25/02/13

Fragmentos de 2013/02/25


Here's to the Young Lady (1949) de Keisuke Kinoshita: ***
Um Kinoshita divertido, matreiro e bastante inteligente traça as linhas cómico-dramáticas da relação entre o simpaticamente provinciano Keizo Ishizu (Shuji Sano com o seu estilo desastrado mas contido conquista um sorriso sempre que o vemos) e uma inocente Yasuko Ikeda (Setsuko Hara, mais uma vez, brilhante). Aquele que era o mote para tanta narrativa do mesmo género (um casamento por encomenda e necessidade que se torna numa coisa mais séria e comprometedora) consegue surpreender-nos pelas personagens radiantes e pelos momentos em que actuam juntos, criando momentos luminosos de afecto simples e carinhoso. Tanto Ishizu como Ikeda são dois personagens com emoções convincentes e reais e não meramente um esboço de regras psicológicas, nem um casal idealizado, livre de defeitos ou ângulos por aparar. Assim, é curioso como Kinoshita quase nunca nos deixa descansar numa estabilidade emocional ou sorrisos fáceis na sua relação, construindo leves e risonhos desencontros afectivos que vão lentamente inquietando, não só os personagens como o espectador. Mesmo no acto esperado da reconciliação final (e as pistas todas nos são dadas para que tal aconteça) assistimos a um corte que a principio pode parecer abrupto, não o sendo afinal, já que só os nossos olhos e a nossa imaginação podem preencher tal reencontro, como fizeram para tudo o resto. Afinal, somos nós que os amamos.



An Engagement Ring (1950) de Keisuke Kinoshita: **
Faz um bom paralelo temático com Night Drum, pois, ambos encaram a infidelidade do matrimónio, mas sob prismas completamente diferentes. No caso do filme de Imai a traição manifesta-se num acto isolado com uma intenção obnubilada que faz desencadear os podres de um sistema jurídico (e mental) altamente injusto com o género feminino. Já neste filme de Kinoshita, por contraste, nada se chega a concretizar entre os dois amantes, mas uma tensão constante é notável no plano subjectivo e afectivo. É certo que para além desta desiquilibrada força de um amor cuja proibição torna transgressora qualquer tentativa de concretização, Kinoshita faz aparecer outros dilemas (que resultam piores e muito enfraquecidos se comparados com este principal) como por exemplo a da obrigação do médico pelo seu paciente, sendo o paciente alguém que o médico, na profundeza dos seus juízos ocultos, preferisse morto que vivo. Abstraindo-nos desses aspectos mais concretos, o ambiente do filme é o da instabilidade de comportamento - alguns planos mostram bem o carácter isolado dos dois personagens, percorrendo os planos de costas viradas para a câmara - , sendo, por isso, vítimas de uma quantidade de remorsos e assombros nas suas tentativas de auto-controlo. No final, a simbologia do anel de noivado é a prova como tematicamente - ver Distant Clouds - o cinema romântico de Kinoshita é, para o bem e para o mal, um cinema da resignação na sua dimensão antagónica ao seguimento das paixões. É um cinema em que se sabe perder com um sorriso.



Beautiful Days (1955) de Masaki Kobayashi: **
Sexto filme de Kobayashi na Shochiku, Beautiful Days é ainda um exercício de maturação, um cruzamento assimétrico entre já algumas preocupações sociais que mais tarde iriam ser desenvolvidas de forma crítica (bem como um posicionamento moral do lado dos mais pobres) e um cinema sem grande traço ou assinatura, munido de escolhas narrativas e estéticas que não permitem chegar a zonas mais ambiciosas e que repetem alguns modelos fáceis de resolver os problemas que são suscitados. Mesmo a maneira como se estrutura a história - as peripécias interligadas de quatro "casais"  - não resulta muito captivante, disseminando alguma dispersão de intenções e focagem.



Night Drum (1958) de Tadashi Imai: ****
Feroz representação de um tabu chamado adultério, inserido num contexto mais largo de crítica levada a cargo por Imai das contradições e paradoxos do feudalismo nipónico. Primeiro, a engenhosa narrativa -  baseada numa peça do génio dos génios, Monzaemon Chikamatsu, e escrita pelos não menos talentosos Shinobu Hashimoto e Kaneto Shindo - encena uma cascata de flashbacks na forma de memórias de personagens diferentes que tendem a incriminar sempre alguém desse acto hediondo (e principalmente, se cometido por uma mulher - aqui está a ironia trágica de Imai), mas não para chegarmos a um estado de anfibolia ou ambiguidade quanto ao estatuto da retrospecção (como Hashimoto fizera no clássico Rashomon) mas, antes, para desconstruir o rumor e lançar o caos nas estruturas sociais e legais - mas que condicionam de forma decisiva os afectos - da época. Afinal, todos estes personagens são incapazes de perdoar uma mulher. Neste sentido, esta é uma peça completamente furiosa que opta por uma austeridade radical, aparentemente pactuante com a decisão final do personagem principal, para demonstrar os mecanismos brutais empregues como forma de resolução de uma transgressão tão chocante como esta. O mais curioso é que há um personagem maior do que todos os acusadores, isto é, a própria noção social que apenas a morte resolve ou limpa, em parte, a transgressão. Isto quer dizer que a ordem social tem de imperar e sobrepôr-se à afectiva e pessoal. Essa ordem violenta - mentirosamente limpa - que se instaura nas duas sequências finais de assassinatos é terrivelmente inquietante. Também o é o plano aproximado final da cara de Ogura (Rentaro Mikuni mais uma vez irrepreensível), como que um olhar para trás de si próprio e do carrasco que acabou por se tornar a bem não se sabe já de quem. Um olhar melancólico e estranho a fechar um filme trágico e mordaz.



The Inheritance (1962) de Masaki Kobayashi: *****
Custa a crer que Kobayashi, logo após a sua esgotante aventura crítica de Human Condition, tinha ainda energia, estofo e coragem para, no mesmo ano de 62, nos maravilhar com o surpreendente Harakiri e este filme injustamente pouco visto, The Inheritance. Um milionário (So Yamamura) com uma doença terminal resolve planear o seu testamento, mas para isso necessita encontrar os seus três descendentes directos, todos filhos bastardos, impedindo assim que a sua jovem esposa fique com toda a herança. Esta narrativa vai abrindo portas e cria ligações cada vez mais estreitas entre todos os personagens, lembrando, por momentos um filme de Hideo Gosha sem samurais sedentos por ouro, mas com agentes legais, secretárias à deriva, herdeiros falsos e acessores manhosos. Em suma, Kobayashi critica ferozmente o tempo moderno com outros dispositivos que não o dos mártires: aqui não há lugar para um personagem, como o herói-rebelde de Harakiri, que carregava com ele as torturas e tristezas de uma época antiga. Aqui, todas as personagens são iguais quanto à inconstância moral, e mesmo a mais inocente, não começando como os outros, rapidamente desce aos infernos e sai renovada com um sorriso falso, algo demoníaco, pronta para explorar todo este mundo onde o homem é lobo do homem. Também o ritmo e a cadência das imagens é paradoxal à do outro filme de 62. Harakiri era tenso e pausado com cada plano a demorar o tempo que fosse preciso para mergulhar o espectador na sua atmosfera, pelo contrário, em The Inheritance cada imagem é seguida por várias outras, muitas vezes concatenadas, fornecendo-nos um sentimento de modernidade asfixiante no estilo (a música jazzy de Toru Takemitsu é outro must). Por outro lado, Kobayashi aqui demonstra uma mestria inquestionável em filmar espaços fechados e mais claustrofóbicos, com um cinemascope preenchido por personagens à espera de veredictos e um rigor quase geométrico nos seus planos e travelings que conseguem, não raras vezes, fazer estremecer o espectador com o seu total domínio técnico e criativo.



The Shadow Within (1970) de Yoshitaro Nomura: ***
Um caso extra-conjugal com uma mãe viúva desenterra antigos fantasmas e cria outros novos à luz da reacção silenciosa e misteriosa da criança. Yoshitaro Nomura faz aqui um trabalho muito convicente, já que subtilmente nos demonstra a psciologia traumática dos seus personagens sem os demonizar ou relegar para um papel estanque (como tantas vezes os filmes de suspense fazem). Depois, estava claro que o argumento de Shinobu Hashimoto punha no mesmo plano os actos de amor dos apaixonados visto pelo olhos do filho que sente a perda da mãe e outra qualquer morte assistida, isto é, neste conto mórbido, de alguma forma todos os personagens são agressores de alguém. Na verdade, Nomura sai-se igualmente muito bem nesta criação de contradições plásticas e de montagem (ouça-se a música usada), por exemplo, entre as cenas apaixonadas do casal e um terrível ambiente simultâneo de desaprovação e sofrimento silencioso por parte da criança (e até do espectador). Num certo sentido, podiamos dizer que a felicidade de uns causa necessariamente a ruína de outros e The Shadow Within, a despeito de algumas imperfeições, sempre mantêm uma tensão dificil de aguentar.

17/02/13

Fragmentos de 2013/02/17


The Golden Demon (1954) de Koji Shima: ***
Melodrama de estrutura clássica que conta a história de desencontros entre dois jovens amantes que vêem chegar ao fim o seu relacionamento por causa de um erro cometido em parte pela mulher, Miya (grande papel de Fujiko Yamamoto), algo que destrói a identidade do homem, Kan-Ichi. Miya casa-se com outro homem que não a perdoa por estar amarrada emocionalmente à sua velha paixão e Kan-Ichi, por sua vez, torna-se num frio cobrador de dívidas. É o típico conto que descreve os infortúnios do amor, quando este falha ou é impossibilitado, deixando os seus personagens numa tempestade afectiva sem descanço. No entanto, veja-se como a cena do fim da relação é filmado: na praia, o casal discute e quando chegam à parte mais agressiva dos seus sentimentos e discurso, o sol é coberto pelas nuvens, mergulhando os seus rostos numa escuridão semelhante à das suas disposições. É destes pormenores que a película de Koji Shima é feita, rompendo (raramente), mas rompendo com a previsibilidade da narrativa e do estilo. Infelizmente, o final pouco surpreendente nega o que dissemos. Faltava o pessimismo acutilante, mas divinamente refinado, de Mizoguchi, por exemplo, em A Picture of Madame Yuki. 



The Phantom Horse (1955) de Koji Shima: **
Filme singelo sobre o percurso de vida de um cavalo. A simplicidade da câmara de Shima - aqui direcionada, certamente, para um público mais infantil, como o seu protagonista humano -, ainda assim, consegue compensar-se na fotografia contrastada dos ambientes rurais e pastorícios. Mais tarde na película é evidente um certo, mas leve contraste imagético com a cidade, o lugar onde os cavalos são postos à prova, correndo. De todo em todo, este é um filme inocente e inofensivo, mas por isso mesmo, inconsequente e algo dispensável.



Ironfinger (1965) de Jun Fukuda: * 
Nada de relevante a dizer sobre o primeiro capítulo das (desinteressantes) aventuras do agente franco-japonês, Andrew Hoshino. À imagem e semelhança do seu sucessor, Golden Eyes, temos aqui mais um caso de um filme de espiões nunca fazendo nenhum esforço para se inventar, movendo-se nos lugares comuns do género e permanecendo nessa zona de conforto, bocejo atrás de bocejo. Para um espectador de hoje, tudo parece datado.



Memoirs of Japanese Assassins (1969) de Sadao Nakajima: **
Já vimos bastante melhores coisas sobre "assassinatos". Na verdade, grande parte dos chanbaras essênciais - embora este não seja um - têm uma relação directa com esse acto, diria mais, quase uma obsessão em representá-lo com contornos subversivos, mas aqui Nakajima impede-se de ser corajoso para não pactuar com o registo reconhecível e linear da Toei numa super-produção de quase duas horas e meia que contava com os maiores nomes do estúdio (mesmo que só aparecessem um minuto ou dois) e que, de alguma forma, não podia arriscar-se em demasia com excessos artísticos. A narrativa principal - e que ocupa quase dois terços do tempo total - é um conto de como pode ser possível um rapaz banal tornar-se num assassino. Sonny Chiba é, portanto, a encarnação dos complicados anos 30, mas também a prova de como a história japonesa está repleta de assassinatos feitos por jovens com sangue na guelra e alguns ideais confusos de revolução e mudança. Mostrando mais oito assassinatos marcantes como quem despacha encomendas (e actores de renome!), Nakajima quer fazer uma menção à era politicamente radical dos anos 60 com uma mensagem escrita no final deste Memoirs: "hoje, quem morreria ou mataria por um ideal?" Mas, nunca chegamos a perceber o objectivo de tal aviso: censurar o passado ou aclamá-lo, sempre à luz do presente.



Father of the Kamikaze (1974) de Kosaku Yamashita: **
Por detrás deste épico que excede em duração as três horas havia uma preocupação em descrever o desfecho da 2ª Guerra Mundial do ponto-de-vista dos militares que ai participaram, tomando como personagem principal um certo Takijiro Onishi - o general responsável pelas tácticas kamikaze -, as suas posições sobre a guerra, os deveres dos militares e o seu derradeiro harakiri aquando da rendição japonesa em 1945. Tire-se o cavalo da chuva se se pensar que Father é portador de uma mensagem negativa do pensamento militarístico e nacionalista dos oficiais, longe disso. É, antes, um estudo de personagens, neutro quanto às suas posições políticas, com timings desiquilibrados e redundantes (avançando pouco na narrativa, repetindo ideias e, no essencial, as posições dos personagens em cansativas sequências) que ecoa um sentimento nostálgico pelas vidas que se perderam - ao longo do filme, temos mesmo listas de nomes de pilotos kamikaze. Tal não é de estranhar se pesarmos na quantidade de filmes com o mesmo propósito que a Toei tinha lançado anos antes (por exemplo: The Last Kamikaze de Jun'ya Sato, The Human Torpedos de Shigehiro Ozawa, Diaries of the Kamikaze de Sadao Nakajima, etc.) Todos estes filmes estão impregnados do mesmo espírito: todos olham para a guerra de um ponto-de-vista trágico, mas acabam por conservar um inquestionável elogio de personalidade nos seus intervenientes. Father of the Kamikaze é, por isso, um dos últimos filmes do seu género, extendido na sua duração: ora melodramático, ora brutal, mas sempre com um romantismo trágico (o que é o romantismo sem a tragédia?) que nos rememora, sem sobra de dúvida, os tradicionais filmes de yakuza.



Lala Pipo: A Lot of People (2009) de Masayuki Miyano: *
Esta é a estreia do realizador Masayuki Miyano com um argumento do talentoso (mas aqui não estando nos seus melhores dias) Tetsuya Nakashima. Lala Pipo apresenta-nos várias histórias sobre sexualidade e a vida nocturna e desviante de Tokyo. O seu tom - mesmo com alguns acontecimentos mais dramáticos e "para adultos" - é light e sem grande pensamento, para além do que figura num apontamento ou outro de uma personagem melhor conseguida. Dir-se-ia mais: é como se o estilo consagrado no cinema de Nakashima estivesse aqui descontrolado, irreflectido e sem travões, apenas com uma irreverência vazia que se traduz em tentativas sucessivas de humor ácido e sensual. Uma consequência nefasta deste estilo irrequieto é, por exemplo, a maneira como a banda-sonora é usada, dando a impressão que quem montou o filme não aguentava muito bem "ouvir o silêncio" e pôs a sua jukebox a tocar, muitas vezes sem propósito nenhum a não ser o de tornar as cenas mais "pop" e comestíveis. Também a omnipresença de uma certa cor da noite (azuis, vermelhos, neons berrantes) torna os visuais um tanto ou quanto cansativos, sem grande inventividade que não seja a estética bordelesca. 



Helter Skelter (2012) de Mika Ninagawa: *
Não tinha sido um grande entusiasta de Sakuran (2006), o filme que estreou a fotógrafa Mika Ninagawa na cadeira de realizadora. Era um filme com algumas ideias de imagem curiosas, mas que caía facilmente no exagero melodramático e algum kitsch, não nos oferecendo personagens de carne e osso, pelo contrário, coloridas e forçosamente emancipadas Oiran. Após seis anos de ausência, a fotógrafa lançava-se nesta crítica aos meandros do mundo da moda e da existência doentia e vampiresca das suas manequins - supostamente um mundo que Ninagawa conhecia, visto ter ficado famosa pelo seu trabalho nesse ramo. O resultado é algo bastante desiquilibrado, como tocar uma longa sinfonia num piano desafinado e só, por segundos e à revelia, acertar numas notas. A suposta crítica resume-se a qualquer coisa que quase todo o cidadão conhece à partida mas que é repetido até à exaustão, mostrando nesse processo, a maneira como Ninagawa lida com os seus espectadores, isto é, disparando conteúdos chocantes e pomposamente filmados em todas as direcções, sem uma tentativa convincente de desenvolver conveninetemente os seus personagens porque, de alguma forma, se tem a certeza que a "mensagem" passada é indubitável, mas provocante. Axiomática, mas apaixonada pela sua pseudo-coragem. Para além disso, a pressão pela beleza que gera na personagem principal uma vontade em mentir e falsear a sua aparência e corpo, se paralelamente compararmos a esta maneira sensasionalista como Ninagawa nos "vende" a sua procura pela honestidade, é algo que se torna divertidamente contraditório. As cores, os cenários exagerados e cheios de coisas (Ninagawa sofre de um problema de exagero fotográfico: há mais em cinema do que preencher os sets e usar cores fortes) vão diminuindo a força psicológica da câmara (que podia ter sido expressa nos seus movimentos, nos seus planos), mas para preencher esse vazio, Ninagawa vai enchendo as acções da modelo com tudo o que lhe vêm à cabeça que dê uma vaga ideia de complexidade de carácter, desde actos lésbicos e chantagem com a sua agente, ménages, uso de drogas, alucinações (estrutura confusa de pesadelo-vigília), vicío doentio em cirurgias plásticas, etc. Este retrato hiperbólico de psicose, embora consiga gerar, à tangente, algumas imagens fortes, acaba por ser um espéctaculo degradante de ideias mal aproveitadas e geridas, e revela uma desorganização não intencionada. Para finalizar, Helter Skelter padece do problema típico do filme que não sabe terminar, engendrando várias cenas finais que arrastam a narrativa por mais uns penosos momentos, sempre com o mesmo registo de imagens exageradas, mas frias e distantes, justamente, como aquelas que se pretende criticar.