21/03/13

Fragmentos de 2013/03/21



The Woman Gambler (1969) de Buichi Saito: *
Problema do género: quão complicado é falar sobre aquilo que já vimos milhares de vezes repetido! No caso, Buichi Saito, que tirando o seu belo trabalho no quarto capítulo da saga Lone Wolf and Cub sempre fora um artesão mediocre, troca o sexo do protagonista comum dos contos de honra e cavalaria yakuza e pouco ou nada mais muda ou reinventa. Podemos até mesmo dizer que excluídas algumas falas e memórias de perda do seu amante (essa cena de reminiscência a única que destoa do resto), o facto de ser uma personagem feminina a tomar as rédeas do drama não se traduz em nada de significativo. Felizmente para nós, já vimos muito melhor.



The Shiranui Sea (1975) de Noriaki Tsuchimoto: ****
Segunda parte da saga documental Minamata, ou melhor dizendo, como documentar um crime ambiental cujas consequências afectam directamente os homens, tornando-os, no limite, perpetuamente outros que nós, inocentes e incapacitados para viver. Ao contrário do primeiro filme que, conscientemente ou não, tinha uma estrutura de raiz quase operática, dividida em dois actos, sendo o último a consagração de todas as tristes vozes que viamos ao longo do fime silenciadas, mas que aí surgiam com uma voz e um poder conquistado e militante, este Shiranui Sea não se permite ter tal estrutura explosiva de acção-reacção. É, antes do mais, um relato ziguezagueado, mas cuja intensidade não se prescinde, ou não fosse a história de Minamata e do mar Shiranui trágica como sabemos ser. Nesse sentido, Tsuchimoto abstrai-se quase totalmente da existência e indagação de responsabilidades por parte da Chisso - a fábrica que durante anos deitou ao mar mercúrio e infectou fatalmente os habitantes das redondezas, habituados a alimentar-se de peixe e molúsculos - e vira-se quase exclusivamente para os vários tipos de pacientes com Minamata Disease, desde os congénitos (presença sempre dificil mas tocante) aos outros. Nessa busca de uma intimidade que denuncia nas entrelinhas tal flagelo, certos momentos são bastante complicados de ver: eis que encerramos o capítulo da culpa e filmamos o mundo, de esperanças reduzidas, em torno dos doentes (relembre-se a conversa entre a menina infectada e o psiquiatra). Intercalado com isto estão cenas incríveis dos pescadores em acção, muitos deles continuando a explorar e a viver do mar possivelmente tóxico de Shiranui. Aliás, não deixa de ser curioso como a imponência dos planos e imagens desse mar não encerram já uma magnífica mas trágica contradição: a componente sagrada do mundo natural que esconde, no seu interior, a hubris humana.



The Yakuza Wives 2 (1987) de Toru Dobashi: *
Na tentativa de capitalizar, ainda mais, o sucesso comercial obtido com o primeiro Yakuza Wives (talvez o pior filme da carreira invejável de Hideo Gosha), a Toei lançava uma série de sequelas temáticas, pois nenhuma ligação estritamente narrativa existia com esse primeiro filme, e contratava os seus artesãos para prosseguir com os trabalhos. A popularidade do filme de Gosha no seu tempo devia-se ao facto de ter como protagonistas aquelas figuras que tradicionalmente nos filmes de yakuza permaneciam em segundo-plano, quase sempre como love-interest idealizado e mecânico, isto é, as mulheres dos mafiosos. Nesse filme, elas apareciam com uma preponderância saliente, metendo até os próprios maridos e amantes a um canto: eram elas até quem compreendiam devidamente o sentido de obrigação e honra, erradamento atribuido aos homens. Dobashi, então, repete a fórmula anterior a um tal ponto que nunca larga uma linguagem quase estranha e irreconhecível ao género que vem duma tradição que se dialoga: tudo aqui é telenovelesco, ultra-romantizado e toda a psicologia das esposas yakuza sofre da presunção, algo irritante, de que, apesar das máscaras de masculinidade, força e carácter, elas guardam um secreto sentimento de feminino que se manifesta quando se apaixonam pelos amantes canastrões.



Tada's Do-It-All-House (2011) de Tatsushi Omori: **
Várias vezes advertimos neste espaço fragmentário que um certo tipo de cinema independente japonês produzido nos últimos anos pode ser visto como uma vaga não alinhada de realizadores com ideias muito semelhantes e com moods cinematográficos nada diferentes. Se o cinema americano criou recentemente o vício indie do mumblecore, também os japoneses (embora não sendo, por regra, tão pretensiosos e pegajosos) criaram um género de filme que se caracteriza por uma horizontalidade emotiva, uma filmagem com poucos ou nenhuns artifícios, e uma quotidianização excesiva dos seus personagens, não porque estes representam o japonês normal (o homem assalariado, etc.) mas porque nunca nos evadimos da disposição do dia-a-dia, mesmo que esse dia-a-dia seja povoado por forasteiros sociais (como é o caso). Pois bem. Tatsushi Omori, aqui no seu terceiro filme, finalmente rendido à estética do seu tempo, foi, porém, sagaz o suficiente para criar dois protagonistas muito simpáticos (a responsabilidade também se deve a Eita e Ryuhei Matsuda), com psicologias diferentes, mas que se ligam de uma maneira estranha e divertida, à revelia dos percalços da vida. Verdade seja dita, este também é um modelo de filme que foi repetido ad nauseam, mas apesar disso, Omori executa-o de uma maneira tão calorosa e, a passos, hilariante, que não deixamos de lhe felicitar por essa escolha (contrária à seriedade dos personagens insondáveis de tanta produção indie). Chame-se guilty pleasure ou não, embora nada do que vi fosse relevante, revelador ou digno de epifania, não me arrependo de ter visto.



Henge (2012) de Hajime Ohata: 0
Criou-se um culto à volta de Henge que não parece ser justificado. Este filme de Hajime Ohata que, em tudo parece querer ser o Tetsuo da geração digital tem várias contrariedades que o distanciam até dessa obra marcante de Shinya Tsukamoto. A começar pela concepção da história, que mistura ataques de ansiedade, várias metamorfoses, em suma, a componente do fantástico, com uma irritante persistência da realidade, a saber, as consultas de psiquiatria, as sessões de exorcismo e até uma visita dos agentes da polícia. Parecendo que não, o que deveria criar suspense (o confronto do monstro com os humanos) apenas se torna num espectáculo cansativo e robótico, cujo desfecho prevemos com uma facilidade atroz. Por outro lado, o amor dos dois protagonistas (a aceitação da monstruosidade por parte da mulher) é feito sem grande razão, criando algumas cenas embaraçosas, pouco sentimentais e muito confusas. Um último aspecto: os efeitos especiais de Tetsuo, feitos há mais de 23 anos são incomensuravelmente mais certeiros e realmente aterrorizadores, por criarem experiências de abalo e atrofia sensorial. Em Henge, por contraste, temos uma máscara de carnaval - agigantada, de forma ridicula, na cena derradeira  - e esguichos de sangue CGI, penosos para o olhar e para os sentidos. De evitar, com toda a certeza.



Chronicle of my Mother (2012) de Masato Harada: *
Estava a começar bem o novo filme de Harada. Uma visita de um escritor, mais ou menos arrogante, a casa dos pais onde se evidenciava um certo peso e desconforto, aquele tipo de sensação ligada ao envelhecimento mútuo de filhos e pais (a autoridade esbatida aproxima-os de maneira triste). Outra cena, logo a seguir, servia de contraponto e o mesmo personagem, que era filho na primeira cena, torna-se pai numa acesa demonstração de autoridade com a sua filha. Isto demonstrava uma curiosa troca de lugares, enriquecedora dos personagens e da narrativa. Digamos que não esperava o que viria a seguir: a mãe do escritor fica viúva e, cena atrás de cena, lidamos com a sua demência gradual, de uma maneira tão absorvente que tudo o que vinha sendo construído perde justificação face a um modelo reconciliador (e positivo) da morte e da velhice que é infelizmente bastante mais descritivo do que reflexivo. Para além do mais, como comparar este registo de narração facilitista e algo tear-jerker sobre os últimos anos com obras tão estimulantes como Will to Live de Kaneto Shindo ou Human Promise de Kiju Yoshida?



The Kirishima Thing (2012) de Daihachi Yoshida: ****
Já tinha dito aqui algures (se não disse, digo agora) que Daihachi Yoshida era um dos talentos definitivos da sua geração. De facto, este Kirishima Thing não só é um dos melhores filmes do ano passado, como também é a obra-prima do realizador que aqui se consagra e encerra um verdadeiro círculo. Trata-se de um filme que nada deixa de parte, sendo um roteiro completo às várias inquietações e modalidades de comportamento dos estudantes nos anos finais do secundário. Aqui, está claro, acrescentando uma vertente muito importante no modelo de ensino japonês, a existência dos clubes, uma espécie de disciplina extra-curricular onde os alunos se aplicam e competem, demonstrando uma dedicação, por vezes, doentia. Com uma primeira parte verdadeiramente engenhosa (que me fez lembrar os argumentos-puzzle de Kenji Uchida, nomeadamente A Stranger of Mine) - e sem nunca abrandar ou perder essa inventividade contangiante - Yoshida oferece-nos várias personagens, todas desenvolvidas devidamente, cada uma no seu núcleo de influência, interesse e amizade, representando, afinal, (sem nunca se reduzir nesse movimento) caras e personalidades que qualquer um de nós viu ou conheceu nos seus anos de mocidade. De todas as fantásticas construções psicológicas (trata-se mesmo de um festim de personagens complexas!), relembre-se a de Hiroki, o gentil mas desmotivado rapaz que se evade de si próprio, e o aspirante a realizador de cinema que vive apaixonadamente o seu sonho, na sombra daqueles que o vão tácita ou declaradamente oprimindo. A ponte entre os dois é feita de forma magistral numa das últimas cenas em que o foco (literal!) permanece em Hiroki e este não tem outra saída senão confrontar-se consigo próprio, mesmo que seja de costas para a câmara, agora, a de Yoshida. Esta chamada para a realidade também aparece com toda a força na presença invisível e fantasmagórica de Kirishima, uma espécie de homem que toda a gente procura mas que, finalmente, negou aquilo que o fazia tão requesitado e tão importante aos olhos dos outros. Este último dispositivo - digno de uma peça de teatro absurdo - é essencial para lançar os pressupostos críticos deste filme muito bem estruturado e inteligente, filme que todo o jovem (mas não só) devia urgentemente ver. E eu que pensava que já nada mais se podia filmar sobre a juventude japonesa!



Dreams For Sale (2012) de Miwa Nishikawa: ***
O interesse em filmar o processo de desvelamento das mentiras e ilusões é em Miwa Nishikawa uma constante obsessiva. Em Sway, - relembre-se - era posto em causa o carácter concreto de um testemunho oral, principalmente aquilo que pertencia à memória de quem o reconstruia. No seu Dear Doctor, um médico rural sem licença era chamado a resignar do seu posto, depois de uma quantidade de anos a servir uma população carenciada que sem ele não receberia tais tratamentos. Ora, como o título indica, Dreams For Sale é um filme que lida com um casal que exerce um comércio fraudulento de algo que se apresenta como um sonho tornado realidade, ou melhor, um indício supremo de comunicação. Claro que falamos de uma "amostra" de amor, feito pelo homem a outras mulheres (em troca de empréstimos, dinheiro) e patrocinado pela sua noiva, que começa por encarar esse jogo de burlões, como uma secreta vingança a uma primeira infidelidade. Digamos que Nishikawa inverte o que encontrávamos em Dear Doctor: se aí o sentimento de fraude era justificado, mas não deixava de ser injusto para com o bom médico, aqui tudo o que pode minar a afectividade do casal é uma consequência derivada de um acto de puro e intencional engano, executado tão friamente que jamais poderia ser levado até ao fim sem magoar seriamente os seus participantes que julgam sempre sair ilesos. Assim, numa das últimas cenas, torna-se patente a máxima da circularidade da mentira (i.e, uma mentira puxa outra para se conservar), e é curioso notar que o carácter imprevisível e contingente do real despoleta numa mesma situação um confronto tão multiforme de várias mentiras, encavalitadas umas nas outras, que a pretensa realidade que essa mesma situação quer fazer passar é, em si própria, um mal-entendido, agora quase impossível de ser deslindado. Finalmente, temos uma cineasta que filma várias mulheres enganadas com uma sensibilidade muito apurada, principalmente aquela mulher que tudo sabe, mas tudo perde: compare-se, por exemplo, estas mulheres de carne e osso às do novo filme histérico de Mika Ninagawa e perceber-se-á a diferença.

15/03/13

Fragmentos de 2013/03/15



Demon Crusader (1957) de Kenji Misumi: **
"Right now, there are only films describing the daily reality, and not enough films showing dream and pleasure, that’s why I wanted to make a film going beyond daily life, which defines cinema as entertainment." Isto foi dito por Misumi aquando da saída de Lone Wolf and Cub, a saga que imprimiu o seu nome na história do cinema japonês. Na verdade, Kenji Misumi nunca foi um revolucionário, mesmo quando a sua carreira se sitou numa era em que os chanbara estavam a ser reformados pela geração dos anti-feudalistas (Kobayashi, Kato, Imai, Kudo, et al). É neste contexto que surge, ou fica demarcado, o termo artesão, ou seja, realizadores empregues pelo estúdio que estavam preocupados em entreter e filmar os sonhos e o prazer do passado, em vez da realidade e da violência primitiva e bábara dessas mesmas épocas. Em Demon Crusader, Misumi não sai de uma linearidade geral (possivelmente patrocinada pela Daiei), embora, por certos momentos, desenvolva imagens muito poderosas - rascunhos-planos que remetem para uma das suas obras-primas, Destiny's Son. De notar, tirando do plano imagético, o talento de Raizo Ichikawa: este actor que carrega a narrativa episódica com duas prestações em tudo diferentes.
 


White Whore (1974) de Masaru Konuma: **
Os filmes eróticos de Masaru Konuma costumam ser experiências ambivalentes: contêm, a dois tempos, momentos abstractos que escapam à rudeza narrativa habitualmente usada no género e imagens algo grotescas de violência sexual, tão radical e politicamente incorrecta que apenas pode pertencer ao mundo do imaginário e da projecção. Este casamento arriscado muitas vezes é conflituoso e desiquilibra os sentidos do espectador. No entanto, se Konuma desse mais espaço a essa sua capacidade de transfigurar bizarramente em sonhos e devaneios as imagens dos seus filmes, então teríamos, certamente, obras primas e um realizador consensualmente visionário.



Hard Scandal - Sex Drifter (1980) de Noboru Tanaka: *
Por esta não esperávamos: Tanaka, o realizador que dentro da Roman Porno da Nikkatsu, mais atenção dava às narrativas e aos sentimentos e sentidos interiores dos seus personagens encontra-se aqui simplificado in extremis, descrevendo buçalmente (mas com pretensões de compreender) a juventude à deriva dos anos 80, tendo ainda o descaramento de demonstrar cenas ridículas de desintegração familiar em actos pouco credíveis e que apenas se juntam à má componente de exploitation barata que percorre todo o filme, algo estranhamente invulgar na obra do realizador já que, habitualmente nos seus filmes, o sexual é, acima de tudo, razão psicológica.



Path of the Beast (1980) de Tatsumi Kumashiro: ****
Ao contrário do infeliz e exíguo erotismo do filme de Tanaka, este assalto aos sentidos de Kumashiro é revelador da sua apetência para criar visões conflituosas, dormentes mas avassaladoras das relações humanas. Com um ligeiro toque iconoclasta (os seus longos planos-sequência refreiam o voyerismo do espectador), as várias coreografias da perdição amorosa estão aqui filmadas de maneira singular, dando aos seus personagens uma ambiência obscura e imprevisível, mas permanentemente à flor da pele, como um rio que esconde correntes violentas. Na esteira de Lovers are Wet - outro dos seus imperdiveís exercícios - também o papel da música é fulcral para maximizar o sentimento queixoso e melancólico deste tempestuoso blues sem identidade clara e referência distinta, triste apenas por existir (e por se cantar). Desde o sentimento abstracto de tempo à narrativa estilhaçada e recortada, tudo parece estar diluido num olhar embriagado e enevoado, mas tal é o olhar sem concessões de Kumashiro.



Pink Cut: Love me Hard, Love me Deep (1983) de Yoshimitsu Morita: 0
Uma introdução histórica para um filme fraco: os últimos anos de produção erótica na Nikkatsu viram chegar tanto a dissidência dos seus consagrados artesãos como o surgimento de uma nova vaga de jovens criadores que vinha aligeirando os comportamentos desviantes e anti-sociais dos seus mestres. Não é por acaso que junto desta geração profundamente marcada por alguns fetishes dos anos 80 (efeminização excessiva das mulheres, o aparecimento das lolitas na cultura popular, etc.) o género predilecto era  a comédia ligeira com contornos românticos de descoberta. Yoshimitsu Morita, então, na continuação das obras roman-porno de Kichitaro Negishi, Yoichi Higashi, Toshiharu Ikeda, mas principalmente Yojiro Takita - sim, o mesmo que ganhou o Óscar por Departures - dá-nos um exercício datado, técnicamente polido mas demasiado alegre e leviano, com um personagem principal demasiado irritante para ser tolerável. As dificuldades de Pink Cut são, portanto, estas: sexualidade feliz forrada a branco e rosa, sem grandes esquemas e justificações, fetichista até ao fim, sem que isso traduze rigorosamente nada de inventivo ou cinemáticamente relevante.



Blue Rain Osaka (1983) de Masaru Konuma: 0 
Uma produção roman-porno próxima do seu crepúsculo, exageradamente lírica e com uma pretensão lúcida de melodramatismo, claramente para assegurar a presença do público mais mainstream, fora dos vícios da estética erótica. Konuma tenta, pois, filmar, inspirado provavelmente pelos sons das nostálgicas melodias enka, de maneira directa, quase popular, sem rodeios e transfigurações imagéticas, pegando num amor mais ou menos problemático para narrar as fraquezas e forças do espírito feminino. Diga-se que nada disto resulta muito bem e ficamos com saudade do provocante, alucinógeno e arruaceiro Konuma que aqui se substitui por um básico e genérico contador de histórias.



When I Kill Myself (2011) de Ryo Nakajima: 0
This World of Ours, a estreia do misterioso e forasteiro Ryo Nakajima, tinha sido uma surpresa na altura da sua saída. Mesmo abstraindo das suas óbvias limitações técnicas e monetárias esse era um filme que emanava uma estranha energia caótica que se destilava numa amargura revolucionária, demasiado radical para ser comum aos interesses das grandes produtoras. Os seus personagens tinham algo de Koji Wakamatsu revisitado, ou seja, a sua dimensão de luta e desencanto social era incontestável, mesmo que apenas fosse o protesto representado na tela, e não as suas soluções. Mas, o que se passou com Nakajima durantes estes últimos tempos? Ao que parece, fez uma comédia ligeira, Rise Up, que não vimos e ainda mais recentemente deu-nos esta bizarra proposta, When I Kill Myself, que prometia ser um regresso à forma queixosa, mas altamente provocante do seu primeiro filme. Engano total. Abordando o tópico do suícidio juvenil com uma distopia de trazer por casa, Nakajima encontra imensas dificuldades em passar a sua mensagem (se é que existe), a começar pelo facto de não esclarecer devidamente as permissas que quer desenvolver, isto é, os seus personagens carecem de complexidade dramática e as peripécias que os fazem avançar (para a morte) tem uma dimensão artifíciosa completamente mecânica, sendo apenas restos de ideias bocejantes, principalmente quando o assunto se propõe ser tão sério. Esta é exactamente o mesmo tipo de incompetência cinematográfica que assaltou Sogo Ishii no seu último filme. Sem recorte dramático, sem momentos de intensidade inteligente e sem uma caracterização significativa, um filme não nos comove, nem nos faz investir.



Like Someone in Love (2012) de Abbas Kiarostami: ***
Há uma cena em especial no novo filme de Kiarostami, rodado inteiramente no Japão, que nos diz muito sobre o tipo de cinema que aqui o realizador iraniano vai laborando: um cinema do escondimento. Um professor de sociologia reformado e uma "acompanhante" falam acerca de um quadro que está perante eles. Discutem brevemente o seu significado: de como está, para a última, ligado a uma história de infância, de como é, para o primeiro, representativo de uma determinada estética, etc. O quadro está perante eles, mas não perante nós. Isso deve-se principalmente à maneira como Kiarostami o esconde usando o campo contra campo, não como dispositivo directo de emocionalidade, mas como arquitectura de superfícies enganadoras, isto é, ilusão de abertura e amplitude, dividida em dois ângulos (veja-se logo a primeira cena do bar, entre outras), para se subtrair aí o essencial, aquilo que o espectador mais quer ver (por estar a ser referido pelos personagens). De facto, a comparação da estrutura formal do filme com esta cena é essencial. Por um lado, antes da conversa que suscita no espectador o desejo de ver, nem que inconscientemente, o objecto de que se disserta, já o quadro tinha sido mostrado no background, como uma das muitas coisas que preenchem o quarto do velho professor. Ou seja, o desejo de perceber e sondar está lá, mas ele não é inteiramente renegado, antes dissimulado, por isso a pressão do foco altera-se. Por outro lado, depois da dissertação, o quadro é-nos mostrado brevemente com a câmara a deslizar, agora com um significado diferente, depois de termos sido colocados numa conversa em que se falava de um referente saturado mas não presentificado, uma imagem em que não nos podiamos apoiar. Neste sentido, à semelhança dessa pequeníssima cena do quadro, tudo o que é mostrado neste simples Like Someone in Love, como que gera no espectador o mesmo nível de questionamento emotivo (que não é nada abstracto, pois está sempre a ser desencadeado pelos próprios personagens e pela narrativa). A frase não é minha - nem sequer a citação - mas faz todo o sentido usá-la neste contexto: "cinema is a matter of what’s in the frame, and what’s out."



The Land of Hope (2012) de Sion Sono: **
Não deixa de ser irónico como um evento real, infelizmente trágico e alarmante, conseguiu melhorar a concepção dramática das sinuosas e histriónicas ficções de Sono, ficções essas que vinham ultimamente sendo praticadas em piloto automático, com súbitas mudanças de ritmo e cadência psicológica num mundo impregnado de personagens psicopatas, cruéis e instáveis. Pois bem, aqui encena-se um desastre radioactivo em tudo semelhante ao de Fukushima, mas acontecendo logo depois deste. Se bem que algumas referências (sobretudo espaciais) tinham sido já feitas no seu filme passado, Himizu, a verdade é que neste Land of Hope o foco está totalmente virado para as coreografias de abandono da terra em virtude de uma pseudo-segurança, lá onde não existe radioactividade. Nesse sentido, por se aproveitar de uma situação exterior, imposta, com um grau de realidade próxima de nós e em tudo estranha e neurótica (qual o conhecimento que nos assegura não estarmos infectados?), a radicalidade nas acções e a depressão emocional dos seus típicos personagens é-nos muito mais perceptível e nela nos fiamos. Também o chefe de família (bom papel de Isao Natsuyagi), acompanhado pela sua mulher senil, tem um desafio pela frente: sair implica morrer, o êxodo significa não voltar mais. É sobretudo por causa dessas cenas finais (um fechar do círculo perfeito para um resto, às vezes, redundante, televisivo, e facilitista em termos de imagem) que se pode dizer que Sono, passando a mesma mensagem de duas formas distintamente diferentes, a de que o amor torna possível a redenção, torna significativo o que quer transmitir, principalmente para os seus contemporâneos japoneses, que, de alguma forma, necessitam de ver o seu esforço recompensado em celulóide. Mesmo o compositor que tinha chacinado em Guilty of Romance, Mahler, aparece aqui com o seu peso devido e real, próximo de uma tragédia convincente e não um exercício de sadismo auto-indulgente pelo acto de criar e pelos seus personagens. Falta, porém, algum sintetismo.

06/03/13

Fragmentos de 2013/03/06



Dice and Swords (1968) de Akinori Matsuo: **
Mais um ninkyo tardio da Nikkatsu - estúdio que, por esta altura, competia com a ascenção da Toei e dos seus filmes de galhardia interpretados principalmente por Ken Takakura e Koji Tsuruta - escolhendo, assim, a sua estrela Yujiro Ishihara como protagonista. Nesta instalação, três yakuzas prestes a infringir os códigos estipulados por chefes maldosos, encenam a típica rebelião contra o sistema como que encarnando o ideal romântico da amizade entre herois. Como sabemos, tudo o que nos é contado é reconhecível de antemão e só a forma como se conta pode fazer a diferença. É curioso como na cena final, o personagem principal resume o destino de todos os destemidos yakuzas dos filmes de cavalaria repletos de mártires e de individualismo romântico: "Este é o desafio de um yakuza: se ganha vai para a prisão, se perde vai para o inferno".



Savage Wolf Pack (1969) de Yasuharu Hasebe: ***
Com um pé ainda na despedida dos velhos cânones do cinema gangster (por exemplo, The Massacre Gun) e outro na descoberta de outros paradigmas e heróis, Hasebe neste Savage Wolf Pack preanuncia, com um espírito simples e directo, o espírito juvenil, violento e até sexual dos filmes de acção posteriormente adoptados pela Nikkatsu no princípio da década de 70 e até algumas produções pre-maturas da Roman Porno. As semelhanças aqui são muitas, não só com a série motoqueira, realizada metade-metade por Hasebe e Fujita e protagonizada pela diva Meiko Kaji, Stray Cat Rock (a saber: juventude fazendo justiça pelas próprias mãos num cenário desorientado e vazio de valores e conquistas espirituais) mas também com o recentemente visto, Sex Hunter: Wet Target, nomeadamente o ambiente tenso de vingança contra uma violação que perpassa toda a película.



The Beauty of Beauty (1973-1977) de Kiju Yoshida: *****
Neste espaço não costuma haver o hábito de mencionar séries de televisão por ser difícil avaliar de forma sintética e fragmentária o seu sentido comum. Por outro lado, raramente a linguagem televisiva foi sinónimo de experiências com o mesmo nível de intensidade do cinema. Mas, as palavras faltam-me quando me obrigo a falar desta aventura filosófica e sensitiva, rodada para televisão (mas que faz da limitação técnica uma lição quase ascética e espiritual) do analítico, mas apaixonado Yoshida. Esta série vastíssima (mais de 90 episódios ao todo, sendo que no DVD felizmente lançado pelos franceses perfilam 20) foi o resultado de um exílio do cinema feito por Yoshida e que durou cerca de 13 anos. Logo depois de terminar a sua trilogia política com chave de ouro com Coup D'État, esse filme abismal, a série Beauté de la Beauté parecia ser a maneira ideal do realizador descansar do seu esgotamento físico e psicológico, provocado em grande parte pela exigência técnica do seu cinema, substituindo essa sua arte pelo mundo onírico da pintura. Como diz - e bem - Mathieu Capel, esta série de pequenos documentários para televisão está marcada por uma repetição radical de estrutura, um tom monocórdico figurado em longas narrações e pensamentos do próprio Yoshida, presença fantasmagórica que deixa os quadros "olharem de volta para ele e para nós" de forma flutuante. De entre muitas revelações e epifanias que levo daqui, uma delas diz respeito à descoberta que a câmara consegue ser uma condutora do olho perfeita, já que de todas as vezes nos sentimos em unidade mística com as telas, criando um sentimento arrebatador de embriaguez, ora perdidos nos grandes-planos de mundos dentro do mundo, ora mergulhando nos close-ups de alguns pormenores dos quadros que induzem a uma claustrofobia fascinante de onde não se quer sair. E um dos mais decisivos factores para tudo isto se tornar ainda mais mágico é a trilha sonora de Toshi Ichiyanagi (que, com isto, se tornou num dos meus compositores favoritos) com cada música sua quase sempre diferente para cada quadro e pintor. É uma espécie de cruzamento entre sons extáticos e melodias oníricas (outras parecendo sair de um pesadelo doce), sublinhando ainda mais esta componente de "outro mundo" de toda a experiência. Aqui ficam algumas notas breves para cada um dos oito pintores representados:
Bosch, O pintor do Fantástico: Este conjunto de três episódios marcam a ferros o que virá a seguir. Não é por acaso que só entendemos o pintor do fantástico quando nos rendemos, de alma aberta, ao seu mundo virado do avesso, onde inevitavelmente, nos perdemos. Os seus trípticos, muito mais do que representar o lado negro do maniqueísmo (paraíso à esquerda, mundo terreno no centro e inferno à direita) são aberturas em ferida do inconsciente dos medos profundos do não controlo. As conclusões de Yoshida - apelidando Bosch de herege, na esteira de Wilhelm Fraenger - provêm desta contradição entre representação religiosa e algo que a transcende por excesso, desafiando o olho a ver-se nos seus pesadelos mais febris. A música de Ichiyanagi atinge o limite do pavor, sendo o complemento ideal para os infernos de Bosch, mas também os seus sonhos de reinos milenares figurados no misterioso e impressionante Jardim das Delícias Terrenas.
Bruegel: Quando o pintor é testemunha da ruína do seu país: Dois episódios que querem fazer reiterar a interpretação do narrador que Bruegel, no prolongamento do seu conterrâneo Bosch, mas contrariando-o nos seus devaneios espirituais, foi o primeiro intelectual digno desse nome, criticando de maneira brusca as convulsões do seu tempo e da sua Flandres (veja-se o anacronismo delirante da Procissão do Calvário), mas olhando com uma certa melancolia o surgimento do homem, saído da Idade Média, como massa (Jogos de Crianças, com os seus meninos no recreio é uma transposição do indivíduo perdendo-se no grupo). Escusado será dizer que a epifania provocada no Solaris de Tarkovsky com o silencioso, mas tenso, Caçadores na Neve aqui repetiu-se. "Podemos talvez dizer que as silhuetas dos caçadores vistos de costas, que podem parecer sinistras em relação à bela paisagem com neve, contêm um momento de tensão onde seria suficiente causar a desordem total entre eles apenas com uma bala ."
Os Crimes do Pintor Caravaggio: Leitura em dois episódios apoiada em conjecturas biográficas do percurso muito particular de Caravaggio e o seu significado muito preciso do barroco da Contra-Reforma, uma interpretação onde o realismo e o dramatismo se confundem, criando imagens míticas e religiosas sombrias e violentas a dois tempos. Yoshida e Ichiyanagi vão traçando a psicologia atormentada do pintor que se vai assombrando pelo espectro dos seus comportamentos bárbaros que desencadearam, finalmente, num homicídio e, consequentemente, no seu exílio de Roma. Não me esqueço tão facilmente da Madonna e criança com uma serpente e a sua ambiência contrastada entre harmonia dos gestos e dos movimentos com uma violência descontrolada e brutal, mas secretamente contida. 
Goya, O Mágico da Espanha: Sendo o último dos clássicos e o primeiro dos modernos, Goya, certamente não é fácil de categorizar. Aqui chegamos a um ponto onde a intensidade (e a paixão) de Yoshida pelas suas escolhas culmina numa análise complexa do pintor madrileno, passando pelas suas obras de corte, sorumbáticas telas de aristocratas vindos de "castelos de cartas" em decadência, o seu erotismo mundano d'A Maja Nua, dar ao corpo feminino aquilo que é do corpo feminino, e a sua fase enigmática das pinturas negras, esta última apresentada num episódio final organizado em espiral claustrofóbica, com pesadelos seguidos de pesadelos e desembocando numa tela surpreendente que, segundo Yoshida resume a obra de Goya, O Enterro da Sardinha: "É uma festa religiosa, alegre em aparência, mas onde perpassa qualquer coisa de sinistro. Talvez para os espanhóis a essência do Carnaval contêm esse sentimento mesmo. Depois do Carnaval, chega um período de abstinência que, uma vez acabado, abre lugar para o desejo que se instala em cada um, em função da abstinência que se praticou. O desejo, sendo inevitável no homem, torna necessária a abstinência. Quanto mais austera for a abstinência, mais o desejo se refinará. Podemos dizer que, sem jamais meter em causa esse paradoxo, evoluindo-o num circulo infinito de desejo e controlo de prazer, Goya pôde tornar-se Goya."
Delacroix ou o Paradoxo do Romantismo: Em dois episódios, Yoshida propõe-se aqui estabelecer as ligações complexas entre o classicismo e o romantismo, esclarecendo ambos os conceitos com análises próprias a telas, auxiliando-se de Baudelaire (e do seu conceito complexo de dandysme) para ilustrar os intentos do pintor Delacroix. De entre algumas telas, destaca-se A Morte de Sardanápalo como a que expressa melhor a imensa "beleza irracional e ébria" da estética do pintor que suscita no seu espectador, não um sentido descritivo, um ver aquilo que se vê, mas uma convocação para o imaginário surgir. Baudelaire, citado por Yoshida, dizia sobre Delacroix: " O céu pertence-lhe como o inferno,  como a guerra, como o Olimpo, como a volúpia. Ele é mesmo um dos raros escolhidos, e a extensão do seu espírito compreende a religião em todo o seu domínio. Tudo aquilo que há de dor na paixão, o apaixona; tudo aquilo que há de esplendor na Igreja, o ilumina."
O Escândalo sagrado: O pintor Manet: Tentando traçar com toda a precisão o espírito burguês da Paris do século XIX, Yoshida ressuscita os escândalos radicais do Almoço na Relva (o seu nu inquietante que reenvia algum grau de inquietação com os homens vestidos e um clima descontraído, mas transgressor e ímpio) e Olympia (como os traços marcados e as cores contrastantes, mas vagas nos fornecem uma imagem de erotismo tão próxima que é escandalosa) para apelidar Manet de dandy, relembrando a definição do seu contemporâneo Baudelaire ("le dandysme est un soleil couchant"). Sem dúvida, o culminar destes dois episódios é a análise profunda do quadro Um Bar em Folies-Bergère e o seu espelho bizarro que não duplica necessariamente o bar, mas deixa-nos aceder a um mundo de sombras apagadas e espectros bizarros, aquilo que Yoshida apelidará "uma emancipação obscena da cor" e uma vagueza nas formas. Aqui a música de Ichiyanagi transporta-nos para o maravilhoso prazer da despersonalização. 
Cézanne, o Olhar de um Solitário: Aqui temos, em dois episódios mais teóricos, o testemunho da obra de Cézanne que nos é descrita como o produto de um solitário que, a cada traço, retirava aos sujeitos pintados a gravidade dos seus sentimentos, agora vistos e tomados em consideração como qualquer objecto ou natureza-morta (veja-se a Mulher com Cafeteira, por exemplo). Para Cézanne, a pintura é um caso único e exclusivo de "forma e cor", nada mais, nada menos. Yoshida, para além de nos mostrar as telas acompanhadas pelos locais reais que o pintor usara, descreve-nos o perfil analítico, mas misantropo deste homem que conduziu a pintura a uma expressão lógica e pura, abrindo o caminho para uma concepção onde as imagens pintadas não seriam mais cópias de uma realidade natural, exterior a elas, mas uma criação inteiramente nova: uma outra realidade autónoma, já um prenúncio do cubismo, etc. O confronto com as pinturas, a precisão, por exemplo, de Os Jogadores de Cartas representa uma profunda revelação. O pintor solitário que anula o olhar do outro em contraponto a uma visão neutra e saturada.
Van Gogh: Yoshida, no decorrer destes quatro episódios, chega ao limite da admiração e reverência, defendendo que as circunstâncias da morte de Van Gogh eternizaram mais a sua vida melancólica do que mesmo a sua arte. Todos os episódios envolvem uma tremenda aura de luto, quer ela esteja presente na nossa projecção da vida pobre, mendigante e solitária do pintor, quer esteja figurada nas suas telas, ou nas reconstituições biográficas de Yoshida (a amizade, o paralelo e as dissidências com Gauguin resultam muito interessantes). A câmara nesta incursão entristecida está mais liberta, muitas vezes tentando replicar o olhar lucidamente enfermo de Van Gogh. Alguns quadros (ex: Terraço do Café à Noite) musicados pelo aqui ora subtil, ora malévolo Ichiyanagi são completos mergulhos num mundo plenamente transfigurado.



Round About Midnight (1999) de Makoto Wada: **
Com um excelente início (que coloca o resto do filme facilmente nas sombras) este filme de Makoto Wada podia ter sido muito mais se a abordagem fosse diferente. Falamos de abordagem narrativa, claro, já que não há quase nenhum segundo que não seja agradável de ver e ouvir; planos e imagens cuidados, cores vivas realçadas por um ambiente nocturno realmente envolvente e uma banda-sonora inspirada por Miles Davis (a sonoridade do trompete do protagonista é semelhante à primeira fase Columbia do mítico intérprete). Valha-nos isso para desculpar uma narrativa robótica e repetitiva, embora Hiroyuki Sanada e outros membros do cast façam um trabalho bastante decente com o que têm. Um filme estéticamente poderoso cuja falta de inventividade temática condena à razoabilidade.