31/03/14

Fragmentos de 2014/03/31




Wolves, Pigs and Men (1964) de Kinji Fukasaku: ****
Wolves, Pigs and Men é essencialmente um Fukasaku maduro avant la lettre, um objecto incrível e moderno que não só antecipa algumas das suas imagens de marca futuras (falo sempre a este propósito da câmara à mão mexendo-se obliquamente nas cenas rodadas em exteriores) como desenvolve tendências minimalistas que iria fatalmente deixar de parte no seguimento da sua carreira. Logo no genérico a condensação estilística e a síntese imediata de informação dão o mote para o que virá a seguir. Observamos, através de uma catadupa heteróclita de freeze-frames, sons jazzísticos e das sobreposições denunciadoras e agressivas de imagem, o crescimento marginal de um grupo de pobretanas que resolvem evadir-se do bairro da lata em que habitam. Fukasaku resume magistralmente a complexidade dos três evadidos (Ken Takakura é um deles) em pouquíssimos minutos, auxiliado apenas por fortes e sensoriais sequências que parecem explodir para fora do ecrã enquanto os vemos entrar no mundo negro das ruas criminosas de Tóquio. Um plano para roubar largas somas de dinheiro e drogas é executado pelo personagem de Takakura e outro tipo que subira na vida com ele e ambos pedem auxílio a um grupo de seis vadios liderado pelo seu irmão mais novo, interpretado por Kinya Kitaoji. O plano não corre como desejado e o medo de traição faz que os dois chefes enclausurem os seis jovens num armazém abandonado, localizado no bairro da lata em que todos cresceram. Esta situação dá a possibilidade a Fukasaku de desenvolver uma tensão particular entre os novos gangsters (os lobos) e os habitantes pobres do bairro (os porcos) pensada a partir do décor e da iluminação: várias vezes as sombras, os planos aproximados e o carácter rudimentar e primário do velho armazém impõem a soturnidade destes personagens presos na sua condição e dispostos a tudo para saciarem a ganância desmedida e, principalmente, os desejos vãos de mudar de vida. Neste sentido, ainda há espaço para a piedade (algo que seria apagado nos seus exercícios yakuza mais desprendidos e brutais da década de 70) quando todos esses esforços são detidos friamente pelos verdadeiros mafiosos, varrendo assim qualquer esperança e heroísmo que pertenceria a qualquer expectativa normal de visionamento. Portanto, o plano final do terceiro irmão, Rentaro Mikuni, andando sem rumo enquanto os residentes do bairro o apedrejam funciona como libertação das nossas vontades como espectadores. Enfim haja justiça no meio da lixeira.



Professional Killers (1973) de Yusuke Watanabe: ****
Quando vi pela primeira vez Outlaw Cop escrevi algures que se tratava do único filme do seu realizador, Yusuke Watanabe. Com muita surpresa constato que estava enganado: Watanabe tem ainda uns quantos títulos para comprovar e se todos os outros filmes tiverem a qualidade deste Professional Killers então temos mais um mestre totalmente desconhecido! Este é o primeiro capítulo de uma trilogia filmada para a Shochiku onde um grupo de três assassinos fazem justiça pelas próprias mãos, pois só aceitam matar aqueles que consideram ameaças para a sociedade. Um velho misterioso (So Yamamura), um ronin (Koji Takahashi) e um médico acupunturista (Jiro Tamiya) trabalham juntos para resolver um caso de sucessão de uma família rica. O que mais me fascinou foi o anti-sentimentalismo destes personagens, prontos sempre a matar silenciosa e profissionalmente, passando por cima das suas emoções e intuições. Este seu heroísmo atípico contraria muito o tempo melodramático que sempre se deu às películas de acção japonesas em que o protagonista devia ser, acima de tudo, um modelo ético. Uma vez que não há espaço para romances, moralismos sem violência, ou mesmo encontros significativos (o facto genial de o médico Baian nunca ter a certeza se o alvo do seu assassinato era mesmo a sua irmã há muito desaparecida), Professional Killers é sóbrio nas emoções, mas explosivo na estética: não há um plano que não esteja recheado de cores e induza a ambientes festivos. Os próprios assassinatos são filmados sem qualquer peso e a câmara, sempre bem posicionada, cativa-nos o olhar sem qualquer esforço. É, de facto, um exercício muito entretido, bem realizado e com aquela economia dramática que tanto aprecio. Esperemos que as outras duas sequelas sejam tão espantosas como esta!



Traffic Jam (1991) de Mitsuo Kurotsuchi: ****
Há uma cena que sempre me deu calafrios na espinha no Week End de Jean Luc Godard. Arriscar-me-ia a dizer que a cena vale o filme. Falo, como não podia deixar de ser, daquele memorável e endiabrado traveling onde se mostra um engarrafamento interminável. É o típico exemplo do plano-síntese, num só rasgo, num só momento, conseguimos contemplar o inferno das famílias burguesas quando têm de passar o tempo juntas, com os seus passatempos administrados a conta-gotas e feitos no meio da confusão e anarquia higiénica dos seus semelhantes. Talvez esse plano ressoe em mim dessa forma porque nele via algumas das minhas férias e aquela tristeza de se querer descansar no meio da mais desconfortável e absurda das confusões. Godard, que queria corroer o modelo comportamental da burguesia não previu que, na viragem do novo milénio (mesmo muito antes, decididamente já em 1991) esse modelo tinha-se apoderado de todas as famílias, criando uma espécie de fatalismo: por mais que nos esforcemos, por mais que sejamos diferentes, acabamos no trânsito das nossas férias e esperanças. Este inferno que veio da ânsia de escapar ao trabalho, de rever a nossa casa, de refrescar a humanidade. Portanto, o filme de Mitsuo Kurotsuchi, quando segue uma família em viagem à terra natal que perde os seus valiosos cinco dias de férias presa no trânsito, reflecte esse terreno comum e irrecuperável das nossas vidas. Ele descreve o périplo melancólico de uma família (burguesa, mas quais não são?) com uma lucidez tocante. Não a quer destruir, agredir ou castigar (talvez perceba que essa guerra já está decidida) mas identificar-se com a sua dor, os seus risos, a tal ânsia de escapar momentaneamente. Traffic Jam é, ainda hoje, uma maravilhosa e sensível meditação sobre a vida moderna.



The Hit and Run Family (1992) de Toshiyuki Mizutani: ***
Já o dissemos muitas vezes. Ao contrário da maior parte das cinematografias nacionais, na japonesa encontramos um género quase único de filmes que se concentram nas peripécias das famílias burguesas. De todos os exemplos que me ocorrem, a maior parte são comédias, ou pelo menos, resultam em cenas meio absurdas, risíveis ou caricaturadas onde, por exemplo, os papéis de cada membro se confundem e, por momentos, tudo acaba em anarquia e de pernas para o ar. Uma coisa é certa: os cineastas usaram o tema da família (e ainda usam, veja-se o caso recente de Like Father, Like Son de Hirokazu Koreeda) para denunciar a perda de contacto, a atrofia dos afectos e um certo sentimento de "estar-se sozinho, acompanhado" que veio imiscuir-se no seio mais básico e primário da sociedade. Nesta proposta de Toshiyuki Mizutani, que ecoa outros dois grandes filmes sobre famílias à beira de ataques de nervos - The Family Game e The Crazy Family -, a mais insólita das situações proporciona a união de uma casa dispersa e anteriormente sem projecto comum. O chefe de família atropela uma jovem e foge sem lhe prestar ajuda, o que desencadeia cenas hilariantes, salpicadas de humor negro, nas quais se tenta, por exemplo, esconder e desmantelar a prova do crime, o carro, ou ainda se tem de ludibriar a vizinha bisbilhoteira e com uma imaginação muito fértil. O sentimento que estão todos implicados cria a sensação de uma missão comum e mesmo que, às vezes não se apoiem, esta família redescobre-se nas situações más, naquelas que, justamente, escapam ao quotidiano burguês, horizontal, propício ao egoísmo. É exactamente a mesma mensagem de todos os outros filmes (inclusive a de um caso mais recente, Tokyo Sonata de Kiyoshi Kurosawa) e há cenas que são recorrentes a todos eles: o jantar de família no meio do caos, o gosto em estropiar os objectos caseiros, mas principalmente, a necessidade de rebentar com o próprio lar onde se vive, que conduz à verdadeira catarse familiar, aqui encarada como libertação das amarras sociais e espaciais (porque também o filho liberta o lagarto em Okinawa, esse lugar paradisíaco onde a família homeless ri com o horizonte pela frente).



Birthright (2010) de Naoki Hashimoto: 0
Uma rapariga é sequestrada e mantida em cativeiro durante cinco dias por uma estranha que espia obsessivamente a sua casa e a sua mãe. O distanciamento da câmara de Hashimoto revela-se, desde logo, problemático. A duração dos seus planos é demasiado longa e o que se passa neles é insuficiente, quer em termos emotivos, quer na continuidade da escassa e pastelona narrativa: esta impede-se a si mesma de avançar, parando nas mesmas acções e nos mesmos espaços, meditando sobre coisa nenhuma e aborrecendo-nos várias vezes. Há ainda uma tentativa frustrada de dar profundidade psicológica à agressora, engendrando uma trama típica de vingança e conflituosidade familiar mas podemos dizer que, no final, a brutalidade previsível da última cena, ainda que bem filmada, não nos transmite quase nada. E é difícil isso acontecer, visto que passámos mais de hora e meia com as mesmas duas personagens, silenciosas, no negro e a violentarem-se por razões doentias, robóticas e dificilmente relacionáveis. Era preciso mais, muito mais para toda esta formalidade austera de tão discreta encaixar num sentimento de compaixão ou injustiça. Era preciso que as boas ideias de enquadramento pudessem ser mais do que boas ideias de enquadramento, pudessem relacionar-se invariavelmente com os seus personagens. Birthright é, assim, um filme cujas falhas tapam uma certa coragem de não se ser óbvio.



Shady (2012) de Ryohei Watanabe: ***
Vê-se que o estreante Ryohei Watanabe quis dar tudo por tudo no seu primeiro filme Shady. Hoje em dia esta energia numa primeira realização é a excepção à regra e podíamos mesmo considerar este exercício ousado. Ousado, em primeiro lugar, porque mistura arriscadamente uma naturalidade na descrição das primeiras amizades femininas (quase documental e reminiscente de um Shunji Iwai memorável, Hana and Alice) com a desrealização e a queda no abismo dos pesadelos que tal relação, por ser perigosamente exclusiva, por ser resgatada à revelia da opressão das colegas, e por ter contornos confusamente sexuais, acarreta. O "horror" presente na segunda metade é, em tudo semelhante, ao Audition de Takashi Miike: não é o desconhecimento transposto numa exterioridade outra que nos assusta, mas sim os medos e as intuições que povoam as relações do dia-a-dia e que se desbloqueiam descontroladamente à nossa frente em forma de avalanche macabra e interior. Watanabe, portanto, está no bom caminho. Veja-se como a sua montagem nos engana e brinca com as nossas expectativas (por exemplo, somos levados a acreditar que a narrativa é contada retrospectivamente pela protagonista adulta), veja-se como Misa e Izumi são personificadas pelas duas jovens, também estreantes, mas já talentosas actrizes, Mimpib e Izumi Okakura, note-se, finalmente, como há aqui um esforço digno de realização expressiva e jamais a cedência à estética independente ("ausência de truques, porque o cinema não é espectacular") que povoa as mentes dos jovens realizadores japoneses e não só. Fixem o nome. Pode dar que falar no futuro.



Why Don't You Play In Hell? (2013) de Sion Sono: **
É impossível assistir ao novo filme de Sion Sono e não se deixar ser engolido pela ironia corrosiva que nele habita. Esta comédia histriónica, exagerada e irreal parece ser apenas uma versão "pipoca" do estilo assaz particular (para mim, irritante) e cada vez mais saturado do cineasta para alguns tão aclamado. Por exemplo, deixaram-se aqui aqueles momentos tão constrangedores do seu cinema onde a componente super-dramática estava associada a irregularidades morais e comportamentais que desembocavam em reacções histéricas acompanhadas com música erudita. Sono, todavia, continua a ser dos cineastas mais doentia e inadequadamente extrovertidos, quer dizer, há no seu estilo a ânsia barroca de sair dos eixos, gritar a plenos pulmões (quantas vezes, nos últimos anos, vemos esta cena repetida nas suas películas?) e descrever mundos fantasiosos onde a lógica tem pouquíssimo poder. Desde os primeiros minutos até ao final propositadamente ruminante e ridículo, Why Don't You Play In Hell? obriga-nos a entrar no mundo do cinema. Não há nada nele que nos transmita a mínima gota de realidade: tudo é uma projecção insana, resultando no jogo de "lugares-comuns" do cinema popular (yakuza, artes marciais?) e há mesmo oportunidade para a citação (a música do mítico Battles Without Honor and Humanity ou até mesmo o famoso pan das nuvens de Throw Away Your Books, Rally In The Streets) e reciclagem (para alguns, o defeito de se repetirem músicas de outros dos seus filmes confirma esta intenção de Sono auto-consciencializar a sua plateia da farsa entretida que estão a ver). Porque se trata apenas de cinema, de mentiras, também esta paródia hiperbolizada e over the top aos filmes de yakuza serve de elegia fúnebre ao cinema feito em película. Sono, portanto, não demonstra grandes sinais de nostalgia pela velha tecnologia e arte (embora subscreva, à sua maneira irregular e estranha, a tremenda energia louca de uma rodagem) e não hesita em criar autênticas contradições propositadas de imagem quando chegamos ao fim. De facto, o desprendimento artístico, ver paródia meta-crítica, da orgia CGI lá para o final chega a causar confusão (e indigestão estética) pela forma bruta e declarada como está apresentada, criando os tais jogos que equivalem o filmado à ilusão, mesmo quando no próprio filme o excesso e a artificialidade idiota dos efeitos especiais seja parte da realidade. Há quem consiga ver esta sequência sem ironia? Há quem pense que esses efeitos queriam simular o real? Para provar que os 35mm morreram (e com eles, todos os astros por si captados), Sono teve de chacinar o seu próprio filme com tecnologia moderna para talvez mergulharmos de cabeça na sua fogueira foliona e alarve. Seja guilty-pleasure ou não, surpreendentemente esta brincadeira resulta melhor do que o esperado.

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