31/10/12

Fragmentos de 2011/01/11


Notes of an Itinerant Performer (1941) de Hiroshi Shimizu: ***
Um Shimizu que envolve o lado problemático e forasteiro da vida teatral, opondo-se à estabilidade da estrutura familiar e do casamento. Fez-me lembrar The Story of the Last Chrysanthemus de Mizoguchi pelo tratamento realista com que encara o mundo do espectáculo, mas distanciando-se deste por defender a organização familiar como a solução.



Children of the Beehive (1948) de Hiroshi Shimizu: ****
Alguém disse que Shimizu era o cineasta que restituía uma dignidade à criança e este Children of the Beehive comprova quase neorealisticamente essa designação. Um filme singelo, verdadeiro e perdido no seu tempo.



Mr. Ohara Shosuke (1949) de Hiroshi Shimizu: **
Filme com os seus momentos, este Shimizu deve demais ao personagem caricato, tanto que, saindo desse âmbito pouco mais resta a assinalar.



Oh! Women: A Dirty Song (1981) de Tatsumi Kumashiro: ****
Este foi um dos primeiros filmes a instaurar Yuya Uchida como o anti-herói por excelência, espécie de arquétipo para toda uma geração de 80 perdida, numa saga de filmes (não-relacionados directamente) negros e violentos, alguns deles realizados por nomes como Koji Wakamatsu, Yoichi Sai ou Yojiro Takita. Embora este filme de Kumashiro sofra de alguns problemas (porque se é um pink, as óbvias cedências ao género são feitas), por vezes, o facto dessa mesma sexualidade bruta (e uma certa misoginia) estar presente de dez em dez minutos, sublinha ainda mais o carácter anti-social, doentio e monstruoso de tal personagem dormente e lunático. De realçar a banda-sonora, principalmente a que acompanha a cena final, talvez a melhor cena, e que justifica a nota que se deu.



Turtle Vision (1991) de Hisayasu Sato: ****
Neste oblíquo exercício alucinante, Sato vai deixando pistas teoréticas quanto às suas obsessões eróticas. A visão da tartaruga do título não é um mero jogo de palavras, pelo contrário, é um índicio metonímico que conserva a característica essencial do voyeurismo patente em toda a sua obra. Escondendo a cabeça na carapaça, a tartaruga consegue ainda ver o mundo através daquele buraco luminoso subtraido de toda a escuridão segura e familiar do abrigo. Aqui, por entre jogos de olhar, reenvios constantes para a câmara que devia permanecer invisivel captando meramente desejos brutais, Sato vai queimando a própria celulóide que filma, criando um elo poético que remete para aquele jogo de espelhos peculiar que Luis Miguel Nava tanto fazia referência. Um jogo de espelhos que remete para a feitura dos actos artísticos, um mergulho nos processos que trazem à tona as nossas realidades mais íntimas.



Alone in the Night (1994) de Takashi Ishii: ***
Não tão bom como os seus outros dois filmes desta época (Original Sin e Night in the Nude), desta vez mais previsível e redundante, não deixa ainda de mostrar, mais uma vez, um Takashi Ishii concentrado, acima de tudo, na ambiência (estando a narrativa presa a essas ambiências) com a sua estética de planos longos e respirados.



By Player (2000) de Kaneto Shindo: ***
Um curioso filme biográfico sobre o mítico (e é dizer pouco) Taiji Tonoyama, interpretado por um verosímil e excelente Naoto Takenaka. Quanto à realização, Shindo mantém-se sempre refrescante, intercalando cenas de filmes posteriores seus e entrevistas: mesmo Shohei Imamura aparece, por uns segundos, e claro Nobuko Otowa (que na altura em que o filme fora feito, já tinha falecido) imprimindo também um cunho bastante pessoal e afectivo à história.



Yamagata Scream (2009) de Naoto Takenaka: 0
Nem sei o que poderia esperar deste ridículo filme de um realizador que, apesar de ser um bom actor, também já tinha dado algumas provas na realização. Yamagata Scream padece principalmente da presunção de que quanto mais caótico, melhor. Demasiado longo, sem qualquer tipo de personagens marcantes e sem piada, esta é sem dúvida a pior tentativa de Naoto Takenaka na cadeira de realizador e argumentista.

30/10/12

Fragmentos de 2010/12/20


Her Brother (1960) de Kon Ichikawa: **
Kon Ichikawa já teve melhores dias: apesar do espectacular enquadramento e do tratamento sublime da imagem, a narrativa é demasiado insípida para nos revermos na aflição da irmã ou sofrermos, como se pretende, com o desaparecimento do irmão.



The Catch (1961) de Nagisa Oshima: ****
Adaptado de um conto do escritor Kenzaburo Oe, The Catch é uma negra viagem pelos contornos agressivos de uma existência egoista, destruidora e selvagem, mascarada de consciência de interesse colectivo. Tecnicamente, funciona como um Night and Fog in Japan (1960) filmado a céu aberto, com os seus planos sequência longos e corridos, e movimentos de câmara arriscados, sublinhando assim a sua componente mais aterradora e diabólica, já que desde o princípio até ao fim, somos mergulhados na perigosidade de uma aldeia sem lei, num tempo indigente, pronta a tudo para saciar interesses que passam pelo sangue, sexo e poder. Assim, aquilo que os habitantes da aldeia chamam animal é na verdade mais humano do que todos eles. O espectador, semelhante à condição do soldado negro, está descituado e mudo como ele, sem expressão na condição de testemunha que vê até onde chega o horror deste povo. Diria que até 66, esta é a melhor obra de Oshima.



The Husband Witnessed (1964) de Yasuzo Masumura: ***
Um Masumura que começou de maneira bem negra (uma espécie de cruzamento entre o fulgor narrativo de Black Test Car e o carácter psicosexual de um Manji) e que infelizmente se torna demasiado melodramático para passar convincentemente a mensagem pessimista que tem em relação à competitividade e desumanização do sistema empresarial (sociedade) japonês.



Mushuko Mono (1964) de Kenji Misumi: *
Típico filme de estúdio, isto é, no seu mau sentido, um filme que tresanda a emprego, e pouco a criatividade (a criatividade relativa ao emprego). Nem Raizo Ichikawa salva Mushuko Mono desta razoabilidade comichosa. 



The Hoodlum Soldier (1965) de Yasuzo Masumura: ***
The Hoodlum Soldier está traçado a meio caminho entre um entretenimento de boçalidades violentas e uma crítica mais profunda (presente em Red Angel de modo mais perfeito) à guerra, ao espírito de guerra e a todas as suas adjacências. Com um Shintaro Katsu doido - e apesar de uma estrutura narrativa que poderíamos classificar como episódica - o filme agarra o espectador até ao final. 



Nakano Spy School (1966) de Yasuzo Masumura: ****
Tremendo este exercício de pessimismo por parte de um Masumura mais contestatário do que nunca, quanto ao vergar-se colectivo de valores eticamente aceites, mas eticamente inaceitáveis. Se Raizo Ichikawa povoa com mestria a segunda parte do filme, a primeira deve-lhe todo o mérito a Daisuke Kato, que tem uma das suas melhores interpretações de sempre. Quanto à parte formal, preto-e-branco cinemascope com enquadramentos que representam o estado de espírito dos personagens, mais uma intensa banda-sonora. Um dos seus melhores.



Naked Bullet (1969) de Koji Wakamatsu: **
Este filme de Wakamatsu é uma versão erótica do típico filme de yakuza. Alguns momentos são intensos, mas a narrativa diminuta e os problemas típicos de budget, desta vez, limitam bastante a experiência. Ainda assim, de realçar a banda-sonora do grande Yosuke Yamashita!



The Woman Who Wanted to Die (1970) de Koji Wakamatsu: ****
Fantasmagórico, este exercício sobre a banalização do suicídio e/ou a sua possível componente redentora. Com citações directas e menções jornalísticas e fotográficas do harakiri de Yukio Mishima, Wakamatsu e Adachi são inteligentes o suficiente para não subscreverem na integralidade as ambições Mishimanas (como seria quase esperado, dado o furor e o carácter recente desse acontecimento), mas antes olharem para elas com um olhar algo crítico.



Lost Chapter of Snow: Passion (1985) de Shinji Somai: ****
Se ao menos pudesse existir uma versão com uma qualidade de imagem melhorada, isso permitiria que qualquer leigo pudesse testemunhar o carácter extremamente misterioso e complexo da filmagem de Somai: não meramente uma formalidade intrincada, mas um modo de apresentação relativo à disposição (espacial e psicológica) dos personagens.



About Her Brother (2010) de Yoji Yamada: ***
O que era um filme, mais ou menos, insuficiente de Ichikawa, Yamada afinou-o um bocado, mantendo a temática abstracta do amor fraterno, mesmo quando posto nos piores momentos e mantendo também um pequeno pormenor visual (o laço que os une, no momento derradeiro). Tirando isto, About Her Brother é um filme diferente e independente do outro, mais rico não só nas interpretações, mas nos momentos da própria narrativa (relembro sempre que Yamada é o derradeiro realizador shomin-geki vivo por excelência) que conservam uma intimidade do quotidiano que é tradicional a certo cinema japonês.



Outrage (2010) de Takeshi Kitano: ***
Este é talvez o filme mais estranho de Kitano: só isso já quer dizer muito. Em primeiro lugar, os que pensavam que iam ver um Kitano curvando-se a exigências comerciais não podem estar correctos. O que conta aqui é a subtileza do literal. Outrage é tão literal, tão pouco subtil que não há comercialismo que aguente. Isto é um filme constantemente agressor e agressivo, não só para o espectador comum (violência etc.), como para o típico seguidor da obra de Kitano: há muito pouco ou nada de Kitanesco em Outrage, de tal maneira que o simples facto de estarmos à espera daquilo que caracteriza o estilo kitanesco permite de cada vez, sairmos frustrados. Consideremos a recusa do plano fixo, do encarar a câmara, recusa da elipse como pudor de montagem, mas, mais decididamente, veja-se a recusa da constante ambiência fúnebre dos personagens (reflexo do estilo kitanesco): em Outrage os personagens estão absorvidos pelo excesso de energia e vida. Nenhum está trespassado por aquela forma de dormência kitanesca, que é afinal, uma antecipação da sua morte. Aqui, pelo contrário, a morte surge como excesso de poder e ambição de outrem, excesso da vida de si mesmo que destrói o excesso de poder alheio. Por isso é tão estranha a narrativa de Outrage: relações de poder organizadas sobre uma esfera anárquica de sentido de tal modo que todos os envolventes se interferem de alguma maneira, bastando apenas subverter a perspectiva de interferência. Todos são susceptíveis de se interferirem e quando isso acontece, só a morte surge. Outrage não é um espectáculo de estilização da violência, mas antes um valente murro no estômago, não ao modo da desconstrução dos seus outros três filmes, mas porque nada de puramente kitanesco sobrevive aqui. O que é afinal Outrage senão uma espécie do filme paródia yakuza de Kantoku Banzai mas com mais uma hora e meia? Roger Ebert disse que o que Outrage mostrava numa hora e quarenta minutos, poderia mostrar em vinte. Mas a narrativa aqui conta pouco, a maneira como Kitano descalça a "bota" é que conta: não caí num travestismo de estilo (como acontecera em Brother), nem tão pouco é comercial, no sentido, em que não permite nada mais do que raiva, ira e destruição, a bem de um suposto entertenimento que se ri de si mesmo.

Fragmentos de 2010/11/12


The Army (1944) de Keisuke Kinoshita: ***
Este é daqueles filmes cujo final salva ou resgata todo e qualquer anacronismo. De facto, o último plano de uma Kinuyo Tanaka aterrorizada pelo destino do seu filho, preparado para morrer pelo seu país, é não só uma contradição do exacerbado nacionalismo que está pulverizado pelo personagem de Chishu Ryu, como um duro, dramático e subreptício alerta, tendo em conta o ano em que o filme foi feito.



Shozo (1948) de Keisuke Kinoshita: **
Seguindo um argumento escrito por Akira Kurosawa, este filme de Kinoshita peca por ser a típica produção imediata do pós-guerra: dilaceramento moral como tema, a fazer os personagens parecerem autómatos da mensagem e nada mais.



Motoharu Jonouchi Shorts (1964-1969) de Motoharu Jonouchi: *****
Graças a um camarada pude testemunhar mais um experimentalista digno de referência, ao lado de Terayama, Kanai, Hosoe, Adachi, Iimura, Ito etc. Motoharu Jonouchi nestas suas três curtas demonstra não só um sentido de plasticidade abismal como um questionamento constante da imagem e das problemáticas inerentes da altura. De realçar o magnânimo exercício de estilo Gewaltopia Trailer: uma colagem meta-cinemática (com excertos de filmes aterradores como The Golem (1920), Nosferatu (1922) entre outros) intercalada com paisagens, manifestações estudantis e uma faixa sonora delirante e psicadélica. O resultado é um trepidar absoluto dos sentidos!



Yunbogi's Diary (1965) de Nagisa Oshima: ****
Extraordinário este pequeníssimo filme (25 minutos) de Oshima; colagem de diversas fotos sensacionais resultado de uma viagem do realizador pela Coreia, juntamente com uma trilha sonora verdadeiramente arrepiante em certos momentos (de realçar o espiritual Sometimes I feel like a motherless child) e uma narração que mais se assemelha a um torrencial poema intimista que espelha angústias colectivas (porque como se refere no final do filme: "Yunbogi is all corean boys"). Para além de ser o primeiro filme em que o interesse pelas minorias étnicas está presente e, desde logo demarcado na obra de Oshima, também se pode dizer ser este o percursor de Boy (1969).



The Man Without a Map (1968) de Hiroshi Teshigahara: ****
Depois de mais de um ano desde a tradução temível de umas legendas russas, eis que um caro espanhol decidiu traduzir de forma mais fiel, este tão esperado filme de Teshigahara, mais uma colaboração com Kobo Abe no argumento (foi a última nesse caso), e Toru Takemitsu na música. O filme obviamente não se quer como um tratado extensivo sobre antropologias peculiares (como eram Pitfall, Woman of the Dunes e principalmente Face of Another), antes usa o mecanismo estilístico presente em toda a obra de Abe (a alegoria) para ela própria se perder (isto é, não se resolver) na dormente angústia do seu personagem principal (a propósito, grande papel de Shintaro Katsu!). Neste caso, o estudo sobre o humano não vem de fora do seu âmbito íntimo (filosofia) antes se fecha nele mesmo, e não mais responde a nada do que antes perguntara. A condição de detective (a nossa condição); a condição do interrogatório pela identidade do que nos rodeia é, apesar de tudo, um exercício frustrado à partida. A narrativa de The Man Without a Map perde-se tal como o personagem de Katsu se perde. Não responde a nada do que pergunta como uma criança mimada. Vive-se fechado em si mesmo e todas as perguntas do caso da vida acabam todas com uma definitiva interrogação, um deserto já sem fronteiras, em expansão a cada pergunta por responder. Se isto não é angustiante, o que poderá ser? Entediante?



Original Sin (1992) de Takashi Ishii: ****
Takashi Ishii tem seus altos e baixos e curiosamente este que é o filme mais desconhecido da sua carreira acaba por ser um dos seus melhores por variadíssimas razões: excelentes interpretações (o trio amoroso: Masatoshi Nagase, Hideo Murota e principalmente Shinobu Otake), uma angustiante narrativa centrada numa modernização do tema barroco do amour-fou, e principalmente a confiança no uso (muito do meu agrado e que infelizmente mais tarde Ishii perdeu) de longos takes e planos sequência para agudizar os tumultuosos afectos dos personagens.



A Night in the Nude (1993) de Takashi Ishii: ***
A Night in the Nude, outro filme bastante desconhecido de Ishii, prometia ainda mais do que Original Sin e estava a prometer mais a meio da coisa, mas aquelas sequências finais estragaram a construção do filme. Em resumo, um drama que se estava tragicamente a construir e que deu tudo a perder por soluções românticas agri-doces bastante lamechas e descontextualizadas. De realçar outra vez, por parte de Ishii, a sublimação dos planos-sequência e a confiança enorme nas técnicas de interpretação dos actores.



Moving (1993) de Shinji Somai: ****
Depois de alguns filmes, Shinji Somai está-se a tornar cada vez mais, na minha opinião, numa brutal besta cinematográfica. Com uma narrativa pouco usual no contexto do cinema japonês (divórcio), Somai filma de uma maneira tão perfeita, com os seus longos takes, que parece que nada lhe escapa (um realizador que também tenho essa sensação é Mizoguchi). Este é talvez um dos melhores representantes naquilo que eu chamo de emotividade coreografada com movimentos (ausências) de câmara e de sets. A última cena é a consagração da forma: simbólica, literal, lindíssima cena sobre o crescimento de uma criança (pai e mãe ardendo no meio do rio nebuloso; o abraço da criança do passado com a criança do presente). Perfeito.



Unchain (2000) de Toshiaki Toyoda: **
Apesar de uma forma e estilística parcialmente televisivas, Unchain consegue de algum modo se distanciar desse cânone facilitista, transformando-se numa cadência de histórias vivas em torno de um grupo de amigos pugilistas (de diferentes estilos). A irascibilidade dos seus desafios e o seu carácter quase sempre frustrado, permite a Toyoda, mais uma vez, filmar casos limite de desespero, violência e raiva.



Tetsuo: The Bullet Man (2009) de Shinya Tsukamoto: 0
Depois de um segundo capítulo razoável de Nightmare Detective - prometendo talvez um regresso às suas origens -, Tsukamoto envolveu-se neste projecto bizarro (mas já há muito prometido), provando aqui que de promessas a terceira instalação de Tetsuo deveria ter permanecido. O filme apresenta falhas em quase todos os níveis: 1) Realização velozmente bocejante: alguém tem de dizer a Tsukamoto que os fades constantes na montagem são cansativos e a sua shaky-cam aqui mais livre do que nunca (fazendo-nos questionar a existência efectiva de um cameraman?), é bastante penosa para o seguimento do que se está a ver. Para além disso, Tsukamoto parece estar sem ideias, tanto na composição dos planos (alguns são cópia integral de outros filmes) como no próprio seguimento narrativo (resultando em constantes "becos-sem-saída" na história). 2) Actores dificultados pela barreira linguística, tornando tudo num espectáculo de canastrões, mesmo recitando as mais dramáticas ou filosóficas tiradas. Os actores americanos mais uma vez parecem destoados da narrativa, e os japoneses completamente perdidos. E Tsukamoto a fazer o mesmo personagem (sem tirar nem pôr) do primeiro Nightmare Detective. Falta de inspiração ou "marca autoral"? 3) Argumento insuficiente para o que se propõe, pois perde-se a noção da metamorfose presente principalmente no primeiro filme. A noção de "contágio" é essencial, pois ela não pode arranjar uma narrativa que explique a transformação, enquanto que em Bullet Man todo um (mau) engenho narrativo se constrói para dar credibilidade (?) ao que se passa. Mais uma vez, se o primeiro Tetsuo era composto por uma quantidade de imagens que se justificam surrealmente umas nas outras, em Bullet Man temos o problema "americano" de tradução da composição filmica, sendo os personagens do filme intérpretes do próprio filme, explicando por eles mesmos algo que a própria constituição das imagens deveria encarregar-se de fazer. 4) A música de Chu Ishikawa consegue recriar razoavelmente o ambiente Tetsuo, e ainda temos direito a uma cameo do verdadeiro Tetsuo, Tomorowo Taguchi a escovar os dentes. No final, Tetsuo: The Bullet Man é de se fugir; um filme esquizofrenicamente dividido entre as exigências "americanas", e um experimentalismo tosco que em nada tem que ver com o primeiro que o fundou.



Caterpillar (2010) de Koji Wakamatsu: ***
Esta é a visão wakamatsuana da geração de 40, tão tragicamente representada como em United Red Army, a de 70 surgiria. Se em United a luta armada pela revolução era desmascarada como uma intensa relação de poder e sexualidade (e não a da sua libertação, como se poderia profetizar), em Caterpillar todo o palco temático é o da exortação radical contra todo o tipo de guerra, contextualizada numa história nacional que resulta de uma constante angústia de corrupções carnais e morais. Se bem que Shinobu Terajima nos oferece uma sentida prestação, não consigo deixar de notar alguma contenção relativamente à construção formal. Aqui, à rarefacção estilística juntam-se alguns momentos estranhos e despropositados com uma música melodramática de piano a tentar fazer ressoar uma componente mais lacrimejante que não era, de todo, necessária. A Wakamatsu parece-me que a radicalidade formal já não interessa minimamente, mas sim uma prevalência da narrativa como (des)construção sociológica para desenterrar os fantasmas do passado. Todavia, uma narrativa tão dura como esta, a meu ver, necessitava de um maior arrojo técnico (a curta de Hisayasu Sato em Rampo Noir, por exemplo), nem que com isso se pudesse prescindir de alguma intensidade narrativa ou temática que este Caterpillar de Wakamatsu seguramente tem (talvez até de mais).

Fragmentos de 2010/10/02


Only On Mondays (1964) de Ko Nakahira: ****
Se a primeira parte do filme ergue uma estética baseada puramente no erotismo sugerido (diria mesmo que a mímica irrepresentável de Mariko Kaga e o constante jogo de "nudez" (física e não só) jamais mostrada, mas sugerida, faz que certas cenas deste filme sejam das mais eróticas da história do cinema japonês), a segunda, porém, transforma-se num drama mais ou menos hard-core (à parte de inúmeros truques estilísticos) sobre a libertação de um modus-vivendi sexual imposto e confinado à mulher.



Silence Has no Wings (1966) de Kazuo Kuroki: ****
Apesar de, em certos aspectos, alguma simbólica estar datada (e por causa disso tornar o seguimento no seu todo dificultado), Silence Has no Wings não deixa de ser um tremendo, abstracto e alegórico exercício sobre as "amarguras da Era Showa" em jeito de turbilhão incontrolável de imagens, sons e sentidos. Para além de ser, em minha opinião, a primeira obra ATG (relembre-se: estamos em 66!), no sentido em que a criação é sobretudo um dispositivo em que o não-existente, existe, Kuroki engendra no seu formalismo ora intimista, ora torrencial "pequenas (grandes) histórias" e momentos que não achei de modo nenhum enfadonhos, antes pelo contrário. É certo que o que haveria de vir foi, em certos aspectos, aperfeiçoado (talvez menos caótico e menos circunstancial), mas o valor deste filme-poema audaz não pode ser negligenciado. Que venham os próximos Kuroki's!



Shadow of Deception (1971) de Koichi Saito: ***
Mais uma agradável surpresa de Koichi Saito. Um thriller bem equilibrado, e que deve muito do seu mérito à grandiosa interpretação de Shima Iwashita. 




Tokugawa Sex Ban (1972) de Norifumi Suzuki: **
Sabemos que Norifumi Suzuki (também Yuuji Makiguchi, mas principalmente Teruo Ishii) não são propriamente defensores de um estilo contido, cinematica e tematicamente falando. O mote reside em abusar da linguagem cinematográfica e sexualizá-la. Este Tokugawa Sex Ban, filme fulminante, faz do exagero e da abertura transgressiva um motivo de quase caricatura. Certas produções desta altura e deste calibre reflectem esta falta de seriedade, e é sempre curioso notar que o próprio espectador já não sabe como há-de reagir: trági-cómicamente no meio de uma demoníaca e kitsch experiência. 



Shinobugawa (1972) de Kei Kumai: ****
É espantoso: não me lembro de um filme que, tendo todas as condições para se finalizar no extremo mais pessimista de todos, se decide resolver precisamente naquilo que colocara dúvidas durante mais de metade do tempo, isto é, o amor. A sua magia (a sua doçura irreal) vem justamente do facto (certamente duvidoso, mas le cinéma c'est le cinéma) de que perante a angústia de viver, o amor vence.



A Distant Cry from Spring (1980) de Yoji Yamada: ****
Um filme que alia uma carga emocional forte, a uma portentosa fotografia pastorícia, e - como é habitual nos filmes de Yamada - excelentes interpretações (o par típico de Yamada: Chieko Baishô e Ken Takakura...).



Wandering Peddlers (1995) de Mitsuo Yanagimachi: ***
Um documentário Yanagimachiano que propõe uma viagem para dentro daquilo que eu chamo "a experiência Taiwanesa" . Linguagem, paisagens, experiências, modos de viver e sobretudo uma maneira singular e deambulante de contar narrativas para além da narrativa.



Vortex & Others (2001-2008) de Yoshihiro Ito: ***
Um curioso experimentalista no domínio imagético e temático, Yoshihiro Ito nestas cinco curtas (que vão do besta, Non Intervention Game (2008) ao bestial, Vortex (2005)) apesar de relembrar, por vezes, certos laivos Iwaianos, demonstra uma criativa inteligência, acompanhada por um sentimento agri-doce de novidade.



Brass Knuckle Boys (2008) de Kankuro Kudo: **
Kankuro Kudo (que nos tinha trazido Yaji and Kita, essa comédia bem-disposta e por vezes hilariante) fez, desta vez, uma outra comédia punk, isto é, não-musical mas baseada na atitude selvagem de um banda cinquentona, novamente reunida por uma empresa discográfica. Ao que o filme faria prever e conhecendo o estilo de Kudo, peca-se aqui por repetição do argumento (basicamente variando entre as zangas e sucessivas reconciliações entre os personagens), uma duração inapropriada (2 horas) para os conteúdos e o estilo tratado, e certos momentos que não fariam diferença nenhuma se fossem discriminados. À parte disso, boas interpretações e razoáveis níveis de comicidade. 



Punch the Blue Sky (2008) de Go Shibata: *
Depois da complexidade chocante de Late Bloomer, Go Shibata mudou de ares e de disposições criando este filme juvenil sem muito cabimento, com um par de momentos interessantes, que mesmo assim não salvam a trama frágil, os personagens simplificados ao máximo e um sentimento geral de imaturidade fílmica que nos parece não intencionada.



Golden Slumber (2010) de Yoshihiro Nakamura: **
O estilo de Yoshihiro Nakamura veio-se consagrando à medida que o tempo passa e as mesmas fragilidades de filmes como The Foreign Duck, the Native Duck and God (2007) e Fish Story (2009) ainda permanecem neste Golden Slumber, sendo que umas ainda se acentuam mais. O problema da duração é inevitável: não sou contra filmes longos, mas o que sumariamente se nota nos filmes japoneses mais recentes é uma duração descentralizada da narrativa, de tal modo que o ritmo de um filme que se quer rápido, torna-se despropositadamente enfadonho, justamente nas partes em que a ênfase deveria residir no estudo emocional das personagens. Diria mesmo que um dos problemas de Nakamura é o que o constituí, isto é, o carinho e dedicação pelos seus personagens torna-os protagonistas de um tempo indevido, se relacionarmos esse tempo com o tipo de narrativas a que se propõe. A recepção ainda é a mesma: não sei se é pelo comercialismo (que Nakamura não esconde ter) ou se é por uma dificuldade em equilibrar conceitos e modos de filmar.


29/10/12

Fragmentos de 2010/08/22



Night of the Felines (1972) de Noboru Tanaka: ****
Tanaka com este Night of the Felines convence-me, mais uma vez (a par com Kumashiro), que a melhor e mais aterrorizadora época da Roman-Porno foram os seus primeiros 4, 5 anos. Embora a narrativa seja tipicamente identificadora do género (as aventuras e desventuras sensuais de um grupo de "massagistas" no mundo suburbano de Tokyo), a sua execução e desenvolvimento em filme não deixa quaisquer dúvidas quanto ao mérito e criatividade de toda a equipa artística. Com um outro apontamento realmente fenomenal, este segundo filme de Tanaka é uma ode à despoetização do corpo e do sexo, num registo que, todavia, se esperaria fantasiado ou mesmo desejoso. Neste cinema, o ofício carnal é visto de maneira tão seca como as vidas dispares que se vão servindo dele. Aqui, há vidas de carne e osso, sem defesas ou ataques.  



The Rendezvous (1972) de Koichi Saito: ****
Esta primeira (e infelizmente imperfeita) tradução de um filme de Koichi Saito - esperaria ver mais cedo Tsugaru jongarabushi, a sua única participação no extenso catálogo ATG - fez-me descobrir mais um talento escondido desta era específica da cinefilia nipónica. Todo o ambiente deslocado e misterioso mais o longo aproveitamento imagético dos comboios e das linhas de ferro fizeram-me lembrar grandes obras da Nouvelle Vague como por exemplo Intentions of Murder de Imamura, Violence at High Noon de Oshima, e os anti-melodramas de Yoshida, mas este não é inteiramente um exercício radical como se poderia prever com esta associação. Poderia dizer que The Rendezvous é uma mistura bastante bem sucedida dos thrillers à Shochiku (por exemplo os de Yoshitaro Nomura) com um certo gosto e construção de picos contemplativos e imagéticos mais ambiciosos. 



Lovers are Wet (1973) de Tatsumi Kumashiro: ****
Tatsumi Kumashiro é um realizador, como se sabe, extremamente singular e a sua obra é portadora de uma estilística muito sui-generis e irrepetível; provando que de artesão em artesão, a vaga Roman Porno tinha mais sumo do que pareceria num primeiro lance. Lovers Are Wet é considerada por muitos críticos a sua obra mais completa e tal consideração não peca por excesso. Há muito mais do que sexualidades e desejos filtrados em película no mundo de Kumashiro. A temática do desejo erótico surge-nos aqui aterrorizada e envolvida numa paisagem quase onírica, de tão esmagadoramente despersonalizada que é. Outras singularidades típicas de Kumashiro (e atípicas para qualquer filme erótico) são as canções folclóricas, assaltando-nos numa envolvência quase etnológica daquela que é a cultura mais tradicional, popular do antigo Japão, mas também uma convicção (que aqui assume proporções gigantescas) que o erotismo e o sexo não é algo humoroso nem extasiante, mas embaraçoso e dormente, que carrega um certo pesar. Para não falar naqueles quadrados negros que na maior parte das vezes, não censuram nada e apenas representam um desejo frustrado e fetichista de ver algo. Para um cinema que supostamente mostraria aquilo que está escondido, Kumashiro desenha uma tragédia silenciosa (com pouco ou nada do que diz respeito a "prazeres alheios"), baseada em terríveis imagens e personagens indefiníveis.


About Love, Tokyo (1992) de Mitsuo Yanagimachi: ***
Não estando ao nível de outros dos seus filmes, Yanagimachi consegue caracterizar uma tumultuosa imagem do conflito de raças no Japão usando um conjunto de emigrantes chineses à procura de uma nova vida. Só que, quando o filme fazia anunciar um desenlace trágico para eclodir as consciências da maneira mais radical, acaba por finalizar-se da maneira mais aberta possível. Se com 19 Year Old e Farewell to the Land tal solução tinha resultado na perfeição, aqui deixa-nos com um sentimento de insatisfação algo inconsolável.



2/Duo (1997) de Nobuhiro Suwa: ****
Sabemos que os filmes de Suwa não são fáceis; o seu estilo representa a viragem angustiante de uma então nova geração de cineastas, contrafeitos com variadas inquietações. Por todo o lado ecoam as seguintes questões: o que filmar e como fazê-lo? Antes de ser um filme sobre juventude e problemas conjugais pós-modernos, 2/Duo é um filme estimulante, feito de pedaços e estilhaços, para procurar a sua própria resolução no processo caótico que é a filmagem. 



Minazuki (1999) de Rokuro Mochizuki: *
O percurso de Rokuro Mochizuki não é muito encorajador. Dos filmes que vi todos parecem ter mais ou menos a mesma fórmula: histórias de traição e violência (ver yakuza) com um pano de fundo romântico/erótico . Minazuki, que é considerada por vários a sua obra mais aconselhável, é mais do mesmo: um filme demasiado longo com uma narrativa que se inicia convenientemente mas logo caí no aborrecimento e numa previsibilidade atroz. Os actores, ainda assim, salvam o filme de alguns bocejos.


Nagisa (2000) de Masaru Konuma: **
Não deixa de ser irónico que um realizador especialista no género S&M, remontando aos dias fervorosos da Roman-Porno Nikkatsuana, acabaria por realizar um filme de primeiros amores imaculados (literalmente) como o seu "testamento cinematográfico". Konuma, desta feita, não entra em excessos e entrega-nos um filme bastante linear (alguns poderiam mesmo dizer académico), mas repleto de amor e dedicação pelos seus personagens. Uma boa entrada para os filmes de Verão sobre o crescimento.



Shangri-La (2002) de Takashi Miike: 0
Por não pertencer ao seu período mais recente de actividade (os últimos quatro, cinco anos) e por parecer assemelhar-se a um lado mais gentil da sua filmografia, poder-se-ia pensar que Shangri-La era um filme com uma qualidade equiparável a The Bird People, Guys from Paradise etc. Infelizmente, tal não é o caso. Aos vícios de um argumento entediante, junta-se uma realização verdadeiramente desapegada que faz que nem Sho Aikawa (com uma das suas mais fraquinhas prestações) salve o edifício de cair.


Yoshino's Barber Shop (2004) de Naoko Ogigami: **
Naoko Ogigami - uma das maiores esperanças femininas do cinema japonês da última década, juntamente com Nami Iguchi - realiza na sua primeira longa-metragem um filme entretido mas que, visto retrospectivamente (como eu o vi), fica aquém de Kamome Dinner ou mesmo Megane. Como alguém dizia, a virtude do estilo de Ogigami é o "estar-se" e não o "ir-se" (a fórmula ecoa noutros casos de cinema japonês independente), e em Yoshino's Barber Shop nota-se uma certa mistura de se "estar" e de se "ir" para algum lado. O filme não aborrece e o estilo de Ogigami até está consolidado, mas não se consegue mergulhar o espectador completamente nas ambiências simples, sorridentes e relaxantes dos seus outros filmes posteriores. Ainda assim, um razoável começo com um punhado de personagens amáveis, quase tirados de um livro de crianças.