27/08/14

Fragmentos de 2014/08/27




The Broken Commandment (1962) de Kon Ichikawa: ****
Já Keisuke Kinoshita nos anos 40 com Apostasy tinha adaptado o romance de Toson Shimazaki ao grande ecrã. A obra literária original, Hakai pretendia ser um manifesto social sobre a discriminação dos burakumin, uma casta ostracizada que durante séculos se situou no fundo da hierarquia social japonesa. Kinoshita, na sua versão da história do jovem Ushimatsu, um burakumin que esconde de todos as suas origens até ao dia em que tal não é possível e tem de, finalmente, assumir-se, parecia apontar bastante mais para a mensagem clara da conquista dos direitos da igualdade social. O irracional, o hábito nefasto e os vícios geracionais eram quebrados pela racionalidade de alguém que chegava ao fim do sofrimento silencioso e se rebelava contra aqueles que outrora queria pertencer. Ora, se na versão de Ichikawa se conserva claramente essa mensagem (ela é o denominador comum e talvez a razão da sua popularidade), a inclusão de certas referências ou desvios conferem à obra um carácter definitivamente mais exótico e, se quisermos, mais ocidental ou até mesmo de cariz cristão. Veja-se logo no início a feroz cena do confronto do pai de Ushimatsu com um touro enraivecido. Serei o único a ver nesse duelo inútil as forças demoníacas a vencerem a casta discriminada? A força do destino a abalar, de uma só vez, o povo subjugado? Mais à frente, Ushimatsu encontra Rentaro, um escritor burakumin, cuja vida e obra se centra unicamente na denúncia do tratamento da sua gente. Ushimatsu, que esconde as suas origens, corresponde-se com o escritor na esperança de poder venerar secretamente um herói realmente justo. Poder rever-se em silêncio no seu carisma. Não é esta uma relação semelhante a que uniu os apóstolos a Jesus? Principalmente, Pedro que o iria negar três vezes quando a sua vida se encontrava realmente em risco? Também Ushimatsu nega Rentaro numa cena que, estando também presente na versão de Kinoshita, não atinge o mesmo grau de paroxismo presente aqui. Também Rentaro é filmado como um mártir e a sua emboscada na neve, como o calvário de Cristo, é tratado com a devida tragédia e absurdidade. Portanto, as cenas mais poderosas são as que confrontam Ushimatsu com o desenrolar da sua missão e esse processo de descoberta ou iluminação parece ser o interesse primordial de Ichikawa. Os seus enquadramentos (a maneira como capta o preenchimento dos espaços) parecem sempre colocar os personagens nas esferas de poder ou impotência que lhe são confinadas. Já que a obra original reflecte, primeiramente, as desigualdades de poder, Ichikawa não se esquece que a fotografia - e não a psicologia - imprime uma sensação imediata e profunda de comentário social.



Emblem of a Man (1963) de Akinori Matsuo: **
Emblem of a Man, primeira instalação de uma das séries ninkyo mais populares da Nikkatsu, teve mesmo direito a nove sequelas e firmou a popularidade do actor Hideki Takahashi, esse que dois anos mais tarde teria um dos papéis chaves da sua carreira com Life of a Tattoed Man de Seijun Suzuki. A película de honra e galhardia, hoje previsível, assinada por Akinori Matsuo começa por estabelecer, em traços gerais, algumas regras que viriam a ser bastantes vezes repetidas neste género tão popular: um yakuza perdido entre dois clãs rivais, o dilema entre a honra (guerra) e a humanidade (paz) e a fixação, vulgo fetiche, pelos ritos iniciáticos que permitem ao personagem conhecer o mundo dos yakuzas através de certos símbolos masculinos (como a espada, as tatuagens, etc.). Apesar de cinematograficamente tudo ser um pouco rotineiro, a cena de abertura, de longe a mais satisfatória de todo o filme, joga com o silêncio (ou melhor, o som do silêncio) da chuva e apresenta-nos um assassino com pés silenciosos e um homem e uma criança dormindo calmamente. Entramos logo no mundo brutal dos yakuzas quando o assassino é violentamente esquartejado entre sombras e um fusuma ensanguentado e a criança foge a chorar pela violência instalada. Anos mais tarde, a criança - filho varão do chefe yakuza - está a estudar medicina e não parece interessado em seguir as pisadas da família: saberemos mais tarde que aquela noite ainda o persegue quando se encontra sozinho. Este herói improvável, a dois passos pertencente e estrangeiro dos costumes e brutalidade de tal mundo, talvez difira dos galãs mais usuais do género (lembre-se os actores da Toei), homens sempre muito mais robustos e preparados para aceitar e provocar as atrocidades. Emblem of a Man é, como se disse, um filme de iniciação. De iniciação de um mundo sem misericórdia onde a justiça tem de ser feita pelas próprias mãos, um mundo onde as mulheres não podem ou devem entrar (a apaixonada que a certa altura confessa não entender a razão de tanta vingança e sangue derramado), em suma, um mundo trágico onde o crescimento implica uma familiarização com a morte dos outros e do próprio.



Trapped in Lust (1973) de Atsushi Yamatoya: ***
Atsushi Yamatoya completa aquela que poderíamos chamar de "trilogia desconstrutiva de hitmans e quejandos" sendo que os outros dois capítulos dessa malfadada trilogia eram o seu Inflatable Sex Doll of the Wastelands e, obviamente, Branded to Kill de Seijun Suzuki. Desta trilogia equívoca e obsessivamente surreal composta por uma verdadeira geração transgressora (relembremos os mais marcantes argumentistas da já citada película de Suzuki: Yozo Tanaka, Chusei Sone, Seiichiro Yamaguchi e Atsushi Yamatoya) encontramos uma necessidade plena de abstração, como se as regras do cinema fossem sempre completamente postas de parte em função de uma sátira que tudo tem de bizarro e estiloso. Trapped in Lust, sendo a película mais tardia das três, era testemunha da era dos filmes pink e foi como filme erótico que Yamatoya e o argumentista Yozo Tanaka o conceberam. Produzida de forma independente foi depois ajudada na distribuição pela Nikkatsu, o mesmo estúdio que em 67 despedira Suzuki pelos excessos estílisticos e desde 71 se dedicava apenas ao Roman Porno. Neste sentido, Trapped in Lust contém alguma da inspiração absurda de Branded to Kill, chegando quase a ser grande parte to tempo grotesca (veja-se, por exemplo, o hitman ventríloquo) e outra parte pouquíssimo sensual já que a atmosfera é tão difícil de digerir. Bizarro também pode parecer o final, zombaria meta-cinemática, à semelhança do desenlace de Goro Hanada do filme de Suzuki. Só que aqui Yamatoya está ainda mais decidido em mandar toda a verossimilhança pelos ares, distanciando finalmente toda e qualquer relação possível com a plateia.



Beauty in Rope Hell (1983) de Genji Nakamura: *
Talvez o autor mais adaptado para dar vida aos devaneios eróticos nas fitas da Roman Porno tenha sido Oniroku Dan. Para quem não saiba, Dan especializou-se na escrita sado-masoquista e frequentemente as suas histórias giravam em torno do aprisionamento e humilhação. Parafraseando-o: "o meu conceito de S&M é desejo sexual distorcido ou desorientação extrema. É uma fantasia masculina derivada do amor: ver uma beldade sofrer através da vergonha. Portanto, o meu estilo contém uma estética romântica e, às vezes, uma fragância decadente." Genji Nakamura, contratado especificamente pelo estúdio para reavivar as febris fantasias do autor, escolheu a belíssima e novata Miki Takakura para contracenar neste conto violento sobre uma paixão doentia, primeiramente não correspondida mas que acaba, como quase todas as criações de Dan, num bizarro síndrome de Estocolmo. A verdade é que estando longe de qualquer brilhantismo, Beauty in Rope Hell fica assombrado pela presença de Takakura, uma presença mais do que erótica, eminentemente cinematográfica. Fora desses seus jogos de inocência que se entregam e, ao mesmo tempo, rejeitam o agressor e o nosso olhar, não há quase nada de significativo a assinalar. Um punhado de cenas idiotas (algumas até desagradáveis como as cenas no bordel) e um protagonista masculino fortemente desinteressante povoam a maior parte do filme e a realização de Nakamura, tirando a cena final banhada pelo pôr do sol exótico, também não se destaca por aí além.


 

Midwinter Camellia (1992) de Yasuo Furuhata: *
Já se disse aqui que Yasuo Furuhata é o realizador que pior representa uma espécie de tradicionalismo melodramático, portador de poucas virtudes e muitos vícios. Parece que estes dramas protagonizados quer por homens amarrados ao seu passado, quer por mulheres impossibilitadas de amar devido à sua condição social ou profissão transmitem qualquer coisa de erradamente essencial ao público japonês, como se alguém nos dissesse que a melhor história de amor da humanidade está no Titanic de Cameron. Midwinter Camellia junta as duas personalidades típicas de Furuhata, homem e mulher, numa relação paternal que se confunde com amor. Por um lado, temos representado um certo tipo de masculinidade tradicional, tão conhecida por nós que não se presta a complexidades (apesar do talento óbvio de Toshiyuki Nishida) e, por outro, a feminilidade capaz de aguentar todos os sacrifícios e sonhar com o seu salvador. O que há de realmente japonês aqui é, não a impossibilidade do amor (no sentido em que não se efectiva algo consumado), mas a prevalência de um amor à distância, platónico se quisermos, que nunca chega a colher os seus frutos porque a carnalidade é coisa que arruína e envergonha. Com efeito, Furuhata controla esses lugares comuns, filmando personagens que nunca conseguem evadir-se do bálsamo da tradição romântica. Veja-se como uma produção aparentemente tão diferente das películas de acção se entrega aos devaneios desse género tão bem conhecido pelo realizador, criando um assalto violento final aos vilões com sangue, lágrimas e (pseudo)mártires? Mas o que mais nos distancia desta reciclagem é a falta de capacidade que as imagens têm de nos segurar à frágil intriga.



Dying at a Hospital (1993) de Jun Ichikawa: *****
"Nos programas de televisão, os pacientes curam-se muito mais rápido", queixa-se uma paciente a outra enquanto está internada no Hospital (onde quase nunca saímos) aguardando inexoravelmente a morte. Em Dying at a Hospital, Jun Ichikawa não arreda pé de uma rigidez formal sui-generis e o seu cinema não está cá para mentir, idealizar ou maldizer. Tão pouco está interessado em contar uma narrativa em três actos com protagonistas, implicações psicológicas, críticas ou tomadas de posição arrojadas. Se existe um cinema hospitalar, ou seja, um cinema que encara de frente as relações dos doentes com a morte e dos médicos com os doentes, esta é a única referência possível. Mas, o fluxo horizontal das imagens torna-se problemático ao espectador mais distraído. A maneira como se aplica repetida e cirurgicamente o mesmo plano aberto das camas, doentes, médicos etc. , pretende um distanciamento quase cruel, já que de modo episódico e ousaríamos dizer desprendido vamos contactando com o local onde várias pessoas darão o último suspiro, esse local dos últimos desejos e das derradeiras visitas. A câmara, permanecendo sempre na mesma posição, só nos concede a perspectiva de um olhar quase morto, semi-cerrado, também ele preso talvez a uma cama hospitalar, que quer compreender mais e não pode, que quer olhar mais e não pode, que quer viver mais e não pode. Portanto, através desta "morte do olhar" ou daquilo que poderíamos apelidar "redução gramatical do cinema", Ichikawa parece paradoxalmente encontrar a visão mais ampla que resgata a unidade das coisas. Como filmar o local onde as pessoas encaram a morte sem tentar descobrir ou apontar para a homogeneidade das emoções, a colectividade dos sentidos, no fundo, a identificação da plateia com os entes filmados sem recorrer à psicologia e a truques de ilusionista? O único artíficio que Jun Ichikawa aplica de bom grado é expresso em imagens paralelas que representam a dialética entre a vida e a morte, portanto, as únicas vezes em que saímos do Hospital. Mas mesmo nessas imagens abstratas e quotidianas, que nos fazem recordar os "pillow shots" de Yasujiro Ozu, pelo modo como intervalam o drama com a vivacidade melancólica do "mundo lá fora", há um desnível curioso. Aí, Ichikawa decide filmar a "vida" sem ficção, colecionando imagens naturais sem qualquer filtro dramático, o que revela, poeticamente a sua fugacidade e beleza (precisamente devido à sua imediatez) como se esses "skecthes", que interrompem até esteticamente a dura formalidade do resto mas são esboços da totalidade de todas as vidas, estivessem a ser observados pela janela da memória de um quarto hospitalar. Tudo, por mais insignificante que pareça, atinge um sentimento de plenitude, apesar de também tudo nos escapar por entre os dedos. Raramente um filme é capaz de nos emocionar pela sua estrutura formal (só Ozu e outros raros conseguiram tal façanha). Os japoneses chamam "mono no aware" a esta comoção pela totalidade das coisas e é difícil encontrar um filme como Dying at a Hospital, filme que constantemente nos imprime na retina esse sentido e sentimento complexo.



The Bicycle Thief Was Bad (2006) de Tadakazu Takahashi: *
O minimalismo costuma ser a marca estética mais em voga dos cineastas (japoneses) independentes. Divisas como "less is more" (perdoe-nos Robert Browning e Mies Van der Rohe) parecem andar de mãos dadas com uma espécie de economia radical nos diálogos, na psicologia e na arte narrativa. Se estes cineastas/filmes têm uma preferência, ela concentra-se na direcção de fotografia, suposta criação de imagens confrontacionais entre os personagens mudos e as paisagens solitárias e misteriosas. Sim, para os cépticos The Bicycle Thief Was Bad é mais um road-movie onde o protagonista quase não emite sons, quanto mais palavras (essas só aos 30 minutos) e ocupa a maior parte do tempo praticando obsessivamente uma acção (neste caso, andar de bicicleta sem rumo, abandonando as que se estragam pelo caminho e roubando outras para continuar a odisseia). Não sou inimigo do minimalismo (não seria amante de cinema japonês se o fosse), porém Takahashi claramente não tem a apetência para pegar nestas imagens e construir uma trama que verdadeiramente ficasse iluminada pela repetição e pelos tempos mortos tão demarcados. Outros cineastas como Masahiro Kobayashi fizeram-no melhor, isto é, conseguiram filmar a repetição sem cansar, conseguiram filmar as palavras que o silêncio esconde, em suma, conseguiram tornar o "menos" em "mais". Prova de que isso não acontece tão bem aqui é a revelação, perto do final, do passado do protagonista através de um encontro e diálogos completamente forçados, caídos não se sabe bem onde, e que muito racionalmente explicam o fundamento de tudo o que se viu anteriormente. Esse desequilibro crasso entre forma e conteúdo (sendo o conteúdo no final de contas despachado e não construído lenta e minimalmente) torna o filme de estreia de Tadakazu Takahashi um exemplo insuficiente de minimalismo, a despeito de algumas boas imagens.



Locked Out (2009) de Yasunobu Takahashi: **
Produção independente e certamente contida no orçamento, Locked Out é um pequeno filme razoável, indefeso, pouco preconceituoso e com o mínimo de assinatura. Yasunobu Takahashi encena um road-movie de enganos que junta Hiroshi, um forasteiro desempregado que vagueia pela noite sem rumo no seu carro e Keita, uma criança de seis anos que se perde da mãe no supermercado. Mais do que o esperado humor chaplinesco desse encontro acidental entre vagabundo e menino, o que mais ressalta neste exercício é uma raro sentimento de tensão que dá a impressão que qualquer coisa de brutal pode acontecer a qualquer momento. Takahashi consegue renegar todas as expectativas que ele próprio constrói e mostra-nos que o desenlace mais casual, aquele que não recorre ao artifício dramático nem à violência postiça, pode ser o mais viável e até, porventura, o mais emocionante.



Chiri (2012) de Naomi Kawase: ***
Chiri, na obra documental de Naomi Kawase, representa uma última carta de despedida. Não é estranho que uma obra que se iniciou expondo directamente aquilo que rodeava a jovem realizadora, necessitasse, digamos assim, de um epitáfio, de uma silenciosa vénia a tudo aquilo que cresceu com ela e connosco e foi afectado irremediavelmente pelo tempo e fenece. O filho de Naomi, cujo nascimento tínhamos assistido em Tarachime está mais crescido e já fala e, com 95 anos, Uno Kawase, a mãe adoptiva da realizadora, sem dúvida, a grande força motriz de quase todos os seus documentários desde Embracing até hoje, prepara-se para deixar este mundo. Chiri abre com planos aproximados do corpo enrugado e gasto de Uno a tomar banho: claramente cada ruga conta uma história e a velhice é um exército de experiências e vidas. A forma invasiva e despudorada como Kawase expõe a sua velha "mãe" foi já motivo de alguma polémica, mas esta exposição consegue transformar-se aqui em lamento poético, elogio fúnebre ou aquela ansiedade de proferir palavras e expressar afectos, sabendo que esses podem ser os últimos. Kawase também redobra em referências a relação com a sua educadora. O documentário Katatsumori, em especial, é várias vezes citado e inclusive projectado no quarto de hospital: nele podemos ver quanto tempo passou e através dele estabelecemos as relações intra-fílmicas com a vida destas duas mulheres. Claro que nos comove a perda de capacidades e a lenta partida de Uno Kawase como se ao ver chegar o fim conseguisse abstrair-se daquele objecto estranho que é a camara e olhar sem desvios para nós e para a sua filha adoptiva. Neste sentido, Kawase não explora a morte do seu ente querido, mas tenta construir um último produto que eternize a sua vida a fugir pelos dedos. Um epitáfio também para este estranho estilo documental intimista.



A Woman and War (2013) de Junichi Inoue: **
Para muitos um exercício revoltante e gratuito, A Woman and War está longe de angariar consensos. Nicholas Vroman inclusive descreveu a infâmia nas seguintes palavras: "o sexismo habitual que reina no cinema japonês contemporâneo é exercitado ao máximo nesta execrável porcaria disfarçada de cinema arrojado." Outros críticos, como Tom Mes, elogiaram o regresso tardio de um suposto legado deixado pela geração de Koji Wakamatsu, isto é, o pink político, aquele cuja linguagem sempre fora incendiária, provocatória, chocante e que sempre dividiu mais os espectadores do que consolidou. É verdade que o realizador Junichi Inoue e o argumentista Haruhiko Arai (este último um veterano conhecido pelos seus argumentos radicais) podem ser considerados "filhos" de Koji Wakamatsu: um foi assistente de realização nos seus últimos filmes, outro escreveu uma das suas películas e esteve envolvido na feitura do incrível Gushing Prayer. No entanto, não podemos deixar de assinalar que essa herança traz consigo certas virtudes e certos vícios. Como virtudes, teremos de apontar a liberdade crítica da proposta, uma espécie de mergulho nas trevas bélicas nipónicas, construindo um olhar completamente desolador e patológico dos efeitos da guerra nos indivíduos. Fica comprovado pelos personagens (por um lado, um escritor falhado tornado argumentista e uma prostituta que decidem ter relações sexuais até a guerra acabar, e por outro, um ex-militar mutilado que só consegue retirar prazer na morte e violação das suas vítimas) que não há nada capaz de subsistir a essa visceralidade que já não é mais erotismo porque apagou qualquer traço de prazer, redenção ou unidade. O desespero deste Japão arruinado e vazio (Mes chamou à atenção que as limitações de orçamento tornaram ainda mais sepulcral esta Tóquio em escombros e sempre deserta) e o mal estar sexual associado a essa instabilidade consegue de algum modo superar a ideia, já muito trilhada e óbvia, de que a guerra é monstruosa. Porém, os vícios também se deixam ver com alguma facilidade. Da genética tardia wakamatsuana (os seus filmes rodados em digital), Inoue herdou os defeitos de uma realização pouco cuidada (o mesmo não se dirá, portanto, da direcção de actores), por vezes tremendo a câmara e executando zoom's completamente amadores e desnecessários. O último terço do filme é, também, francamente menos interessante quando parece haver a necessidade de ligar a história do casal à do serial killer, servindo-se de uma cena artificial que traduz bastante pior a atmosfera que havia no resto. Longe do ódio e do amor, da veneração e da rejeição, A Woman and War é um caso relevante de como as intenções do pink ainda respiram e são capazes de fazer os seus estragos!

08/08/14

Fragmentos de 2014/08/08




The Blue Mountains (1949) de Tadashi Imai: ***
New Blue Mountains (1949) de Tadashi Imai: **
Tadashi Imai tem duas facetas. Por um lado, a do fatalista irado que se consubstancia em tragédias anti-bélicas, anti-feudais e anti-fascistas e, por outro, a do gentil democrata que filma dramas modernos do pós-guerra criticando ainda as mesmas raízes nefastas do pensamento tradicionalista e debruçando-se numa nova era de justiça e igualdade. O popular The Blue Mountains e a sua sequela directa, lançada no mesmo ano e partindo imediatamente onde o outro tinha ficado, faz parte do segundo paradigma atrás descrito. A presença da professora Shimazaki deve ter sido explosiva na altura em que Blue Mountains estreou: pela mão do esquerdista Imai, ela representava a nova mulher saída da democracia japonesa ainda muito recente. Quando ela se insurge contra os (maus) costumes de então, esgrimindo argumentos a favor da liberdade de uma das suas alunas poder sair com um rapaz, a guerra com a comunidade só podia ser uma certeza como se esta nova democracia, ainda de matriz masculina, estivesse pelas costuras quando confrontada com vícios culturais que não se mudam de um dia para o outro. De facto, a cena da discussão na sala de aula é o que faz deste filme um marco tão especial do chamado cinema do pós-guerra. Em primeiro lugar, porque não demoniza o passado constrangedor de uma nação cheia de erros e coloca as duas perspectivas em diálogo: as alunas que reprimem a colega para defender a (falsa) honra da escola e Shimazaki (não é inocente ser uma professora de inglês, visto que o Japão ainda estava sob domínio americano). Em segundo, porque discute abertamente o estatuto da mulher numa sociedade onde o seu futuro passava ou por ser prostituta, ou por ser esposa por conveniência (veja-se a este propósito o primeiro encontro sexista da professora com o médico Numata). Infelizmente, os méritos da obra de Tadashi Imai param por aqui. Já no final da primeira parte e ao longo de quase todo o segundo filme há uma intriga mais desinteressante que passa por ludibriar uma associação de pais e o relacionamento um pouco artificial da médica com o professor. Claramente interessado em não tornar a sua mensagem demasiado pesada, Imai cede às tentações mais superficiais do crowd-pleaser.



Lord Tokugawa Ieyasu (1965) de Daisuke Ito: ***
Este épico histórico, antepenúltima produção do pai do jidai-geki antes da reforma, é uma dramatização dos últimos anos da era Sengoku, sem nunca esquecer os seus principais protagonistas e os jogos políticos que poderiam significar o extermínio de um país. Apesar do título e da duração - quase duas horas e meia, o que faria expectar uma narração integral das aventuras do unificador Tokugawa, desde o seu nascimento até à sua morte -, tem-se aqui matéria prima para contar apenas metade da sua vida, parando obviamente no início da aliança inusitada com Oda Nobunaga (grande e lunática prestação de Kinnosuke Nakamura). A verdade é que o personagem Tokugawa Ieyasu só tem significado numa narrativa que descreve ostensivamente aquilo que o circunda, o influência e o repudia. São esses personagens aparentemente secundários da infância e mocidade (a mãe dramaticamente entregue a outro senhor, o pai moribundo, o abade mestre, os servos leais e, claro, Oda) que pintam o período histórico e dão outras cores mais complexas à maturação de Ieyasu. Se os relatos livrescos dizem-nos que Tokugawa era astuto e nobre, mas talvez demasiadamente matreiro, Ito nesta sua versão trata-o sempre como um herói justo e quase inconsciente na sua bondade. Mesmo que o filme supere a realidade, esta é um versão cuidada de uma época muito especial da História Japonesa. A ver também pelos supremos movimentos de câmara e pela batalha final pintada a azul.



The Wife of Seishu Hanaoka (1967) de Yasuzo Masumura: ****
No centro dos filmes de Masumura, independentemente do tempo e do lugar, estão as mulheres - como estão também na obra de Kenji Mizoguchi, Kiju Yoshida ou Kaneto Shindo (este último assinou este argumento). Particularmente nos seus filmes de época, onde se substitui a crítica rápida e desenfreada à sociedade de consumo e à ganância humana por uma meditação rigorosa sobre o papel esquivo da mulher na sociedade feudal. Propondo-se contar as descobertas surpreendentes no ramo da cirurgia de Seishu Hanaoka, o primeiro médico conhecido por operar um paciente com anestesia geral, Masumura parece muito mais interessado em focar a sua atenção na conflituosidade doméstica de Kae, a esposa por encomenda do cirurgião com a calculista Otsugi, a mãe dominadora e verdadeiramente a chefe de família (duas actrizes, Ayako Wakao e Hideko Takamine no seu melhor). À semelhança de Seisaku's Wife, outro filme de Masumura onde não havia qualquer tipo de permissão para uma esposa poder ser alguém fora das obrigações incutidas pelo dever social, esta mulher de Seishu Hanaoka parece mesmo viver sob a ditadura silenciosa da sua sogra e a sua existência resume-se a trabalhar e a continuar a linhagem da família dos médicos. Masumura varia aqui o seu registo das "escravaturas humanas" e das "vontades reprimidas", responsabilizando um valor cultural não necessariamente masculino, porque também incutido e patrocinado pelas mulheres. Com o médico em segundo plano, obsessivamente tentando desenvolver o anestésico que o tornaria famoso, as duas mulheres competem silenciosa e fatalmente pela sua atenção e não deixa de ser melancólica a maneira como ambas estão ainda demasiadamente presas à sua indiferença. Masumura raramente descreve o fenómeno amoroso nos seus filmes, mas constantemente disseca (como um cirurgião social) os relacionamentos entre homens e mulheres. Não será o último plano (Kae, cega, escondendo-se no meio das plantas venenosas) um triste presságio da sua sorte e da sua solidão, assim como a de todas as mulheres?



Horny Diver - Tight Shellfish (1985) de Atsushi Fujiura: 0
O pessoal da Synapse Films tem feito um trabalho notável em divulgar um género tão desconhecido ou maltratado como é a Roman Porno da Nikkatsu - no espaço de dois anos lançaram já mais de vinte filmes e estão prometidos mais títulos para o futuro. Infelizmente, as suas intenções não são as de desenterrar grandes cineastas ou pérolas desconhecidas que provem, mais uma vez, que o cinema erótico para muitos realizadores era uma alternativa digna ao cinema "sério" dos outros estúdios. Na verdade, o catálogo está muito mais interessado em rebuscar as produções mais comezinhas, mais datadas e mais industrialmente sexuais, jogando com géneros e sub-géneros do softcore e só muito esporadicamente há lugar para os grandes filmes desconhecidos. Atsushi Fujiura preenche bem os requisitos comerciais que a companhia desejava: especializou-se nas comédias quentes e contextualizava-as nas tradições japonesas, dando um certo ar exótico e caseiro à coisa. O cenário de Pleasure at the Hot Spring, por exemplo, eram as termas tradicionais japonesas e na série de filmes Diver, na qual este sugestivo Tight Shellfish é uma das últimas instalações, o tema são as Ama, pescadoras e mergulhadoras que segundo os costumes usavam pouquíssima roupa e eram quase equivalentes a amazonas, mulheres guerreiras e com o sangue na guelra. Tirando os pormenores culturais (que aqui valem tanto como qualquer fetiche ou adorno), Fujiura tende a repetir o mesmo esquema que aplicara noutros episódios da série e até no já citado Pleasure at the Hot Spring. Há uma história vaga de um contrato de direito à terra, há um fuinha que orquestra tudo para conseguir assegurar a sua parte do negócio e, principalmente, há um humor completamente deplorável (desde a banda-sonora country a gags mais chocantes que envolvem expelir coisas das partes privadas), prova última que Fujiura não tem grande interesse em contar uma história minimamente interessante mas, antes, arranjar pretextos para "justificar" as cenas sexuais. Passados só alguns minutos conseguimos logo perceber que aqui não vai haver elemento diferenciador.



Blazing Famiglia (2012) de Kazuyoshi Kumakiri: *
Perguntava-me - e bem - que raio se tinha passado com Kumakiri para filmar uma barafunda como esta, logo depois do incrível Sketches of Kaitan City? Baseado num manga (como já tinha sido o fraco Freesia: Bullet Over Tears) a verdade é que aqui estamos logo enredados numa história demasiadamente intrincada, com imensos personagens que não encontram qualquer constância ou papeis fixos dentro dos seus problemas e angústias (acreditem: o exagero sentimental é notável). Com um toque de nostalgia pela cultura dos bosozoku (os motards jovens japoneses) e uma vaga saudade dos duros filmes de yakuza dos anos 70 (numa arcada, ouve-se a melodia inconfundível de Battles Without Honor and Humanity) Blazing Famiglia entra em piloto automático da brutalidade física, enfiando um universo familiar e íntimo à pressão com flashbacks apressados e outros parcos dispositivos narrativos que não permitem nunca ficarmos com os personagens nem desenvolver grande coisa com eles. Apesar das nobres referências, Kumakiri acaba por copiar a lamentável masculinidade dos dois Crows Zero de Takashi Miike: aqui os personagens só são fortes na medida da sua boçalidade e num filme que quase não tem mulheres, esperava-se que os laços da amizade masculina fossem mais do que "esmurramos juntos os nossos inimigos". Em conclusão: um exercício de estilo vazio (pena a fotografia ser tão boa e certos planos - como aquele em que Igarashi imagina o fantasma de Watanabe - serem bastante criativos em termos formais) completamente perdido num sentimentalismo grosseiro e numa desorganização estrutural de como contar uma história.



Pecoross' Mother and Her Days (2013) de Azuma Morisaki: ***
O ano passado, Pecoross' Mother and Her Days foi eleito filme do ano pelas prestigiadas revistas de cinema Kinema Junpo e Eiga Geijutsu, facto quase inédito, visto as orientações editoriais de cada uma dessas revistas serem radicalmente opostas (a KJ versa sobre filmes mais "comerciais" e a EG é conhecida pelas suas escolhas polémicas, quase sempre favorecendo cinemas mais marginais). Como interpretar essa eleição depois de comprovar o tão elogiado filme sobre a relação entre um filho e a sua mãe senil? Em primeiro lugar, quem esperava um dramalhão ou um tear-jerker (como tinha sido Chronicle of My Mother) não conhece os antecedentes cómicos do realizador. Com efeito, Azuma Morisaki, de 86 anos, especialista de um certo humor japonês juntamente com Yoji Yamada (ele próprio chegou a realizar o terceiro capítulo da celebérrima saga Tora-san) teve aqui a sua oportunidade de retratar um tema bastante sério recorrendo à graça leve da rotina, por mais grave, preocupante, e triste que ela se pudesse aparentar. O riso, se houver, não castiga os costumes mas liberta-os e revela a "humanidade" que subjaz aos personagens até mais extravagantes e caricatos. Pecoross, pseudónimo de um autor de manga que descreve a história e a situação da sua mãe através dos quadradinhos e dos desenhos amáveis, não é à primeira vista um personagem típico de uma tragédia. Nem mesmo a sua mãe - de quem nunca vemos o desenrolar do processo de demência, mas surge sempre já padecendo dessa condição - é uma vítima totalmente incapaz. Da sua memória desorganizada e livre como uma criança, vamos saltando de flashback em flashback, iluminando o que perdeu, o que se passou, o que viveu. Porventura a razão mais comovente do sucesso do filme vem do facto que antes de o filmar, tenha sido diagnosticado a Azuma Morisaki demência vascular. Cada vez mais próximo da realidade dos seus personagens e sem grande dramatizações, Morisaki continua a sorrir sabiamente. Com esta gentileza que não fica nada aquém da realidade (tiraria, por vezes, a música a passos intrusiva), Pecoross' Mother and Her Days filma os filhos, as mães e os idosos com um respeito inabalável, apesar dos risos e das lágrimas.



Still the Water (2014) de Naomi Kawase: ****
A certa altura de Still the Water, Kaito diz a Kyoko que tem medo do oceano porque este está vivo. Poderíamos dizer que essa recusa em mergulhar nas coisas vivas e perigosas define o jovem rapaz e o primeiro bloqueio amoroso que o une a Kyoko e à sua própria mãe ausente, mas, no âmbito da sacralização atmosférica de Naomi Kawase (que aqui atinge um dos seus picos), também se podia muito bem afirmar que não são só as marés que estão vivas, mas todo o Mundo Natural e é ele o grande personagem, silencioso mas primordial. Com efeito, os esplendorosos planos aquáticos, os planos do vento a fazer dançar as árvores e as folhas e os planos do sol que tudo cobre e tudo irradia (até a destruição humana do habitat) servem muito mais como revelações sensoriais do que adornos estéticos exíguos, o já por nós conhecido "zen do postal". Com a Natureza, Kawase quer explorar as profundas relações entre homens e mundo. Com a Natureza, Kawase quer, enfim, traçar todas as linhas substanciais do nosso mapa afectivo: sejamos humildes perante ela, porque ela comanda-nos, mas participemos nela porque não temos escolha senão responder ao seu abraço. Como explicar a dupla referência ao sacrifício do cabrito (cena tão assustadoramente primitiva) senão por essa mesma integração humana e violenta na inexplicabilidade natural, nesses mares que nos olham e nesse vento que nos sopra? Como interpretar a serenidade comovente da mãe de Kyoko quando confrontada com a sua morte, cantando com os outros e despedindo-se enquanto a brisa leva o seu espírito (aí, Kawase atinge um dos pontos maiores da sua filmografia recheada de momentos familiares íntimos)? Estes exemplos são provas de uma inquestionável afinidade holística, de integração com o todo, sendo que a individualidade tímida destes personagens é iluminada sempre pela vida supérflua e infrene que os cerca. Still the Water também não podia deixar de jogar com os contrastes, como se encenasse um jogo de paradoxos sagrados que se unem finalmente: a celebração e a passagem, a violência e o amor, a morte da mãe de Kyoko e a descoberta sexual dos dois jovens no meio do pântano. Começamos nas ondas raivosas e acabamos nas profundezas de um mar demasiado azul. Despidos, aceitando todas as regularidades e irregularidades do Mundo Natural, primitivos.