17/08/13

Fragmentos de 2013/08/17



Wild Geese (1953) de Shiro Toyoda: ****
O recém falecido Donald Richie sempre foi um defensor da obra do injustamente ignorado Shiro Toyoda e este Wild Geese era um dos seus filmes de eleição. Richie mencionava ainda este nome, juntamente com o de Mikio Naruse, quando numa entrevista em 2003 lhe perguntavam alternativas clássicas para a trilogia aclamada no Ocidente: Ozu, Mizoguchi, Kurosawa. De facto, quanto mais nos aprofundamos na filmografia deste realizador, mais lhe damos razão. Wild Geese (estreado nos Estados Unidos em 1959 com o título The Mistress) é um complexo filme acerca do papel da mulher na passagem do feudalismo para a modernidade. Hideko Takamine - já tinhamos saudade de mais um papelão! - encarna a típica mulher da era Meiji, e é, ela mesma, que vai sendo ao princípio enganada e depois explorada por conveniências de dinheiro, esse objecto que escraviza voluntariamente, numa era em que começava a surgir uma classe burguesa. O que mais nos surpreende - para além de uma câmara completamente segura de si mesma - são as mudanças de personalidade e o poder de resposta de Otama. Ela é vítima de um mundo de enganos, próprio da boçalidade masculina. Mas é também ela que se crê apaixonada e pactua com a exploração, até ao dia em que as mentiras não resistem. Sobre este aspecto, relembro o que Toyoda disse a Richie numa suposta conversa que tiveram:  "A mulher japonesa, desde criança, é forçada a desempenhar um papel. Apenas existem três papeis — o de filha, o de mãe e o de esposa - e ela vai passando de um para o outro. Desde a mais tenra idade ela aprende a mascarar os seus sentimentos verdadeiros e falsear aquilo que não sente." Precisamente, a Otama protagonizada por Hideko Takamine é uma mulher que quebra este triângulo psicológico e Wild Geese é o relato, a dois tempos melancólico e libertador, deste choque violento com a mentalidade da época e o enraizamento profundo em cada um. 



An Innocent Witch (1965) de Heinosuke Gosho: ***
Este filme tardio de Gosho - de facto, a sua última produção data de 1968 - demonstra certas influências da estética vigente dos novos realizadores nos anos 60. Não é questão de saber aqui se essa influência foi um produto adaptado às necessidades do público ou se ela fez parte de uma postura mais genuína. Quer tenha sido essa motivação ou outra, a verdade é que Gosho segue o legado deixado pela então novíssima geração New Wave Shochiku (a comparação mais relevante seria Masahiro Shinoda), principalmente quando explora tradições do imaginário popular como o fatalismo e o misticismo rural e as une numa postura bastante crítica, como se apenas radicalizando esse obscurantismo a pontos insólitos fosse a única maneira de criar um certo pathos, baseado na condenação dos vícios culturais mais primitivos. O destaque vai também para a maravilhosa direcção de fotografia e os jogos de luz e sombra que realçam tons mais pessimistas e negros assentes na tradição mística (que está aqui debaixo do fogo da crítica) e no preconceito/superstição popular.



Circus Boys (1989) de Kaizo Hayashi: ***
Kaizo Hayashi deixa escorrer aqui o seu onirismo barroco como se estes personagens fossem produtos de visões lúcidas e sonhos acordados. Na verdade, a crassa falta de harmonia dos seus exercícios mais conhecidos não é um problema neste Circus Boys, filme que apenas peca por alongar em demasia o segundo acto da narrativa. Tirando isso, podemos testemunhar um controlo imagético total e uma capacidade de regenerar as sequências mais dramáticas com alucinações suaves que substituem a exploração trágica. Note-se que, nas duas sequências em que a morte é representada (uma logo no início, outra mesmo no final), há uma transfiguração total no momento em que a confirmação do último suspiro nos deveria ser dada. Hayashi prefere maravilhar-nos tristemente. Não vemos o sofrimento através de actos reconhecíveis (dor, olhos fechados, etc.), mas vemo-lo mediado por miragens que nos traçam o percurso interior e significante dos personagens. Uma pequena joia esquecida.



The River With No Bridge (1992) de Yoichi Higashi: ***
A história verídica dos burakumin raramente foi tratada com este grau de pormenor em cinema. Com efeito, a discriminação que se fez sentir durante gerações e gerações não deixou uma tarefa fácil aos realizadores clássicos: Mikio Naruse no seu Whistling in Kotan falava de discriminação, mas acabava por virar o seu discurso para a tragédia fatal desse povo explorado e já Kon Ichikawa no seu The Broken Commandment (infelizmente, uma pérola ainda sem legendas disponíveis) parecia estar interessado na figura do forasteiro por obrigação, a maior vítima do racismo nipónico. Pois bem, Yoichi Higashi não está só interessado em política (guarda o seu activismo social para a última meia-hora), mas prefere familiarizar-nos primeiro com o crescimento dos garotos burakumin, maldosamente apelidados eita, um nome pejorativo para enunciar a sua raça. Vemos os garotos, os seus laços afectivos, mas também os seus óbvios problemas de integração. Dito assim, até parece que The River With No Bridge é um filme do lado das vítimas no pior sentido do termo, ou seja, um filme enredado no seu próprio sentido de justiça que prefere pregar a educar. Contrária a esta tendência, existe uma preponderância em fazer crescer os personagens em nós e, pelo que nos toca, ousamos dizer que aqui está um bom exemplo psicológico: as vítimas não são sempre mostradas como vítimas. No meio da sua infelicidade social também tinham tempo para sorrir, também se divertiam, também eram crianças.



Pig's Retribution (1999) de Yoichi Sai: *
Yoichi Sai (que começara a sua carreira da melhor forma com Mosquito on the Tenth Floor) aqui não faz mais do que narrar as peripécias medíocres e insípidas de um jovem adulto com três empregadas de um bar. Por muito que tente dar uma profundidade psicológica aos seus personagens (indo pelo caminho tão trilhado do passado por resolver), não chegamos nunca a investir os nossos sentimentos no que vemos. Excluindo um punhado de cenas mais engraçadas como, por exemplo, a invasão dos porcos no bairro vermelho (que me fez logo lembrar Shohei Imamura no seu Hogs and Warships), tudo o resto é bastante entediante e encontramos sempre pouca substância, quer filmica, quer temática.



The Motive (2004) de Nobuhiko Obayashi: **
Apesar da passagem do tempo (esse assassino de carreiras), Obayashi continua a afirmar-se como um realizador que escamoteia as regras do filme comercial, impregnando todos esses cânones reconhecíveis com o traço distintivo das gramáticas experimentais, as mesmas que originaram a sua carreira nos anos 60. Em The Motive o policial está de pantanas: para além do ponto-de-vista do espectador ser o de uma equipa de reportagem (quase todas as intervenções são feitas frente à câmera num ambiente de entrevista), é notória a organização obsessiva por capítulos, fazendo uma ligação directa com o material original, já que o argumento é baseado num romance. Para além disto, a cinematografia tem momentos altos e podíamos mesmo dizer que a componente meta-cinemática (questionadora dos limites da própria ficção) está bem presente, quer na organização de alguns planos, quer na irrequieta e constante desconstrução e soluços narrativos. Todavia, a originalidade aqui tem o problema de se tornar demasiado académica e até mesmo redundante, principalmente quando os mesmos dispositivos experimentais são repetidos, uma e outra vez, ao longo das mais de duas horas e meia de filme. Nobuhiko Obayashi continua, no entanto, a ser um formalista sem concessões, pois, não adapta a forma à função, mas teimosamente executa o contrário: subjuga a função à forma. The Motive é um falhanço parcial, mas é certamente um exercício exótico, um espécime em vias de extinção na cena contemporânea do cinema japonês.



Yellow Elephant (2013) de Ryuichi Hiroki: **
Hiroki volta a filmar relações amorosas sem cerimónias e com naturalidade, mas a excessiva duração da sua proposta, assim como alguns desvios narrativos um pouco coxos, deixa a vitalidade dos primeiros minutos esvaecer. No entanto, a bela  prestação de Yu Aoi parece apontar para um dos emblemas da obra hirokiana, a saber, mulheres com mundo próprio que, ainda assim, são capazes de se apaixonar e procurar num outro, o amor. O cenário rural também proporcionou algumas sequências bem filmadas, contudo, há milhares de filmes japoneses que transmitem esta mesma ideia do carpe diem campestre, ou seja, viver os dias com a simplicidade (não-reflexiva, eis a razão da desistência do diário) de uma rotina pacata e resguardada. Começa a tornar-se um lugar comum desnecessário.