Rerberg, o único director de fotografia que conheço capaz de filmar milagres.



Owl (2003) de Kaneto Shindo: **
Na altura com 91 anos respeitosos, Kaneto Shindo contava as peripécias de uma mãe e filha que, ao estarem cercadas pela pobreza e pela fome, descobrem, através da sedução fatal, um modo de contornar as dificuldades da vida rural e sonhar com uma vida melhor. Owl demonstra sistemicamente uma economia dramática (até mais da segunda metade, ficamos com a sensação de ver a mesma situação em loop constante) e um refreamento de meios (apenas um local durante todo o filme) que, mesmo demonstrando um arrojo inquestionável e uma tentativa ainda imperfeita de nos concentrarmos apenas nas interpretações, não nos deixa de distanciar da verossimilhança e realidade destas personagens, enclausurando-as sempre nas mesmas situações (excepto no final explosivo) e deixando o espectador numa claustrofobia, demasiado circular, que funcionaria melhor se não fosse total. Tal como acontecia no seu Onibaba, Shindo parece estar interessado em aprofundar, mais uma vez, as relações entre estado de necessidade e capitalismo, sendo que o capitalismo parece surgir como consequência natural de um estado primitivo qualquer de carência e desespero até extravasar no caos da ganância desenfreada, sistemática e no clássico (latino) "homo homini lupus" - isto porque não há riqueza sem exploração (sem alienação, diriam os marxistas). Talvez também o abandono do sector primário em virtude da terciarização que tudo absorve (no caso, a prostituição, que é essencialmente um serviço) possa ser mais um factor preponderante nesta análise onde os homens estão sempre um pé atrás das mulheres e, estão sempre abertos a dançar na roda viva da carnalidade e do engano, se virem que têm consentimento.



A Bao A Qu (2007) de Naoki Kato: ***
Intrigante mas críptico, A Bao A Qu é um filme formado somente a partir de enigmas (imagéticos e sonoros) e a sua narrativa desdobra-se em vários caminhos e encruzilhadas, tornando-se difícil acompanhar lógica e escorreitamente o que verdadeiramente se passa (não só é difícil perceber o que distingue vigília de sonho, mas o que é imaginação activa, construida, do protagonista escritor e o que é imaginação passiva, agressiva, inesperada e atroz). Julgo que essa suposta confusão no fluxo da gramática cinematográfica, que se transforma em gramática onírica ou sonhada, ganha terreno sensorial e intuitivo justamente por apostar nessa exploração livre de constrangimentos reais ou meramente consensuais. Portanto, Naoki Kato na sua estreia revela-se um experimentalista nato: quão difícil é ver um cineasta capaz de arriscar tanto, principalmente quando se trata de uma primeira obra! Outra particularidade fascinante é a precisão cirúrgica dos planos sequências, não demorando nem mais nem menos do que deveriam demorar. O seu uso rememora-nos, por vezes, Tsai Ming Liang e também neste caso assistimos a um preenchimento da atmosfera pesada e misteriosa pelo tempo real - desconfortável, cuja ficção não consegue ludibriar - esse tempo que cria tensão e estranheza simplesmente por existir. Os dois grandes planos-sequência do filme (um, relativo à conversa com a familiar de uma vítima do homicida e outro relativo à discussão conjugal em casa com as luzes apagadas) são prova do labor minucioso e temerário de Kato, preocupado sobretudo em instigar o "império dos sentidos" do espectador.



Off Highway 20 (2007) de Katsuya Tomita: **
Tive a oportunidade de falar um pouco com Katsuya Tomita, cineasta que esteve presente no ciclo Harvard-Gulbenkian. Tentei explicar-lhe que vejo no seu cinema (já tinha sentido isso com Saudade, a sua obra mais polida) uma certa raivosidade que rememora, sem sombra de dúvida, o início de carreira de Sogo Ishii. Se não fosse feito em 2007, a era do digital, diria mesmo que este Off Highway 20 parecia mesmo ter sido filmado em 8mm, formato que a geração de Ishii tanto usou nos anos 80 para declarar a sua personalidade e independência criativa. Também aqui, Tomita serviu-se de um orçamento reduzido e usou os seus amigos para contracenarem numa ficção que vai beber muito ao documentário, principalmente pela exposição excessiva que a câmara acaba por alcançar, explorando repetidamente e sem pudor, os abusos do consumo de droga num ambiente urbano completamente lancinante onde pouco há a fazer senão cair na miséria de uma rotina que não exclui os negócios sujos, a prostituição e o pachinko, como não poderia deixar de ser. Quando Tomita ouviu o meu paralelo com Ishii esboçou um sorriso e agradeceu-me, exclamando de seguida: "punk, punk, punk"! E, afinal, o que serão aqueles planos finais da auto-estrada néonizada, repleta de solidão e tristeza (mas marcada pelo betão frio da civilização) senão gritos indignados contra vidas cercadas pela auto-destruição permanente? Não é Tomita, com todas as suas dificuldades amadoras, um dos poucos herdeiros actuais desse cinema punk, contestatário e violento, que vem desde Sogo Ishii a Hisayasu Sato e devolve um olhar enojado para as cidades claustrofóbicas e cerradas sobre si mesmas? Talvez a única diferença que separa essa geração da de Tomita é que na sua perspectiva não há actos de violência relevantes que justifiquem ou dêem voz à revolta de se estar enjaulado. Apenas somos testemunhas da lenta morte destas tristes existências urbanas.



Abraxas (2010) de Naoki Kato: ***
A insólita busca interior de Jonen, um monge budista com passados de rockeiro auto-destrutivo, leva-o a resgatar a paixão antiga que quase o arruinava no passado, a música. Querendo organizar um concerto na vila onde se situa o templo onde trabalha, Abraxas descreve a preparação desse evento e como ele é relevante para o monge zen encontrar mais uma pista para o caminho da iluminação. Este podia ser o mote para uma comédia deadpan, à japonesa, onde situações estranhas com premissas estranhas reinam, porém Naoki Kato executa tudo com uma elegância, respeito e charme de realçar. O que nos toca mais aqui é a dignidade dada à procura sincera de um caminho espiritual. Por mais estranho que seja a maneira como o construimos e os meios que arranjamos para o tornar possível, esse caminho afigura-se fulcral para dar (ou desconstruir) o significado da nossa vida. Embora esteja nas entrelinhas, toda a busca interior inicia-se com o fenómeno da inquietação - e não é, justamente, a vida de rockeiro um modo brusco e juvenil de instalar o desencanto e a revolta, tudo traduções básicas (mas que germinam outras) da tal inquietação? Essa continuidade do rock despersonalizado e barulhento com a anulação quieta do ser está bem presente no diálogo inteligente de Jonen com a sua esposa: "o barulho não é aquilo que as pessoas não conseguem ouvir, mas é o ser (self) ele mesmo, portanto, é necessário fundir-nos com esse barulho para o self ficar cercado e anular-se". Mas enganem-se aqueles que pensam poder ver algo excessivamente abstracto. Há uma economia conceptual ao longo de toda a experiência e Kato apenas se serve de algumas reflexões para credibilizar o nosso simpático protagonista - reflexões que não são só budistas, mas também gnósticas, aliás, de onde é originário o título do filme que dá, por sua vez, conteúdo ao último diálogo entre Jonen e a sua esposa. Não é por acaso que o budismo sempre foi a religião mais aberta ao sincretismo, pois o seu foco é sobretudo interior e nele abrem-se diversas possibilidades de se chegar ao mesmo destino por caminhos diferentes.

1 comentário:

  1. Ola, não sei se isto é ativo ainda mas gostaria de pedir um grande favor. Assisti o filme Melodies of a White Night em uma mostra de cinema e agora não consigo achar em lugar nenhum. Nem dvd e nem pela net. Você saberia me dizer onde encontra-lo?

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