14/12/12

Fragmentos de 2012/12/14


Tower of the Lilies (1953) de Tadashi Imai: ****
Retrato, sem romantismos dos derradeiros dias da sangrenta batalha de Okinawa, bastante rico e amplo em personagens (os militares, as enfermeiras e os professores e seus alunos que eram normalmente chamados para auxiliar o exército nos trabalhos tipicamente femininos) e, acima de tudo, honesto para o espectador em todos os momentos. Essa sua honestidade fez-me até reconsiderar a originalidade, por exemplo, de uma proposta como Fires on the Plain (1959) de Ichikawa e, obviamente, a trilogia Human Condition (1959-1961) de Kobayashi. Anos antes, já Imai olhava com uma melancolia negativa toda a experiência de guerra, desde o soldado mais fervoroso que não acredita na derrota apesar de todas as evidências às jovens alunas que ficam desde logo a conhecer o inferno radical que é, por exemplo, um campo de pacientes. Sobre esse aspecto, note-se como se foca quase obsessivamente na primeira metade do filme o cenário escatológico daqueles que maciçamente estão prestes a morrer, não sendo necessários à função que antes desempenhavam. Aí, temos cenas de cortar a respiração que são representadas pela força hercúlea dos saudáveis, aqueles que são ainda capazes de salvar os outros, colocando a sua vida em risco. Não mentiríamos se diséssemos que toda a película joga constantemente nesta dualidade entre moribundos e pessoas capazes de se mover, pensar, ver, no meio de um cenário caótico, bélico e instável em todos os sentidos da palavra. O final - victória da tragédia face à esperança - resulta ainda mais entristecedor porque faz valer os esforços destas personagens como profundamente inúteis. É como se a experiência de guerra fosse insustentável a todos os níveis. Uma violência feita por homens mas maior do que eles todos...



Invisible Man Vs. The Human Fly (1957) de Mitsuo Murayama: *
Apesar dos efeitos especiais interessantes para a altura, não é mais do que um genérico e datado filme de ficção científica misturado com uma intriga policial cujos movimentos são completamente previsíveis. Para além da curiosidade histórica (que se representa pelas menções ameaçadoras do desenvolvimento da ciência que proporcionou a bomba atómica), tudo o resto é desprovido de personalidade e mesmo o epílogo é uma mera continuação mecânica e pouco inventiva da estrutura narrativa de três actos. Para um filme que vive dos twists e da intensidade, já a meio percebemos como vai acabar.



Mio (1972) de Susumu Hani: **
Este é um filme complicado de categorizar e avaliar, já que é um documentário dramático de um Hani profundamente misantropo, virando radicalmente a sua câmara para as crianças (principalmente a sua filha, Mio) como se elas fossem os adultos na sua radicalidade máxima, capazes de fazer, a dois tempos, o melhor e o pior da humanidade (os crescidos, esses, ora são representados sob a figura da autoridade fria ou da má-vida). A vertente documental dá lugar, na maior parte das vezes, a uma embriaguez alucinada, típica da visão infantil, onde tudo aparece com uma frescura e novidade extremamente poéticas. Também a paixão inocente de Mio por Raffael, um filho de um criminoso que vemos por momentos, é filmada de uma forma assaz paradoxal: mesmo sendo parte de um imaginário infantil e espontâneo, não deixamos de notar a tentativa adulta de a representar, lançando, como não poderia deixar de ser, uma subjectividade de quem filma ao olho da câmara, teoricamente neutro. Mesmo que não tenha sido assim, é estranho como Hani, depois deste filme, renegou a representação de humanos e preferiu escolher o mundo animal numa série de documentários futuros. De alguma forma, conseguimos antever uma razão: a procura da espontaneidade falha também nas crianças, esses seres de que nem todos temos memória de ser, e falha porque também em frente de uma câmara elas interpretam, se bem que de uma maneira mais imediata e sem os esquemas mentais dos adultos. É um curioso exercício que nos convida a enxergar a simplicidade enquanto inocência, mas uma espontaneidade mediada pelo olho da câmara, um olho adulto.



River (2011) de Ryuichi Hiroki: **
Curiosa habilidade esta de Hiroki que, mesmo parcialmente falhada, usa unicamente as capacidades de mergulho e envolvência da sua câmara (mesmo com alguns cortes subtis, parece unicamente filmar em plano-sequência) e consegue criar um emotivo díptico entre as sequências dormentes e quase alienantes de Akihabara, o conhecido bairro dos geeks, e os cenários solitários e devastadores da então recém catástrofe sísmica. Mais do que realçar a sua profunda diferença (o esquecimento urbano das tragédias é prova da sua vivência meio alucinada), Hiroki como que formalmente visa os dois acontecimentos da mesma maneira: planos longos, respirados, que oprimem os personagens pela sua vastidão, ora de magotes a perder de vista, ora pela rarefacção extrema de homens num lugar impresso pela destruição. No entanto, - e ao contrário de Himizu, outro filme que tinha como pano-de-fundo o sismo - um certo respeito silencioso é dado a toda a situação, criando um elo que sempre reenvia para uma realidade maior do que o filme em questão. Basta-nos o último plano longo do choro para intuirmos a profundidade real da experiência, não a explorando como o cinema tanto nos habituou.



Rent-a-Cat (2012) de Naoko Ogigami: ***
Depois do fracasso de Toilet, um amontoado de lugares-comuns do cinema independente sem grande capacidade de ser mais do que aquilo que se rotulava, Ogigami regressa ao Japão para filmar mais um dos seus filmes típicos: experiências que só conhecem um tempo, o presente, de tal maneira que a passagem desse tempo é apenas relativa à mesma unidade diacrónica, não estando ela tripartida de maneira a que cause a impressão de desenvolvimentos significativos. Uma das suas características é o sentimento de inconsequência e alguma repetitividade se nos focarmos apenas no feeling diegético. No entanto, compensamos isso pela maneira como os personagens aqui nos enchem de ternura e simplicidade, sendo sempre o que são, tal como os nossos amigos felinos que invadem os espaços e a tela por todos os lados. Este é um cinema que parte dos pequenos momentos, na esperança que eles compensem a falta de complexidade e resgatem o espectador, justamente, na simplicidade que não quer ir longe. Um cinema, por isso, a favor da experiência e contra a transcendência.



For Love's Sake (2012) de Takashi Miike: 0
Baseado num manga de Ikki Kajiwara, aqui temos mais um remake (cujo filme original não vi) que comprova infelizmente e, mais uma vez, a falta de destreza da faceta comercial de Miike. Mesmo a experiência de Happiness of the Katakuris não ajuda neste musical obsoleto que à primeira vista se apresenta com uma linguagem hiperbolizada e parodiada (à semelhança desse filme), mas que conserva uma estética pop e um certo gosto em pactuar com esses exageros para tentar desenvolver os personagens de uma maneira mais séria, mas que resulta chocantemente preguiçosa e entediante. Os personagens nunca saem dos dois ou três adjectivos que os poderiam caracterizar, sendo apenas simplificações psicológicas pouco credíveis, impassíveis, portanto, sequer de tornar o espectador minimamente comprometido nos seus problemas e romances. Pior do que isto tudo é o constante amontoado de cenas repetitivas de pancadaria, intercaladas com números musicais pouco criativos e bocejantes (que se reduzem a umas parvas coreografias), que nos fazem ter saudades das de Happiness e que tornam a já por si superficial narrativa, desinteressante e pouco sustentável a todos os níveis. Quando finalmente Miike - depois de mais de duas horas de suplício - decide desenvolver minimamente os seus dois protagonistas, eis que já não temos paciência, nem interesse algum nas suas soluções dramáticas de pacotilha, quando andou o resto do filme à deriva, sem saber muito bem o que dizer e como o fazer.

05/12/12

Fragmentos de 2012/12/05



Mud and Soldiers (1939) de Tomotaka Tasaka: ****
Intervenção cirúrgica de Tasaka que lança aqui um olhar quase-narrativo absolutamente despudorado acerca do ambiente bélico do embate sino-japonês. O carácter repetitivo dos rituais de preparação para o combate, assim como as longas e cansativas sequências de marcha (por entre a lama suja ou terra batida) representam mais que um simulacro documental ou uma tentativa de ficção newsreel, pelo contrário, é exasperando esse sentimento de realidade cansativa e até entediante que Tasaka vai construindo uma visão em tudo próxima do absurdo e do sem sentido. Para além disso, intervalado entre as cenas de repouso e as da lenta marcha para a morte (as poucas que conservam uma narrativa), estão as portentosas e intermináveis cenas de batalha que são apenas percepcionadas por um dos lados, permanecendo o outro relegado, desconhecido. Neste sentido, resulta fascinante para o espectador a forma como os soldados japoneses agridem o inimigo sem sequer o ver na maior parte das vezes, atirando para o vazio as suas balas e torpedos, na esperança de o encontrar e o acertar no meio dos terrenos vastos, áridos e solarengos, filmados com uma violência tremenda e com uma precisão arrebatadora. Finalmente quando vemos a cara do inimigo, vemo-lo prostrado na sua derrota, assim nos aparecendo como um outro como nós, mas reduzido, transfigurado e com o orgulho ferido, com aquele olhar pleno de humanidade. Já a cena final, exacerbado festejo patriótico de victória, tem de ser lida como o resultado eficaz dos soldados que lutam para chegar a essa finalidade, apenas para sair do inferno absurdo que é a guerra. Como encarar, então, aquele plano estonteante em que o capitão, ouvindo os derradeiros elogios fervorosos ao Imperador de um seu soldado moribundo, vira abruptamente as costas à câmara, como se estivesse não só a virar as costas ao dito, mas também ao próprio espectador que, por esta altura, subscreveria a cem por cento os devaneios imperialistas de um Japão em expansão pela Ásia? O mais comum na estética anti-guerra é refutar a experiência bélica exteriormente, isto é, pelos valores éticos do reconhecimento do outro como igual, mas em Mud and Soldiers a devastação vem de dentro, vem da própria prática de guerra e não através das abstrações teóricas, necessárias, porém, ao seu término.



Sun in the Last Days of the Shogunate (1957) de Yuzo Kawashima: *****
Disparando para todas as direcções com um humor corrosivo e satírico, Kawashima prossegue aqui com a sua visão integralmente cínica das relações humanas, não perdoando nada nem ninguém desse cepticismo irónico e grotesco, todavia, nunca optando por soluções pessimistas ou trágicas. Pelo contrário, o tom leve, introduzido pela comédia non-stop e irreverente, impõe-se a todas as circunstâncias, mesmo as mais escatológicas, afinal, servindo essa quase histeria cinematográfica como um pulular constante de interesses e patranhas para representar a disposição particular e quase esquizofrénica do fim da era Tokugawa. Raramente saídos dos ambientes bordelescos do quarteirão do prazer, todos os personagens se enganam numa trama em que apenas a mentira prevalece, coexistindo todos no mesmo espaço material como se o Japão modernizado fosse, afinal, um albergue gigante no qual exclusivamente a lei do mais matreiro impera. Assim, a aparente dispersão narrativa e dos personagens fica centrada naquele castiço inquilino que subverterá a sua condição, de explorado a explorador, fazendo a ligação entre todas as histórias e peripécias com o seu carisma meio tresloucado e hilariante, mas não deixando de gargalhar, doente (a sua aparente tubercolose é decididamente simbólica: corrupção moral). Kawashima é, então, sagaz o suficiente para dialogar com várias vertentes e lugares-comuns do filme de época, parodiando-os ao máximo num misto de crítica e tributo (desde aos filmes de amores fatais ao filme de fantasmas, nada é poupado!), jamais esquecendo o tempo específico que quer representar. Engraçado como a crítica ocidental tradicionalmente entende o trabalho de Kawashima à luz da do seu discípulo, Shohei Imamura que aqui co-assinava o argumento e era assistente de realização. Porém, trata-se aqui do contrário. Imamura nasce desta obra que simultâneamente conserva uma alegria em estar vivo, mas não deixa de ser altamente ácida em todas as suas vertentes.



Each Day I Cry (1963) de Kiriro Urayama: ****
Aparentemente um exercício Nouvelle Vague que nos poderia reenviar a uma estética de pura contestação juvenil na senda da geração Shochiku (Shinoda, Oshima, Yoshida, etc.), mas também da rebeldia destrutiva presente na mocidade dos filmes da geração tribo do sol da Nikkatsu, Urayama certamente engana a vista com esta descrição das dificeis condições sociais e afectivas de uma jovem garota que, mesmo nesse clima em tudo adverso, conhecerá o amor numa figura que, acima de tudo e todos, a protege, fazendo conservar, assim, o seu lado mais infantil e puro, aquando dos seus encontros. Nesses momentos luminosos, resta-nos sublinhar os "close-ups" à face transfigurada da rapariga, que como que recupera uma expressão de inocência perdida frente ao rapaz que ama. A oposição entre o relacionamento a dois e todos os outros momentos mais duros de vivência são precisamente o ponto forte aqui: como se se criasse uma cápsula à volta dos dois, porém, sempre pronta a ser abalada pelo mundo frio e interesseiro dos outros. Não nos pode estranhar aquela cena final, digna de reverência, em que a protagonista chora a plenos pulmões por não poder ficar junto do seu amante e a sua despedida é pautada por movimentos de câmara subtis que vão revelando todos os olhares de censura e curiosidade da imensa massa de pessoas que os observam. De todas as maneiras, o peso da sociedade manifesta-se não numa abstração qualquer, mas nestas cenas em que os outros interferem e impossibilitam, no final, a concretização do amor a dois. Por esta razão, trata-se de um filme cuja rebeldia serve como desculpa para o nascimento das várias tentativas de redenção, apesar de mesmo essas estarem, talvez (o final aberto é prova disso) condenadas ao fracasso. Se não ao fracasso, à espera infindável dos corações em ferida.



Mother (1988) de Zenzo Matsuyama: *
Partilha integralmente dos defeitos e pecados do último filme de Kinoshita, feito no mesmo ano do que este, Father, a saber: falta de profundidade, inclusão desnecessária de comédia superficial e sem graça e, finalmente, uma estética anos 80 que se afigura bastante datada e quase anacrónica, ainda por cima, quando se pretende narrar as curtas peripécias de uma família campestre e mais tradicional.