16/07/14

Fragmentos de 2014/07/16




Female Gym Coach - Jump and Straddle (1981) de Koyu Ohara: *
Por mais que tente, continuo a ver dois padrões nas eroduções de Koyu Ohara. Ainda que possa ser refutado num caso ou noutro, parece-me que a sua carreira divide-se entre os despudorados filmes pop, comédias ligeiras onde normalmente há um cuidado especial com as personagens femininas (no sentido em que os affairs são queridos ou consentidos por elas) e o exploitation mais duro de roer e menos respeitoso para com o público feminino. No primeiro tipo ficamos com a imagem da liberdade sexual porque o amor parece não ser mais do que uma atracção que se persegue, no segundo apenas há espaço para a violência libertina e o constrangimento pela força. Pessoalmente, nenhum destes dois tipos de filme - e nenhum especificamente - me encheram as medidas (do realizador recordo apenas Pink Tush Girl, exercício curioso sobre o crescimento e a entrada aos solavancos no mundo adulto) porém há em Ohara um aprumo estético impossível de encontrar nos artesãos mais rotineiros.  Em cada um dos filmes fracos de Ohara encontramos sempre um pormenor, uma cena, um enquadramento ou jogo de luz digno de reverência. Em Female Gym Coach - Jump and Straddle a única coisa digna de apreciar são esses momentos inspirados de mise en scène: o momento retrospectivo em que a luz vermelha invade os corpos do professor de ginástica e a aluna, as sombras perversas mostrando as silhuetas dos personagens ou ainda a derradeira imagem, plano distante e aberto em que os corpos despidos dançam em liberdade (sem close-up, sem declarações obscenas). Tudo o resto é absolutamente rotineiro e resume-se a umas quantas palavras e situações. Onde andam as personagens na narrativa famélica? Que mau gosto é este no humor atrevido? Provocará assim tanto riso ridicularizar a orientação sexual? Que relações estabelecer com o filme se praticamente não existe conteúdo?



Office Love - Behind Closed Doors (1985) de Yasuaki Uegaki: **
Posso dizer que o que tinha assistido de Yasuaki Uegaki era revoltante e chauvinista. Muitos filmes eróticos da Nikkatsu são-no, mas a obra de Uegaki, cuja carreira de realizador tinha surgido no crepúsculo da indústria erótica, reflectia um certo desencanto com os corpos femininos e uma escolha deliberada em violentá-los e torná-los objectos de crime. Acontecia isso na secura narrativa de Female Market, relato chocante e niilista de mulheres vítimas dos seus raptores ou ainda em Female Teacher - In Front of the Students, outro exercício pecaminoso onde uma professora é brutalmente violada por um aluno. Portanto, se os filmes de Uegaki suspendem a moral das vítimas e tornam penoso o visionamento do espectador é porque suprimem totalmente o ponto-de-vista feminino, o ponto segundo o qual a comunicação (também o acto sexual) se torna possível. Esses dois filmes são maus e sem dignidade. São tipicamente onanistas, e isso quer dizer que ali só conta o autismo do agressor, o papel incomunicável e a solo do dominador. Ora, se Office Love - Behind Closed Doors continua sendo fraco no desenvolvimento dos personagens, continua a teimar numa narrativa quase inexistente onde tudo pressupõe perversidade avulsa, os dez minutos finais refutam o espírito onanista tão revoltante dos outros filmes citados e que parecia constituir obra. Como esses últimos dez minutos valem todo o filme (que até lá era tristemente composto por serviços sexuais de uma empregada de escritório aos seus patrões e amantes) aviso desde já o seu carácter extremamente subversivo. Depois de um ménage a trois intenso (e em tudo explícito) com dois amantes enfezados, eis que a nossa heroína despudorada se deita na cama e aguarda a luz do sol. No manhã seguinte, (e a passagem do tempo é nos dada através de um plano enorme e uma mudança de luz inusitada) eles que pareciam tão bem "encaixados", tão superiores e hedonistas, mal se encaram e deixam a mulher sozinha, falando ao telefone com a filha. "Estive a dar água às flores" diz ela sozinha e com os olhos húmidos enquanto os dois homens silenciosos no metro desembaraçam-se da chave do apartamento do prazer. Qual será o significado desta cena? Que a carnalidade traz consequências porque é um intervalo de realidade? A noite esquecida que dá lugar ao dia relembrado? O remorso frente ao excesso? Ou terá tido Uegaki a necessidade misteriosa de explodir com o mundo irrealmente sexual que ele próprio construiu, impondo limites, introduzindo a frustração e virando do avesso a concepção da heroína erótica: não um arauto de sensualidade mas uma existência solitária e lânguida. Como todas, como as nossas.



The Seburi Story (1985) de Sadao Nakajima: ***
Os aldeões de The Seburi Story não parecem estar interessados em conhecer o estilo de vida moderno. São inventores de rituais que demarcam muito bem o papel mítico do homem e da mulher e também o casamento - como fica logo provado na abertura - serve primeiramente interesses mais latos, os da conservação da espécie. Quase desprovida de interiores, esta película tardia de Sadao Nakajima é um exercício sobre primitividade. Às claras, sem privacidade e obedecendo a códigos estritos, os personagens desta aldeia completamente aberta para os seus habitantes mas completamente fechada para os estrangeiros tendem a reconhecer que o sentido de comunidade esmaga os indivíduos. Talvez por isso mesmo, as suas regras acerca da sexualidade sejam tão inquestionáveis: não pode haver relação carnal sem casamento e a procura por pessoas fora da tribo é mal vista. A sabedoria primitivista está inscrita nos cânones e eles revelam-nos claramente que o fim da comunidade vem pela mão do erotismo, do "amour-fou", aquele que questiona os valores e abale as fronteiras sociais pelo simples facto de não se poder concretizar plenamente. Nakajima, parecendo que não, traça suavemente o término das últimas comunidades auto-suficientes (em termos de subsistência e axiologia) introduzindo não tanto invasões culturais exteriores, mas a transgressão das regras vinda de dentro, isto é, a transgressão que ocorre tanto nos mais ajuizados (o chefe que não respeita o direito ao luto, casando-se com a viúva) como nos mais jovens e rebeldes (a presença eminentemente erótica de Hide e a sua relação proibida com o rapaz tocador de acordeão). The Seburi Story é um filme de tradições insolúveis, aquelas que não conseguem adaptar-se nem fundir-se com o mundo moderno e expiram com o antigo. É um filme selvagem sobre selvagens, as suas danças mortais, os cantos das sereias e as suas sociedades primitivas em decadência.



Pineapple Tours (1992) de Tsutomu Makiya, Yuji Nakae e Hayashi Toma: ***
Para os japoneses Okinawa não é só o conjunto de ilhas mais a sul do arquipélago. Representa um ovni cultural, um local semi-estranho, tropical e turístico que esconde experiências místicas e proporciona regressos a origens primitivas. Não vale por isso a pena discorrer, uma e outra vez, acerca dos diversos filmes sobre Okinawa que existem no cânone cinéfilo japonês. Se todos são diferentes entre si, o mesmo olhar relaxado mas irreversivelmente primitivo (ou seja, que convida à despersonalização ou revelação) é uma constante. De Sonatine a este Pineapple Tours, de Glasses a Nabbie's Love. De facto, este exercício tripartido (com três narrativas e três realizadores) integra diversos olhares sobre essa mesma realidade complexa: Okinawa, sempre Okinawa a surgir na tela, com todo o seu misticismo tão singular, mas sobretudo com a sua forte presença étnica e cultural. Com Aunt Reiko, o primeiro segmento, Tsutomu Makiya sublinha a crescente descaracterização dos costumes da terra. O primeiro plano recorda-nos os bombardeamentos da Segunda Guerra Mundial e a horrenda batalha que teve palco ao longo das ilhas. Essa recordação abafada (como o preto-e-branco dos newsreel que dá lugar às cores) ganha ainda mais significado quando uma cantora de ópera afónica tenta reconquistar a sua voz, aconselhada por uma xamã que lhe diz isso ser possível se encontrar uma bomba perdida no cimento da nova civilização, supostamente um ajuste de contas pelo seu mau karma (é descendente de americanos). Talvez Makiya queira dizer que o infeliz passado da terra não consegue expressar-se e decaí no mutismo, na afasia. Enquanto este episódio decorre, as cenas humorísticas marcam presença pelas tentativas sucessivas de levar à ilha um hotel de luxo que salvaria a aldeia da ruína económica, um pouco como acontecia na "queda do paraíso", depois de um outro paraíso ser prometido, de The Profond Desire of the Gods. Se bem que a problemática é muito mais inconsequente aqui do que em Imamura, a verdade é que neste Pineapple Tours está bem presente o passado trágico (e secreto) da ilha bem como o presente incerto e um futuro apontando para a lenta destruição e estandardização do capitalismo moderno. Mas há qualquer raiz primitiva que subsiste, como anteriormente tínhamos referido. No segundo - e melhor - segmento, Haruko & Hideyoshi realizado por Yuji Nakae (um cineasta obcecado pela paisagem e a forma de viver dos habitantes de Okinawa), conta-se a história de um visitante que acaba por ser forçado (por artes transcendentes) a unir-se sexualmente com uma mulher e a casar com ela. A avó de Haruko, rezando ao deus da fertilidade, espera deixar o forasteiro Hideyoshi apaixonado e assim sucede na noite mesma em que morre. Esse primitivismo avassalador que une a fertilidade à morte, a geração à corrupção, o erotismo ao desequilibro, é magistralmente orquestrado por Nakae num traveling incrível que vai dos amantes na cama à avó ouvindo os seus gemidos e, por fim, agonizando. Na mais mística das sequências, prova-se que a verdade primitiva subsiste ainda e é contagiosa, isto é, despersonaliza os estrangeiros e fazem deles seus reféns (o que eram os yakuza de Sonatine senão figuras infectadas pelo primitivismo sagrado do lugar?). Infelizmente, o apuramento de Haruko & Hideyoshi (podia ainda falar do plano do parto: coisa magnífica) dá lugar ao comic relief patético de Bomb Kids, realizado por Hayashi Toma. Quanto a este segmento, pouco ou nada tenho a destacar: um casal desinteressante com rebeldias rockeiras deslocadas num final pouquíssimo digno para o que se estava a assistir. No entanto, se a cantora ganha a sua voz no final é porque Pineapple Tours é uma viagem ao centro de Okinawa. Para entendermos as contradições, o inexplicável e o sagrado temos de permanecer em silêncio e até lá reconquistarmos, a pouco e pouco, o que nos pertence.



Bodyguard Kiba 3 - Second Apocalypse of Carnage (1995) de Takashi Miike: 0
Igualmente medíocre como os outros dois capítulos, Bodyguard Kiba é um Miike precoce recheado de amadorismo e inexperiência. O argumento tosco assinado por Hisao Maki caracteriza-se pela sua fragmentação e pela ausência total de psicologismo ou consistência de personagens. As cenas de acção são frouxas, a cinematografia estéril e os interesses românticos embaraçosos. Isso não quer dizer que, no meio da barafunda, não haja alguns laivos miikianos próprios da sua fase V-Cinema, ou seja, típicos de quem podia arriscar dado o orçamento. Por exemplo, o início usa um flashback psicadélico do segundo filme, o título só aparece aos 12 minutos e a única cena de amor recria-se numa elipse esquisita com planos aproximados de corpos e fluidos. O que há de resto? Uma historieta, fina como papel, em que Kiba protege uma actriz arrogante de cinema, péssimas dobragens de inglês e cantonês e uma ânsia de ver terminada tão penosa sequela. Aconselhado para os colecionistas da obra de Miike e até para esses será difícil aguentar sem desesperar.



The Kiyosu Conference (2013) de Koki Mitani: ***
O novo filme de Koki Mitani parecerá ser, à primeira vista, uma proposta difícil de digerir para alguém que não esteja familiarizado com a História do Japão do final do século XVI. A bater nas duas horas e meia, trata-se da recriação da conferência de Kiyosu, o momento político decisivo em que quatro conselheiros decretaram o sucessor de Oda Nobunaga, falecido numa emboscada que ficou conhecida como o incidente de Honno-ji. Um desses conselheiros era Hideyoshi Toyotomi, aqui descrito como matreiro, personalidade importantíssima que anos mais tarde conseguiria lançar as bases da unificação do país juntamente com Tokugawa Ieyasu. Entramos rapidamente na intriga política quando os conselheiros apoiam descendentes diferentes para suceder a Nobunaga e quando o conflito de egos naturalmente é incendiado como um rastilho de pólvora. Ou seja, a partir daqui a História passa a ser mera curiosidade ou adorno, pois já nos entregámos às motivações dos personagens e é com eles que também aprenderemos (História, melhor do que nos livros, e Política à la Maquiavel). Mitani, que escreve argumentos sempre sólidos e despretensiosos onde as palavras são quase tão importantes como as imagens e onde as discussões acesas são características, desenvolve a teia que envolve cada um dos personagens e ateia o lume da ambição que os devora e os faz confrontar até chegarem aos objectivos pretendidos. Sempre com um refinamento humorístico que não impede de tratar os heróis históricos com vulgaridade, no fundo, tornando o épico mais real. Apesar da duração e dos intermináveis personagens (lamentamos que, com tão bom cast, não se consiga aproveitar todo o talento de forma equilibrada e justa) The Kiyosu Conference nunca chega a ser nem faustoso nem aborrecido. É um exercício, acima de tudo, entretido, com prestações constantes (destaco Koji Yakusho e Yo Oizumi) e com uma visão da política nada desactualizada. Ontem como hoje, a política raras vezes se distingue da rectórica. É a arte ilusória do convencimento e o convencimento resulta da união de vontades sempre heterógeneas.



Case of Kyoko, Case of Shuichi (2013) de Eiji Okuda: *
A pergunta que o actor Eiji Okuda nos lança neste seu quinto filme como realizador é simples: como recuperar a alegria de viver quando tudo desemboca na tragédia? E de facto para demarcar bem o seu ponto e para não restarem dúvidas, sublinham-se em demasia as tragédias da existência (umas mais intemporais, outras totalmente actuais) para tornar os nossos protagonistas, Kyoko e Shuichi, mais próximos de nós. Tirando as referências (maioritariamente televisivas) à situação do terramoto e as cenas finais rodadas nos destroços do maremoto, sequências silenciosamente fúnebres em que quase se dissolve a fronteira entre representação e realidade, Case of Kyoko, Case of Shuichi envereda por caminhos demasiadamente excessivos onde um pessimismo sem razão se infiltra para termos piedade pelas personagens esmagadas pelo azar. Não temos tempo nem disposição emocional para digerirmos todos os acontecimentos convenientemente: o terramoto, as perdas familiares, os homicídios acidentais e deliberados, os trabalhos e abusos sexuais, até um caso de homossexualidade reprimida. O resultado? Deixamos de sentir com genuinidade e acabamos por ver, por detrás, a estrutura gratuitamente masoquista do "desenvolvimento de personagem" através somente da dor e da adversidade. É como se a seriedade aqui fosse sinónimo de "quantas mais coisas chocarem, melhor". Não quer isto dizer que não vejamos o propósito destes momentos tão magoados e  negros a uma grande escala. Okuda diz-nos que esta desolação casa bem com o ambiente atordoado e melancólico do Japão pós-Fukushima. E algumas imagens até traduzem bem esse silêncio agressivo que se instala depois do trauma, por exemplo, as histórias de Kyoko e Shuichi nunca se encontram e quando passam um pelo outro, quando finalmente se situam no mesmo plano embora não se conhecendo, estão no meio das ruínas que unem o mesmo país na mesma dor. Quer isto dizer que tanto Kyoko como Shuichi podiam representar o azar e o desencontro de um japonês qualquer? Não, tudo por causa da artificialidade introduzida pelos momentos mais sensacionalistas. Não, não deveria ser assim que se escrevem personagens.



Hana-Dama (2014) de Hisayasu Sato: *
Poderíamos dizer que Hana-Dama não se atreveria a destoar do espírito satiano: à superfície, é chocante, ácido e visceral (sem excepção, as vísceras são sempre literais neste cinema), mas há aqui algo que nos aproxima mais dos perigos da reciclagem do que da bravura da originalidade. Ainda por cima quando, para o bem e para o mal, o cinema de Hisayasu Sato sempre fora pouco propício a fórmulas, a não ser quando lançava certos temas obsessivos, transpostos em imagens obscuras e aterradoras tais como a câmara de filmar (dicotomia erótica do sujeito e do objecto do desejo), computadores e máquinas (a fobia da automatização) e o sangue e a mutilação (o reencontro dos sentidos na esterilidade urbana). Hana-dama é uma fraca continuação do legado satiano, o legado em que a disfuncionalidade abre caminho para um mundo avesso e um mundo liberto de atrofias, a não ser as interiores. Em primeiro lugar, a audácia técnica não está presente: o estilo de guerilla que Sato executava nos anos 80, os planos arriscados e "artísticos", enfim, uma competência para questionar a imagem está aqui reduzida ao mínimo. A narrativa, deveras desinteressante com actores com talento duvidoso (e não esquecer como era surpreendente a presença das actrizes nos seus outros filmes) fala sobre a repressão da amizade de duas raparigas, colegas de turma. Se Sato queria abordar o tema hoje tão popular do bullying (e já houve um filme japonês a fazê-lo quase na perfeição: Blue Bird de Kenji Nakanishi) podia ter recriado imagens muito mais aterradoras do que as que fatalmente escolheu. Há aqui alguma imaturidade, quer na metáfora simples (demasiado mutante para pertencer à estilística de Sato) da "flor assassina", arquétipo da inocência arruinada que ceifa as suas vis causadoras, quer na evocação de certas imagens de marca (por exemplo, os conflitos familiares, sketches bacocos ou a cena final, orgia sangrenta de destruição - a única realmente satiana ) para preencher um argumento banal assinado por Shinji Imaoka, um realizador que apesar da sua experiência - e apesar de ter sido assistente de realização em alguns filmes de Sato - desenvolveu um estilo muito próprio que nada tem que ver com os ditos pesadelos satianos. Mais uma prova que os realizadores pink são uma espécie em vias de extinção, difícil de se adaptarem aos novos habitats cinematográficos.