22/11/12

Fragmentos de 2012/11/22

 

The Ghost Cat of Ouma Crossing (1954) de Bin Kado: **
Um filme retirado do cânone kaidan da Daiei, talvez o primeiro estúdio a apostar seriamente numa vertente mais ligada ao terror, rebuscado das suas origens folclóricas. Para além da série de filmes Ghost Cat (este filme é o terceiro capítulo) como não lembrar essa obra-prima de Mizoguchi chamada Tales of Ugetsu? O que, todavia, esse filme tinha de inovador e refrescante, este tem de repetitivo e algo inspirado pela gramática comum do género. No caso, temos a típica história de vingança à Yotsuya Kaidan - há mesmo uma referência à peça nos minutos finais em que as actrizes a ensaiam, antes de serem vítimas da maldição final, tal como os personagens que interpretam , um jogo de espelhos referênciais interessante. Tal inspiração, porém, parece ser uma desculpa para se apostar num terreno seguro e pouco arriscado, usando, mesmo em termos de imagem, disposítivos cénicos, truques de câmera e alguns jogos de montagem que, por esta altura, já estamos habituados e à espera de um pouco mais. 



Happiness of Us Alone (1961) de Zenzo Matsuyama: *****
Comovente retrato sobre as dificuldades de um casal de surdos (ele surdo-mudo, ela surda) em constituir família e sobreviver aos tempos ingratos e pouco felizes do pós-guerra. Mas esta é uma proposta inteligente o bastante para apurar os sentimentos na sua dimensão mais profunda e, apesar das várias pequenas histórias que se vão intercalando, nunca se perde o foco da relação singular entre os dois amáveis protagonistas. A prova disso é a obrigatória recusa da linguagem falada aquando da comunicação entre Michio (Keiju Kobayashi) e Akiko (Hideko Takamine), duas interpretações estrondosas, que através dos gestos, olhares e sorrisos nos transmitem uma ideia mais precisa e imediata dos seus sentimentos, fazendo entrar o espectador no seu mundo próprio. Nesta acepção sou apoiante daquele que disse que o modelo último de um actor de cinema é o mudo, já que as suas supostas palavras podem estar muito bem escritas ao lado, simplesmente como um apontamento mais detalhado do que se pretendia dizer. Aqui, - e ao contrário de A Scene at the Sea (1991), outro exercício em que o amor se reduzia ao silêncio profundo dos dois amantes surdos-mudos - a tremenda magia destes dois gigantes do cinema é que conseguem ainda dizer mais do que as próprias palavras, são estas que ficam aquém da mímica. Não se trata, por isso, só de exprimir mais com menos, mas de criar um elo de ligação íntimo entre o espectador habituado à redução óbvia da psicologia pelo díalogo, e estes personagens belos, surdos de ouvidos, mas com emoções mais visíveis, inclusive mais audíveis espiritualmente, do que as nossas. Bravo, Zenzo Matsuyama.
 


Orgy (1967) de Koji Wakamatsu: ***
Este raro filme de Wakamatsu, felizmente emitido na estação televisiva italiana RAI3 como forma de homenagem ao pai do pink político recém falecido, entra em consonância total com o resto da sua obra dos finais dos anos 60, princípios dos 70 por escolher uma certa preponderância alegórica e um tratamento de imagem cuidado. Não esquecendo, também, o diálogo com a tradição de filmes de hitman - o que significa que o cinema de Wakamatsu pactuava, por vezes, com os géneros cinematográficos para criticar mais abrangentemente os poderosos, os capitalistas e os patrões malditos - Orgy pouco tem de erótico em sentido estricto. Podemos até dizer que a Orgia referida no título não é mais do que uma metáfora para a multiplicidade de interesses, papeis e intervenientes que o dinheiro faz movimentar, numa fome de sempre pôr os sujeitos a querer alcançar a sua expansão: ter-se, a si e aos outros. Comparada assim, a ganância monetária à sexualidade sem motores sentimentais que não a satisfação momentânea, eis que Wakamatsu suavemente nos convencia de que o amor poderia ser a salvação para se arrebatar com a doença da exploração do homem pelo outro. Nada de mais cínico que este epílogo: uma lixeira a céu aberto chamada de mundo capitalista onde mesmo o amor existe como manipulação interesseira, uma saída falsa como todas as outras, condenada ao extermínio pela sua insustentabilidade.



The Egoists (2011) de Ryuichi Hiroki: *
Se havia alguma coisa de relevante a dizer acerca das relações entre homem e mulher, Hiroki já o tinha dito (e surpreendentemente bem) nessas duas análises complexas que foram Vibrator (2003) e It's Only Talk (2005). Num caso como no outro - perdoe-se a tentativa de homogeneidade - tratam-se de deambulações afectivas que são assombradas pelo espectro da solidão, num caso, e noutro pela depressão (com contornos maníacos). Mais do que essa descrição lenta das passagens e dos andares (como se fossem, afinal, road-movies não espaciais, mas mentais), Hiroki conseguia também filmar a mulher sem tiques de moralista (conservando, um certo fetichismo fascinado, que vem certamente do seu passado como realizador pink) e, libertando os seus próprios personagens de uma psicologia fechada, a esperança seria a de que se esbatesse uma linha narrativa muito definida, sem, ainda assim, a destruir. O equilíbrio é difícil de alcançar e, certamente, o problema maior deste Egoists - que é um problema comum a quase todos os outros filmes de Hiroki, exceptuando esses dois em que tudo se encaixa na perfeição - é que está simultaneamente liberto de um esquema narrativo único, mas como não consegue expurgar os seus personagens das ocasiões em que, de cada vez, estão inseridos, nem tão pouco consegue dar-lhes uma interioridade independente o bastante para serem mais do que se representa à primeira vista, ficamos com uma imagem diminuida em quase todos os aspectos. Filmagens de uma relação a dois aqui sem o espírito certeiro de antigamente, confiando em demasia numa espécie de roteiro de coisas a suceder umas às outras: acontece x e depois y, sendo que cada acontecimento muda as coordenadas dos dois amantes. Retira-se importância ao interior psicológico em virtude de uma mudança alternada (e, algumas vezes, descabida) que vem sempre do exterior (da acção narrativa) e condiciona, de maneira decisiva, o interior, os personagens. O grande problema é que este interior faz-se valer como uma concha vazia, por esperar desenlaces alheios, e também são assim os seus intervenientes: falta-lhes insight, falta-lhes espírito.

15/11/12

Fragmentos de 2012/11/15



Mother (1963) de Kaneto Shindo: ****
Num primeiro sentido, Mother é um regresso de Shindo às vivências mais imediatas dos seus personagens, explorando os seus dilemas e sofrimentos de uma maneira mais directa (não adoptando aqui, pelo menos em parte, o registo mais alegórico com que se tinha ocupado em Ningen, um ano antes, e desenvolveria em toda a sua plenitude com Onibaba um ano depois). Não devemos menosprezar o título: este é um filme que dialoga com uma tradição japonesa peculiar do filme de mãe (o chamado Haha-mono: grandes relatos sobre a força materna) e como que a vira do avesso, criando uma espécie de sentimento disperso e embriagado em torno de Hiroxima (e suas disposições melancólicas e feridas ainda bem presentes), ora transpondo os pensamentos e dificuldades da mãe auxiliando-se de uma voz-off trepidante, ora transfigurando aquela sensação rotineira com imagens e planos bem fortes e demarcados (a repetição do trabalho, etc.) Por outro lado, a descrição oblíqua da sexualidade da personagem principal corrói um pouco a ideia da pureza associada à maternidade (e que era o grande alibi dos Haha-mono), finalizando o filme com um sentimento algo dúbio acerca do poder real, e não idealizado, fetichizado, de uma mulher: o poder de dar ao mundo uma vida.



Sugata Sanshiro (1965) de Seiichiro Uchikawa: ***
Produzido por Akira Kurosawa, este remake alongado (e na maior parte dos aspectos, melhorado) da sua primeira obra conta com Seiichiro Uchikawa na cadeira de realizador e ainda com a participação especial de Toshiro Mifune (uma pequeno cameo de Takashi Shimura, o gang Kurosawa está cá todo!), no papel de mestre. Todo o feeling que as imagens carregam tem uma assinatura decididamente Kurosawaiana (alguns planos são de génio), mas de um Kurosawa cinemascope, muito mais maduro e moderno do que o da altura do primeiro Sugata Sanshiro. É como, não só um upgrade cinematográfico, mas também um diálogo com a forma de fazer cinema do mestre, que podemos ver esta nova reavaliação do famoso judoca japonês. O único defeito crasso é querer juntar dois filmes num, fazendo que a estrutura narrativa se repita duas vezes (dois pares de antagonistas, dois "supostos" combates finais), criando um menor efeito cilmáctico.



The Massacre Gun (1967) de Yasuharu Hasebe: ***
Hasebe, artesão cujo início de carreira na Nikkatsu coincidiu com as últimas tentativas do  estúdio em reabilitar o género gangster (ou como o estúdio o auto-intitulou, Nikkatsu action) vê-se aqui forçado a contar uma história sombria e negra de vingança e retribuição sem qualquer tipo de consessões, à imagem e semelhança do próprio declínio lento das infra-estruturas do estúdio. Curioso como neste mesmo ano, tínhamos visto com o mesmo actor principal (Joe Shishido) e o mesmo compositor (Naozomi Yamamoto) essa obra-prima de Seijun Suzuki chamada Branded to Kill. Salvaguardando as suas diferenças óbvias, ambos os filmes captam uma certa disposição melancólica e de fim de era,  no caso de Hasebe, esgotando as possibilidades literais e mais óbvias do género e no de Suzuki subvertendo as regras até à desintegração formal e temática.



The Snake Girl and the Silver Haired Witch (1968) de Noriaki Yuasa: **
Primeira adaptação cinematográfica de um manga do mestre clássico de horror Kazuo Umezu, esta foi uma tentativa da Daiei competir contra a famosa série de filmes de Horror lançados pela Shochiku (Body Snatcher from Hell à cabeça) e outros exercícios degenerativos da Shintoho (na altura falida) carimbados pela crescente Toei, que empregava os realizadores saidos desse estúdio. Posta esta introdução de parte, estamos presente a um filme cujo alcance imagético tem o seu esplendor nas cenas oníricas em que o sentimento de horror pode chegar, não como susto, mas como contemplação artística e até psicadélica (veja-se o fabuloso trabalho de iluminação, sobreposição de imagens, e alguns enquadramentos bem afinados). Como é característico das obras de Umezu, a componente assustadora e ameaçadora está a ser vista pelos olhos de uma criança. É preocupando-se com tal inocência que o espectador se motiva a seguir o resto da história (passando por cima até mesmo de alguns infelizes e banais lugares-comuns que Yuasa não esconde, ex, o excessivo uso de voz-off). Curioso exercício de estilo, mas narrativamente pouco audaz, apesar da simpática personagem principal. 



Milocrorze - A Love Story (2011) de Yoshimasa Ishibashi: ***
Uma proposta muito semelhante às criações que marcaram grande parte da década passada no que a comédias japonesas diz respeito (ainda nos lembramos das insanidades Survive Style 5+, Funky Forest the First Contact, Yaji and Kita: The Midnight Pilgrims, etc). Posto isto, é um filme cujas qualidades e defeitos são muito semelhantes a essas outras tentativas extravagantes de unir comédia, algum drama e principalmente non-sense. Por um lado, é de saudar uma perpétua inventividade imagética (veja-se o formidável falso plano-sequência em slow-motion da batalha de sabres, uma aposta formal rara no cinema contemporâneo), que só peca por usar excessivos meios CGI, tornando a definição demasiadamente artificial e algo opaca. Abstraindo-nos desse factor, algumas ideias (como tornar a imagem cómica, antes do conteúdo) resultam bastante bem e o entretenimento é garantido, porém, não deixamos de sentir alguma dispersão narrativa (visto ser composta por três sequências heterógeneas entre si, exceptuando apenas um acontecimento que une um segmento ao outro). Neste sentido, o elo que liga as três partes (que contam com três interpretações bastante divertidas do próprio realizador, Yoshimasa Ishibashi) é puramente temático. Falando de histórias de amor (e sendo esta uma comédia) havia a tentação de resolver de forma fácil os problemas lançados pelos personagens e, pelo contrário, aqui só há duas formas de encarar o amor: ou trágica ou comicamente. Outra curiosidade aprazível foi ver o nosso querido Seijun Suzuki fazer uma cameo bem divertida!



The Millennial Rapture (2012) de Koji Wakamatsu: 0
Aqui está um exemplo claro de como a definição "testamento cinematográfico" pode ser absolutamente ocasional, não reflectindo nenhuma verdade quanto ao ponto último e mais maduro de uma obra. Ainda nos custa a perda tão recente de Wakamatsu, porém este Millennial de nenhuma forma espelha o melhor que o realizador forasteiro nos habituou. A verdade é que desde United Red Army que era evidente um reducionismo da imagem em virtude de narrativas com um sabor docu-drama (o digital, algumas vezes incompreendido era uma manifestação plena tanto de um espírito pragmático de filmar com baixo orçamento, como era reflexo de um aproveitamento dessa limpidez típica de uma abordagem mais próxima do olho real, do olho não ficcionado). Todavia, esse estilo - que à tangente e quase por coincidência, fazia sentido nas leituras desconstrutivas da história japonesa - aqui é meramente um resquício de opções preguiçosas e obtusas que teimam em se conservar. Esta adaptação de um romance épico de Kenji Nakagami (tão bons filmes já vieram de coisas escritas por este senhor!) tenta traçar as vidas dissidentes dos burakumin, tornando-os peões do destino de uma maldição geracional. De alguma forma, por serem ostracizados há gerações, algum determinismo trágico mantêm-se, apesar até da sua capacidade de tentar fugir às mãos da sua própria fatalidade. Eles são consequências vivas do próprio passado. Isto pode unicamente inferir-se, pois Wakamatsu jamais traça grandes conclusões acerca da temática que o romance original parece querer abordar, mantendo inteiramente um registo fracamente descritivo sobre os percursos desses jovens personagens, substituindo tudo aí, por um elogio deveras simplista sobre a maternidade. Shinobu Terajima (que aqui parece ser a única actriz que sabe interpretar convenientemente) é a personificação daquela mulher que tem o dom de dar a vida, mesmo que essas vidas estejam condenadas ao fracasso desde o princípio. Neste sentido, Wakamatsu desvia-se da maior parte do tempo que concentra nos jovens e repete até à exaustão, transferindo em intensidade, os mesmos planos de vales, da lua, do mar e da foz, tentando de alguma maneira focar-se nessa questão da dádiva da vida e do milagre que é nascer, apesar de tudo isto não funcionar muito bem e prolongar-se em tempos indevidos. Valem muito mais os últimos segundos de Violated Angels do que duas horas penosas de uma obra fraca de um talento gigante.

08/11/12

Fragmentos de 2012/10/25


The Black Gambler (1965) de Ko Nakahira: ***
Mais uma estilosa incursão pelos reinos da Nikkatsu, quando ainda os filmes de gangster e acção eram a sua especialidade. Obviamente inspirado por James Bond, Akira Kobayashi com o seu ar de galã irreverente mas que leva sempre a melhor dos seus vilões é um dos pontos-altos do filme. Outro, é o modo como se filma o mecanismo dos múltiplos jogos de aposta, filmando nesse processo, tanto o pormenor das peças, cartas, objectos do jogo como as expressões, expectativas e batotas dos seus intervenientes.



Smuggler (2011) de Katsuhito Ishii: **
Após um hiato de quatro anos, podíamos dizer que a assinatura de Ishii se tinha refinado. Com Taste of Tea e Funky Forest, o seu humor aproximava-se de um absurdo deadpan, com sensibilidades non-sense aliadas aos silêncios espaçados do dia-a-dia. A sua proposta de 2008, o remake do filme de Hiroshi Shimizu, parecia ainda ser mais estranha porque se afunilava de alguma maneira todo o estilo próprio do princípio de sua carreira. Ora, em Smuggler, Ishii retoma não só a sua estilística mais veloz dos seus primeiros dois filmes como recicla aquela tendência do princípio da década passada: uma apropriação de uma linguagem cinematográfica irreal e manga aplicada a um universo povoado por humanos. De facto, para aproveitarmos os existentes (mas não muitos) benefícios de Smuggler precisamos de uma constante suspensão de juízo, todavia, tirando a parte do estilo (aquela sequência inicial, por exemplo, muito satisfatória), a insuficiência narrativa prevalece, demonstrando que nem o cast de luxo aqui presente consegue manter-se muito bem de pé quando não há acção nem cenas radicalmente sangrentas a preencher esse vazio estrutural.



Kotoko (2011) de Shinya Tsukamoto: ****
É com alguma alegria que se anuncia que Tsukamoto regressou, depois de quase meia década irreconhecível. Mas este regresso implica uma renovação (e uma nova aposta) estílistica que mantém ainda assim uma linha temática que simplesmente não esmorece em coerência, se nos ativermos aos seus outros filmes mais clássicos. Em primeiro lugar, Kotoko é Cocco, a cantora de Okinawa que tem aqui uma estreia extraordinária não só como actriz, mas como co-argumentista com o próprio Tsukamoto. Os seus jogos de mímica complexos (não é por acaso que as suas falas são quase sempre em voz-off) o seu olhar perturbador e neurótico, quase sempre a prometer qualquer coisa intermitentemente grave, os seus gritos de horror que chegam a chocar mais do que as próprias representações dos seus medos etc, dão à estilística de Tsukamoto uma diva perfeita e adequada (ousamos chamar-lhe assim). Para além disso, se nos dois Nightmare Detectives já havia uma preocupação com o tema do poder subordinante da mente em relação ao real, aqui em Kotoko temos uma verdadeira exploração dessas possibilidades aterradoras da intervenção quase anárquica da mente no mundo. É como se Tsukamoto subvertesse as próprias regras do seu cinema (cujos ódios e horrores eram sempre ou quase sempre exteriorizados: a cidade metalizada em Tetsuo, o corpo como algo externo em Tokyo Fist, etc) e virasse tudo para dentro da complexidade de um só acontecimento humano. Isto, que poderíamos apelidar de um genuíno horror solipsista, causa no próprio espectador um sentimento agonizante de claustrofobia mental e ansiedade - talvez a shaky-cam seja abusiva em certos pontos, mas aqui preenche esse mesmo propósito, contrário em tudo à simplificação da acção que ocorria em Tetsuo Bullet Man usando, todavia, o mesmo mecanismo -, no entanto, a forma ainda conciliadora como o filme acaba não nos deve enganar quanto à experiência por que se passou. Bem vindo, outra vez, aos pesadelos de Tsukamoto.



Isn't Anyone Alive? (2012) de Gakuryu Ishii: 0
Toda a gente pôs as mãos no fogo quando soube que Sogo Ishii (agora Gakuryu) para o seu regresso ao panorama do cinema japonês, estava a basear o seu próximo filme numa peça de teatro absurdo que tinha como tema o fim do mundo. Não tem sido a primeira (nem vai ser a última) vez que cineastas já consagrados dedicam a sua visão apocalíptica em celulóide, porém, se houvesse alguém cujo projecto se assentasse que nem uma luva, essa pessoa seria o próprio Ishii que, como sabemos, é o cineasta dos impulsos destruidores, mas também de alguma redenção associada a eles. Tendo visto o filme não há nada que prevaleça senão um forte sentimento de desilusão que faz valer a experiência como um resumo de cenas mal filmadas e interpretadas com um pano-de-fundo de uma crítica sem nenhuma profundidade sobre a vida dos imensos personagens todos condenados ao extremínio. Para além disso, o que ainda acabou por chocar mais foi o perpétuo esvaziamento e falta de reinvenção imagética que revela uma (talvez deliberada) falta de visão, nunca querendo transportar a suposta "mood" apocalíptica em imagens dignas desse efeito. Uma desilusão.

Fragmentos de 2012/10/19


Somewhere Beneath the Wide Sky (1954) de Masaki Kobayashi: ****
Mesmo sabendo nós, agora com mais substância, que a primeira meia-dúzia de filmes de Kobayashi são mais Kinoshita do que outra coisa, esse mesmo facto não deve retrair a apreciação quando se trata de um filme bem pensado e bem executado como este. Os motivos do típico filme Shochiku estão, então, bem presentes: a dificuldade das relações familiares misturada com o quotidiano cheio de solavancos. A juntar a isto, um grande cast (Hideko Takamine, Keiji Sada, Yoshiko Kuga, etc.).



Yellow Crow (1957) de Heinosuke Gosho: ***
Gosho traduz aqui um olhar esperançoso, apesar de uma componente dramática omnipresente e de alguns laivos pessimistas, da paternidade e da infância, filmando a condição da criança como susceptível de ser melhor compreendida pelos adultos e pais do pós-guerra. A esta dimensão quase social, junta-se uma componente mais íntima que relembra Naruse quanto à descrição dos ângulos imperfeitos de quem concentra em si o poder: a mãe, demasiado submissa quando o pai aparece (mas que ainda assim, tem uma relação profunda com o filho), e um pai exercendo uma autoridade por vezes cega e castradora, sem compreender os seus próprios motivos.



Isshin Tasuke - A World in Danger (1958) de Tadashi Sawashima: ***
Tadashi Sawashima, um dos mais desprezados artesãos da Toei, pega no ídolo Kinnosuke Nakamura (interpretando aqui dois papéis, o príncipe e o pobre) e filma um colorido exercício de estilo, cheio de alegria e força.



Snow Flurry (1959) de Keisuke Kinoshita: ****
Uma torrente de imagens invade a retina do espectador, a sua intensidade e o modo como estão apresentadas (cores bucólicas com grandiosos travelings) poderia sugerir uma dispersão narrativa qualquer, mas a engenhosa montagem faz que a componente dramática dos personagens seja um vai-vem circular (por isso se repetem os mesmos planos e se efectuam movimentos ora retro-activos, ora pro-activos na diegese), a essência, afinal, de todo o sofrimento. Talvez o mais interessante desta pequena jóia de Kinoshita é o facto de o mais importante - o que sai do círculo do sofrimento e da desilusão - é o que está em aberto e permanece radicalmente indeterminado. A mãe pergunta: "Isto não é um bom presságio de um novo começo?" E é aí que o filme termina, deixando talvez os momentos mais luminosos na imaginação de quem assiste.



Chikamatsu's Love in Osaka (1959) de Tomu Uchida: *****
Surpreendente obra-prima de Uchida que aborda de um ângulo fascinante tanto a temática do amor fatal como todo o universo de Monzaemon Chikamatsu, o maior dramaturgo clássico de teatro bunraku. O desenvolvimento narrativo tem-se como uma esgrima silenciosa entre os intervenientes trágicos do amor (os representantes de um mundo cuja realidade se encontra numa transgressão à beira do sonho e da morte) e o ponto-de-vista aparentemente passivo do artista - Chikamatsu, ele próprio - que os observa para os transformar num ideal de beleza inatingível e nobre (contrária, portanto, à dureza áspera do real: dinheiro, trabalho, regras sociais estanques, etc.) É, por isso mesmo, um filme que testemunha de maneira perfeita - correlacionada e solidamente dialogada - como os rios díspares, violentos e passionais da vida podem vir desaguar num mar criador - ainda algo sofrido por se relacionar minimamente com o real - que irá, enfim, desaguar num oceano pacífico, que esconde correntes instáveis e que é representado pelo produto final, a obra derradeira que nasce desse sopro vital. Bravo!



A Woman's Place (1962) de Mikio Naruse: ***
Fecha-se assim o ciclo de 69 filmes narusianos disponíveis. Como dizia Catherine Russel no seu estudo "Woman and Japanese Modernity", esta trilogia tardia de contos sobre mulheres (nas quais se podem contar ainda, As a Wife as a Woman e A Woman's Story) foi largamente críticada por ser uma versão simplificada da estética pessimista de Naruse. A película pertence a uma moda de declínio por parte dos estúdios que faziam grandes filmes de família com um cast à medida dessas propostas. Mesmo não sendo das melhores coisas que fez, podemos ver aqui um ensaio em ponto pequeno (embora haja tantas personagens!) do que seriam duas das suas obras melhores do anos 60, Yearning e Scatered Clouds.



Yakuza Soldier - Rebel in the Army (1972) de Yasuzo Masumura: **
Este é o nono filme de uma saga começada com o já visionado Hoodlum Soldier, tanto este último capítulo como o primeiro têm a mão de Yasuzo Masumura, mas os outros sete tinham ficado ao encargo dos outros "artesãos" da Daiei até à sua falência. Não se estranhe, por isso mesmo, o facto de ter sido a Toei a produzir este filme e a Katsu Productions a co-produzi-lo, a primeira ficara com o papel de produzir obras dos mestres dissidentes do estúdio (Kenji Misumi, a saga Zatoichi etc). Há aqui, portanto, uma sensação diametral de fim de era quanto ao género e uma certa estética que cai em redundâncias várias e uma sensação de já visto permanece incontornável. Por outro lado, se Shintaru Katsu assume sempre um destaque que se justifica com a sua presença, a narrativa é um tanto escassa e não consegue fazer brilhar a anarquia de Hoodlum Soldier, por exemplo (ou dos filmes de balbúrdia bélica que são os filmes de Kihachi Okamoto). Percebe-se em parte porque é que, ainda no mesmo ano, Masumura se viraria para a produção independente lançando-nos essa afronta (no bom sentido) que é Music. Decerto, a fórmula Daiei estava aqui a dar as últimas...



The Young Rebels (1980) de Keisuke Kinoshita: *
Infelizmente não passa de um conjunto de pedaços pretensamente documentados sobre criminalidade juvenil, as suas origens e a consequente indagação de responsabilidades. A componente fragmentária (não só narrativa, mas também cinematográfica: constantemente se salta de um registo para o outro) torna a experiência completamente díspar e incoerente, perfilando inúmeras personagens que só estão na acção para desempenhar uma função muito específica, quase sempre negativa, susceptível de reprovação e castigo pelo espectador, e que, por essa mesma razão, raramente são dignas de uma genuína afectação. Por isso não é nada estranho que mais de dois terços do filme seja perpassado por um sentimento algo hipócrita porque a sua moral tem qualquer coisa de auto-fágico.



Koroshi (2000) de Masahiro Kobayashi: **
Um filme que parte dos mesmos pressupostos narrativos das produções iniciais de Kobayashi. História estranha, melancómica (perdoe-se o neologismo) de hit-man's com vários piscar de olhos reflexivos a uma certa cultura cinéfila que ao espectador normal pode parecer um pouco pretensiosa e deslocada. No caso, o tom começa por ser mais sarcástico, gozando-se com a necessidade (pronta a transcender qualquer normalidade) de trabalhar e ocupar uma existência destructurada e entendiante com um ofício no mínimo caricato. Valha-nos Ryo Ishibashi nos momentos mais inspirados, mas continua a ser uma proposta um tanto ou quanto desiquilibrada.



Postcard (2010) de Kaneto Shindo: **
Não é de longe dos momentos mais inspirados de Shindo (mas realizar aos 98 anos não deve ter sido certamente fácil), no entanto acaba por ser uma visão bastante teatralizada de um tributo a uma geração (da qual Shindo podia ser visto como um dos últimos representantes) que sofreu na pele a morte ideológica de que proveio. É também tocante por ainda estar tão próxima a morte de um dos definitivos mestres e por, ainda que aparentemente se pense o contrário, haver aqui uma prova de uma energia louvável e um amor pelas capacidades narrativas do cinema.



Robo-G (2012) de Shinobu Yaguchi: **
Um razoável regresso de Yaguchi às comédias simpáticas. Executa-se aqui o usual filme cuja narrativa gira em torno de uma fraude, e por isso, a maior parte dos momentos são de uma construção sucessiva de embaraços, porque, justamente, o espectador sabe mais do que os personagens que são enganados, quando estão a enganar. Na verdade, o facto de um dos protagonistas da fraude ser um velho reformado (grande Mickey Curtis!) dá um sabor mais doce e amargo a toda a empreitada, já que é no meio da sua solidão e imcompreensão que nasce a malfeitoria.

Fragmentos de 2012/10/02


Black Snow (1965) de Tetsuji Takechi: ****
Este aguardado filme do provocador Takechi acabou por surpreender pelo seu ritmo pausado, respirado com longos planos-sequência, relembrando, a passos, alguns dos pesadelos formais que a sua geração ainda veio a aguçar mais, até às últimas consequências. Obviamente este é um filme histórico por ter sido a causa do aprisionamento e julgamento posterior de Takechi, uma jogada política para demonstrar a outros realizadores que os filmes pink não deviam chegar desta maneira tão violenta e arrojada ao grande público. De facto, se há algum nudismo, o que mais deve ter assustado as autoridades foi, sem dúvida, o carácter apático e anti-social do protagonista, também ele um percurssor do que seriam os heróis nos filmes de Wakamatsu ou outros. Depois, para além de um espírito anti-americano que é recorrente, percebemos que a estética onírica que era essencial em Daydream, aqui aparece com outros contornos, mas salvaguardando-se o essencial.



Crimson Bat, the Blind Swordswoman (1969) de Sadatsugu Matsuda: **
Recentemente remasterizado com melhor imagem e com a trilha sonora original (andavam por aí versões dobradas num inglês sofrivel), esta saga de quatro filmes é uma mistura incomum dos motivos vingadores das heróinas protagonizadas por Meiko Kaji (Lady Snowblood), Junko Fuji (Red Peony Gambler) ou até mesmo Junko Miyazono (Legends of the Poisonous Seductress) com um toque à la Zatoichi, já que aqui a heroína é cega e aparenta ser, tal como o famoso massagista, frágil e susceptível. Na primeira metade do filme a componente visual é grandiosa e o uso dos conhecidos truques de iluminação de estúdio estão presentes, assim como os detalhes da cenografia que são magistrais. Porém, narrativamente temos a típica história de vingança, entrecruzada com o ressurgir de passados negros de várias personagens, algo que se torna um pouco cansativo por ser previsível e melodramático (mas essas são as vicissitudes do género). De resto, nada mais a assinalar senão uma curiosa e mediana introdução à personagem e às aventuras de Oichi.



Trapped, the Crimson Bat (1969) de Sadatsugu Matsuda: **
Tinhamos dito que a personagem interpretada por Yoko Matsuyama era ligeiramente diferente dos modelos que se inspira. Isso deve-se, maioritariamente, por ser uma versão mais delicada e feminina da mulher assassina. Neste segundo capítulo, que é o filme final de Sadatsugu Matsuda, Oichi como que encontra uma felicidade provisória junto de um homem para, novamente e com ainda mais melancolia, regressar à sua vida usual de forasteira. Trata-se de uma estratégia comum de aprofundamento de um personagem que é, de alguma maneira, um pária mas que nunca esquece a possibilidade de um certo tipo de redenção junto daqueles que nega, os homens. Tal personagem existe a potes no cinema japonês e aqui temos mais um testemunho da sua complexidade, mesmo sendo um filme apoiado numa certa repetição incomodativa, que é a repetição do género.



Watch Out, Crimson Bat (1969) de Hirokazu Ichimura: *
Neste terceiro capítulo, Oichi tem de entregar um pergaminho que lhe foi confiado por um moribundo. Nessa viagem encontra o típico rival que se tornará um companheiro de viagem. Mais uma vez, Oichi é confrontada com os seus instintos de apego para os renegar numa batalha final sangrenta e violenta. Na sequência dos outros dois capítulos, este não se consegue destacar nem do primeiro, porque não desenvolve quase nada mais da personagem pricipal, nem do segundo, porque repete o mesmo esquema psicológico de Oichi.



Crimson Bat, Oichi: Wanted, Dead or Alive (1970) de Hirokazu Ichimura: *
O fechamento da saga mostra-nos um filme descentralizado da personagem principal e mais interessado nas relações que vão circulando em torno da protagonista (resulta curiosa a inclusão do misterioso personagem interpretado por Tetsuro Tanba). É por isso mesmo, pouco concentrado narrativamente, mesmo rebuscando alguma da inspiração imagética que vivia no primeiro filme e na sequência final do segundo (a mais completa, nesse domínio, de toda a saga). Um final que ainda assim sabe a pouco.



May Love Be Restored (1980) de Shigeyuki Yamane: **
Trata-se de um romance trágico entre um jovem aspirante ao sacerdócio e uma rapariga inocente vendida a um bordel pelos pais. Os dois prometeram casar-se quando pequenos e são, por isso, confontados com um mundo em constante mudança, que aparentemente faz renegar as promessas de eternidade. A paixão é vista como o desejo de aprisionar as constantes flutuações da realidade, como elas nos transformam ao ponto de nos tornarmos irreconhecíveis. O tema é este, mesmo que em termos imagéticos estejamos perante um filme feito à medida dos anos 80, com o seu estilo simplificado e redundantemente televisivo. A história e os dissabores dos personagens servem mais a uma interpretação da mítica história do incêndio do Templo do Pavilhão Dourado. Interpretação essa, aqui menos intelectualizada do que a versão mais conhecida de Yukio Mishima, mas mais interessada na componente trágica do amor e da sua impossibilidade. Neste sentido, não só o final raivoso, mas toda a parte do funcionamento do bordel e da perda da inocência da protagonista fez-me lembrar os filmes tardios de Hideo Gosha (como, por exemplo, The Geisha ou Tokyo Bordello).



Rape Climax! (1987) de Hisayasu Sato: *
Perfilam-se aqui certas obsessões temáticas do maligno - e, mesmo com piores filmes, sempre interessante - Sato, desta feita, criando um jogo de desconexão e identidade que poderia ter resultado bastante melhor se se optasse por caminhos imagéticos mais caprichosos (como o próprio viria a fazer). O problema dos filmes "pink" costumam ser as às vezes supérfluas cenas de sexo que aqui ainda tornam a experiência menos aprazível estéticamente.



East Meets West (1995) de Kihachi Okamoto: 0
Nem se pode dizer que o Este encontrou o Oeste, nem tão pouco parece Okamoto ter encontrado o seu "norte" nesta simplista e desastrada aventura "blockbuster" de mixórdia que não consegue fazer justiça nem ao filme de sabre, nem às visões dos grandes mestres do western, ficando todo o exercício preso a uma mediocre experiência pulverizada com coisas que podiam ter sido melhores. Pior do que isto, é a contínua tentativa de encher os tempos mortos com um "comic relief" que não funciona de maneira nenhuma, e consegue ainda desesperar mais o espectador. Quando penso que este filme foi realizado por alguém que fez obras definitivas como The Sword of Doom ou The Age of Assassins fico um pouco incrédulo.



Sharaku (1995) de Masahiro Shinoda: ***
A história do misterioso pintor Sharaku (bom complemento a outras obras sobre pintores) é aqui contada por Shinoda de uma maneira leve, mas não leviana, articulando aqui a representação da vida japonesa do século XVIII com as rotinas artísticas e suas rivalidades. É, por isso mesmo, das obras melhores do período tardio de Shinoda, que, como sabemos, não é muito favorável a obras-primas, nem a bons filmes, sequer. Ouça-se também a eclética (desde instrumentos tradicionais a sonoridades mais jazzy) e penúltima banda-sonora de Toru Takemitsu. Um mimo.



ANPO - Art X War (2010) de Linda Hoaglund: ****
Um documentário muito inteligente que vai ziguezagueando entre relatos na primeira pessoa e sequências imagéticas estáticas (pinturas e fotos) ou móveis (documentos da altura ou excertos de filmes) sobre a relação complicadíssima entre os Estados Unidos da América e o Japão, desde o final da 2ª Guerra, passando pela contestação nos anos 60 sobre o famoso tratado de mútua cooperação e segurança, até ao ainda existente problema das bases americanas em Okinawa. A forma intervalada do documentário permite que as imagens falem por si e tenham o seu tempo de intervenção na retina do espectador, contando elas ainda melhor a história do que qualquer testemunho documentado em video, servindo mais como uma muleta informativa do que outra coisa. Para mim, mais do que as fotografias e até alguns clássicos do cinema que vão aparecendo, a mais valia são mesmo as pinturas que me abriram para um mundo que eu julgava desconhecido (a pintura contemporânea japonesa). Nesse domínio, para além do meu conhecido Tadanori Yokoo, artistas como Tatsuo Ikeda, Hiroshi Nakamura, Shigeo Ishii, mas principalmente Kikuji Yamashita (que obra estarrecedora!) foram descobertas completamente decisivas e são um testemunho vincado a negro de estados disposicionais crepusculares, resultado de um tempo histórico não menos negro.



Ashita no Joe (2011) de Fumihiko Sori: *
Sendo um ávido leitor do mítico manga original, entrei relutante para esta adaptação, que parecia tão fiel imagéticamente às aventuras do trágico pugilista, Joe. Pois bem, se de facto, se confirmou essa componente fidedigna quando à imagem (às vezes até demasiado fiel, resultando forçada alguma inclusão de imagens manga num universo imagem real), o espírito não está totalmente lá. E isso, deve-se, principalmente à prestação que mais importante seria, a de Joe. O actor que, em vez de representar a fúria, o sangue quente, mas também a amizade e os sentimentos mais nobres, preferiu optar por uma espécie de postura de lobo solitrário, sem grandes sentimentos ou fervuras, o que diminiu toda a compaixão que poderia haver. Outro falhanço, deve-se ao facto de a narrativa estar construida de uma maneira pouco perspicaz, já que lambuza as passagens cruciais do manga, mas não percebe que seria preciso momentos mortos para desenvolver os personagens. Uma pena, já que, apesar das dúvidas, parecia prometer uma boa empresa.



Hanezu (2011) de Naomi Kawase: ***
Há quem julgue ser um dos melhores filmes de Kawase, mas, não deixei de achar que as imagens, muitas vezes arrebatadoras, foram-se tornando mais banais à medida que a história se desenvolvia, um olhar acima de tudo, mitológico acerca da guerra do amor. Algumas boas ideias imagéticas ficaram um pouco manchadas por menos boas interpretações.



Ace Attorney (2012) de Takashi Miike: *
O novo filme de Miike é insuficiente a vários níveis mas consegue entreter. Porém, tem uma dificuldade enorme em se afirmar como objecto cinematográfico independente, pedindo emprestado todas as ideias imagéticas a uma versão pouco plausível (mas tendo em conta o medium original e relativamente a ele, credível) de um jogo-de-video.

Fragmentos de 2012/08/13


A Brother and His Younger Sister (1939) de Yasujiro Shimazu: **
Não é tão interessante como Our Neighbor Miss Yae nem tão entretido como The Trio's Engagements, os dois outros filmes de Shimazu que andavam por ai. E, para complicar, o final apressado e pouco ou nada resolutivo (que era um "lugar-comum" da época: emigração para a Manchúria), acaba por fazer perder o interesse que vinha sendo construido acerca das obrigações sociais e o papel da mulher na crescente evolução social nipónica.



Sincere Heart (1953) de Masaki Kobayashi: ***
Neste segundo filme de Kobayashi voltamos a aperceber-nos da influêcia inquestionável de Kinoshita na realização e argumento dos primeiros filmes daquele que viria a ser uma das vozes mais originais do cinema japonês. Como exercício cinematográfico (e abstraindo-nos de uma suposta coerência autoral que muitas vezes confunde os juizos), este é um filme de primeiros-amores trágico, mas muito perspicaz na construção do drama, caindo poucas vezes no melodramatismo gratuito.



One-Way Ticket to Love (1960) de Masahiro Shinoda: ***
O que parecia ser um filme puro de encomenda, revelou ser uma boa surpresa dentro do género New Wave Shochiku. Não é, claro, tão satisfatório como Cruel Story of Youth ou Good-For-Nothing, dois filmes realizados pelos dois companheiros de Shinoda do mesmo estúdio e no mesmo ano, Oshima e Yoshida. Conta-se as aventuras da noite de Shinjuku, com um protagonista que, lentamente, vai sendo corrompido pela relação que tem com uma rapariga que anteriormente tinha salvado do suicídio. Ao contrário dos dois filmes acima citados, este é diferente no ponto central: ambos tratam o momento de queda moral da juventude, mas se os outros pegam na figura masculina e a tornam responsável desde o princípio, aqui é uma mulher que vai confundido as coisas e mudando as coordenadas de um, primeiramente, pacífico protagonista. A cena do concerto é já bastante madura principalmente pela música e certos efeitos sonoros que relembram a estilísitca de obras mais completas e arrojadas.



Dry Lake (1960) de Masahiro Shinoda: ***
Tal como as fotos das variadas personalidades políticas que estão penduradas no quarto do nosso anti-herói (desde Fidel Castro a Adolf Hitler) este outro filme de Shinoda com argumento de Shuji Terayama (ele mesmo tem uma cameo como membro do comité político estudantil) funciona como uma sonda das diversas e contraditórias mentalidades e tomadas de posição de um período conturbado da história nipónica. Sendo o seu único e verdadeiro problema uma certa dispersão narrativa, não deixa de ser, ainda assim, um estudo psicológico e político de personagens bastante interessante e com os seus pontos altos.



Shamisen and Motorcycle (1961) de Masahiro Shinoda: **
Com uma introdução agradável aos olhos e que apontava alguma ironia e humor, esperavávmos que o filme continuasse com essa disposição mais ácida (uma professora de shamisen sente-se incomodada com o barulho do trânsito lá fora) mas rapidamente nos encontramos numa narrativa já vista e um pouco artificial e telenovelesca sobre desilusões e mentiras maternais, desembocando em complexos de identidade por parte da geração mais nova, como se esses mesmos problemas de identidade fossem uma consequência das mentiras da velha geração. Percebe-se que a ideia desta dicotomia entre tradição e modernidade possa ter sido aliciante antes da feitura mais detalhada do script, mas o resultado final acabou por puxar pela parte mais melodramática. Todavia, se é um ponto a favor, no final, que o filme não tenha cedido ao fim trágico que já se previa, mais de metade do filme tem cenas pouco relevantes e menos boas.



Our Marriage (1961) de Masahiro Shinoda: ***
Ao que parece uma produção apressada pedida pela Shochiku a Shinoda - Zenzo Matsuyama escreveu o argumento em 3 dias - , acabou por ser um filme inicial da New Wave pouco simplista, ainda que o tema dilacerante da pobreza e felicidade possa ser uma constante já muito trilhada nos filmes desta altura. Aqui, Shinoda recorre ao talento de uma estreante, mas talentosa Chieko Baisho e de uma cinematografia bastante madura que consegue pôr bem em imagens o script que só esperávamos ser um pouco mais arrojado.



Tears on the Lion's Mane (1962) de Masahiro Shinoda: ****
Destaco já a excelente banda-sonora de Toru Takemitsu nesta melancólica história de amor e obrigação, nada nova no seu conteúdo (apesar dos "toques" do génio que havia já em Shuji Terayama), mas extraordinariamente bem filmada com uma cinematografia assombrosa (grande trabalho de iluminação!) que torna o que poderia ser mais um caso melodramático numa mais ambiciosa e negra experiência.



Black Lizard (1962) de Umetsugu Inoue: ****
Um festival orgiástico recheado de cores, sons e estilo. A verdade é que esta primeira adaptação da obra de Edogawa Rampo partilha do mesmo tratamento do "remake" (algo inferior) de Fukasaku, na medida em que alia satisfatóriamente a estética "pop" às perversões e obsessões dos personagens singulares que percorrem a intriga, recriando uma espécie de espectáculo musical kitsch pulverizado de genialidade imagética. Para além disso, uma leitura Mishimana não se afigura excessiva (foi ele que voltou a adaptar a obra para teatro na qual este filme se baseia) pois, para além de tornar o detective Akechi e a vilã ladra e artista, Black Lizard, antagonistas complexos, mas ainda assim, mais semelhantes a super-heróis do que personagens de policiais, vai também buscar a inquietação da beleza fatal e da maldade associada à inteligência como sede de corporeidade. É por isso também uma versão "light" mas não superficial, mais "pulp", mas nada estúpida (a mistura entre diálogos e coreografias cénicas é até bastante sagaz) dos motivos literários de Mishima.



Brave Red Flower of the North (1970) de Yasuo Furuhata: 0
Mais um ninkyo misturado com influências americanas, principalmente no domínio visual, já que este é daquelas produções da Toei fascinada com pradarias, cavalos, chapéus de cowboy e armas de fogo. A premissa é igual a tantos outros contos de cavalaria: começa-se com o típico tributo aos mortos e consequente passagem do testemunho do poder da família, demonstra-se a crueldade de um grupo de ambiciosos sem escrúpulos do outro lado, depois um forasteiro chega e assume a responsabilidade destruindo ou ajudando a destruir os antagonismos numa sangrenta cena final que se repete tantas vezes ao longo destas filmografias e que, como alguém dizia, faz ver que a honra e a humanidade, pares supostamente unidos, se vêem separados, obrigando os personagens a fazerem uma escolha derradeira entre uma e outra. Há os que conseguem dar mais alguma coisa a esta estrutura fixa, mas Yasuo Furuhata aqui não faz mais do que aplicar a fórmula e os lugares-comuns que todos conhecemos a um meio mais ocidentalizado.



Oh, My Son! (1979) de Keisuke Kinoshita: **
Última aparição de Hideko Takamine no grande ecrã, Oh My Son prometia mais do que deu. Trata-se de um filme de alerta sobre as carências da legislação japonesa no que a famílias de vítimas diz respeito. Tomisaburo Wakayama tem uma prestação forte, mas há-que dizer que o argumento muito descritivo nas emoções dos personagens, mas pouco focado nas questões que levanta (sendo que a componente teórica das ideias defendidas na tela é pouco inteligente e algo populista) não ajuda o talento que obviamente há dentro e fora do set.



Flic (2004) de Masahiro Kobayashi: *
Apesar de se perceber teoricamente as tentativas radicais de mudança formal que são inerentes ao esforço no cinema de Kobayashi, isso não proporciona necessariamente um filme agradável de se ver. Não consigo deixar de sentir que houve algum canibalismo no estilo e se é verdade que a segunda parte do filme tem momentos muito fortes e intensos (principalmente pelo papel da montagem, que era quase inexistente na primeira parte), também é verdade que o build-up para lá se chegar é preguiçoso e pouco inventivo, repetindo enquadramentos e abusando de planos-sequência que vão perdendo, a pouco e pouco nesse acto de excessivo uso, algum do investimento emocional que seria necessário.



L'anabase de May et Fusako Shigenobu, Masao Adachi et 27 années sans images (2011) de Eric Baudelaire: ***
Não é um objecto cinematográfico para todos nem se recomenda para quem não tem interesse ou nas filmografias forasteiras de Masao Adachi ou na estadia temerária dos membros do Exército Vermelho em Israel (claro que as duas dimensões se confundem). Os relatos da filha de Fusako Shigenobu são bastante tocantes, e as memórias de Adachi são retrospectivas sem a distância habitual que é apanágio deste tipo de documentários. Tudo isto é feito rememorando a forma da "teoria da paisagem" iniciada pelo próprio Adachi e outros nos idos de 60, funcionado todo o filme como um exercício epistolar, à distância, de paisagens que outrora Adachi e May trilharam.



Himizu (2011) de Sion Sono: 0
As experiências provocadas pelos filmes do Sr. Sono estão a ficar cada vez mais ridículas e cada vez menos suportáveis. Ao tocar o exagero da representação e dando uma psicologia sobrecarregada de psicose aos seus personagens, que parecem ter a complexidade de um veículo sem mudanças, obviamente que se pretendia dar-lhes uma espécie de crueza poética - assim explica o próprio Sono -, só que aquilo que torna autoral esta obra é o que a denigre e a torna, justamente, pouco recomendável. A narrativa é um misto de comichosa rebelião juvenil com preocupações mais nacionais, visto usar-se a situação recente do terramoto nipónico. Depois há uma noção - que se repete tantas vezes nos seus mais recentes filmes - de que "twists" narrativos desenvolvem os personagens de maneira definitiva quando as constantes mudanças de carácter tornam tudo num espectáculo inverosímil, ao sabor da perversidade do próprio realizador, que muda as coordenadas quando lhe bem apetece e quer. Um profundo sentimento interior de misantropia que se mostra superficial exteriormente, na sua obra, vai levando a mente de Sono a criar estes longos, desorganizados e desinteressantes filmes, musicados com peças clássicas que transmitem pesar e que demonstram - entre outras coisas negativas - que se trata de um estilo repudiantemente sensacionalista, mesmo quando se tenta provar que a redenção pode existir.