06/03/13

Fragmentos de 2013/03/06



Dice and Swords (1968) de Akinori Matsuo: **
Mais um ninkyo tardio da Nikkatsu - estúdio que, por esta altura, competia com a ascenção da Toei e dos seus filmes de galhardia interpretados principalmente por Ken Takakura e Koji Tsuruta - escolhendo, assim, a sua estrela Yujiro Ishihara como protagonista. Nesta instalação, três yakuzas prestes a infringir os códigos estipulados por chefes maldosos, encenam a típica rebelião contra o sistema como que encarnando o ideal romântico da amizade entre herois. Como sabemos, tudo o que nos é contado é reconhecível de antemão e só a forma como se conta pode fazer a diferença. É curioso como na cena final, o personagem principal resume o destino de todos os destemidos yakuzas dos filmes de cavalaria repletos de mártires e de individualismo romântico: "Este é o desafio de um yakuza: se ganha vai para a prisão, se perde vai para o inferno".



Savage Wolf Pack (1969) de Yasuharu Hasebe: ***
Com um pé ainda na despedida dos velhos cânones do cinema gangster (por exemplo, The Massacre Gun) e outro na descoberta de outros paradigmas e heróis, Hasebe neste Savage Wolf Pack preanuncia, com um espírito simples e directo, o espírito juvenil, violento e até sexual dos filmes de acção posteriormente adoptados pela Nikkatsu no princípio da década de 70 e até algumas produções pre-maturas da Roman Porno. As semelhanças aqui são muitas, não só com a série motoqueira, realizada metade-metade por Hasebe e Fujita e protagonizada pela diva Meiko Kaji, Stray Cat Rock (a saber: juventude fazendo justiça pelas próprias mãos num cenário desorientado e vazio de valores e conquistas espirituais) mas também com o recentemente visto, Sex Hunter: Wet Target, nomeadamente o ambiente tenso de vingança contra uma violação que perpassa toda a película.



The Beauty of Beauty (1973-1977) de Kiju Yoshida: *****
Neste espaço não costuma haver o hábito de mencionar séries de televisão por ser difícil avaliar de forma sintética e fragmentária o seu sentido comum. Por outro lado, raramente a linguagem televisiva foi sinónimo de experiências com o mesmo nível de intensidade do cinema. Mas, as palavras faltam-me quando me obrigo a falar desta aventura filosófica e sensitiva, rodada para televisão (mas que faz da limitação técnica uma lição quase ascética e espiritual) do analítico, mas apaixonado Yoshida. Esta série vastíssima (mais de 90 episódios ao todo, sendo que no DVD felizmente lançado pelos franceses perfilam 20) foi o resultado de um exílio do cinema feito por Yoshida e que durou cerca de 13 anos. Logo depois de terminar a sua trilogia política com chave de ouro com Coup D'État, esse filme abismal, a série Beauté de la Beauté parecia ser a maneira ideal do realizador descansar do seu esgotamento físico e psicológico, provocado em grande parte pela exigência técnica do seu cinema, substituindo essa sua arte pelo mundo onírico da pintura. Como diz - e bem - Mathieu Capel, esta série de pequenos documentários para televisão está marcada por uma repetição radical de estrutura, um tom monocórdico figurado em longas narrações e pensamentos do próprio Yoshida, presença fantasmagórica que deixa os quadros "olharem de volta para ele e para nós" de forma flutuante. De entre muitas revelações e epifanias que levo daqui, uma delas diz respeito à descoberta que a câmara consegue ser uma condutora do olho perfeita, já que de todas as vezes nos sentimos em unidade mística com as telas, criando um sentimento arrebatador de embriaguez, ora perdidos nos grandes-planos de mundos dentro do mundo, ora mergulhando nos close-ups de alguns pormenores dos quadros que induzem a uma claustrofobia fascinante de onde não se quer sair. E um dos mais decisivos factores para tudo isto se tornar ainda mais mágico é a trilha sonora de Toshi Ichiyanagi (que, com isto, se tornou num dos meus compositores favoritos) com cada música sua quase sempre diferente para cada quadro e pintor. É uma espécie de cruzamento entre sons extáticos e melodias oníricas (outras parecendo sair de um pesadelo doce), sublinhando ainda mais esta componente de "outro mundo" de toda a experiência. Aqui ficam algumas notas breves para cada um dos oito pintores representados:
Bosch, O pintor do Fantástico: Este conjunto de três episódios marcam a ferros o que virá a seguir. Não é por acaso que só entendemos o pintor do fantástico quando nos rendemos, de alma aberta, ao seu mundo virado do avesso, onde inevitavelmente, nos perdemos. Os seus trípticos, muito mais do que representar o lado negro do maniqueísmo (paraíso à esquerda, mundo terreno no centro e inferno à direita) são aberturas em ferida do inconsciente dos medos profundos do não controlo. As conclusões de Yoshida - apelidando Bosch de herege, na esteira de Wilhelm Fraenger - provêm desta contradição entre representação religiosa e algo que a transcende por excesso, desafiando o olho a ver-se nos seus pesadelos mais febris. A música de Ichiyanagi atinge o limite do pavor, sendo o complemento ideal para os infernos de Bosch, mas também os seus sonhos de reinos milenares figurados no misterioso e impressionante Jardim das Delícias Terrenas.
Bruegel: Quando o pintor é testemunha da ruína do seu país: Dois episódios que querem fazer reiterar a interpretação do narrador que Bruegel, no prolongamento do seu conterrâneo Bosch, mas contrariando-o nos seus devaneios espirituais, foi o primeiro intelectual digno desse nome, criticando de maneira brusca as convulsões do seu tempo e da sua Flandres (veja-se o anacronismo delirante da Procissão do Calvário), mas olhando com uma certa melancolia o surgimento do homem, saído da Idade Média, como massa (Jogos de Crianças, com os seus meninos no recreio é uma transposição do indivíduo perdendo-se no grupo). Escusado será dizer que a epifania provocada no Solaris de Tarkovsky com o silencioso, mas tenso, Caçadores na Neve aqui repetiu-se. "Podemos talvez dizer que as silhuetas dos caçadores vistos de costas, que podem parecer sinistras em relação à bela paisagem com neve, contêm um momento de tensão onde seria suficiente causar a desordem total entre eles apenas com uma bala ."
Os Crimes do Pintor Caravaggio: Leitura em dois episódios apoiada em conjecturas biográficas do percurso muito particular de Caravaggio e o seu significado muito preciso do barroco da Contra-Reforma, uma interpretação onde o realismo e o dramatismo se confundem, criando imagens míticas e religiosas sombrias e violentas a dois tempos. Yoshida e Ichiyanagi vão traçando a psicologia atormentada do pintor que se vai assombrando pelo espectro dos seus comportamentos bárbaros que desencadearam, finalmente, num homicídio e, consequentemente, no seu exílio de Roma. Não me esqueço tão facilmente da Madonna e criança com uma serpente e a sua ambiência contrastada entre harmonia dos gestos e dos movimentos com uma violência descontrolada e brutal, mas secretamente contida. 
Goya, O Mágico da Espanha: Sendo o último dos clássicos e o primeiro dos modernos, Goya, certamente não é fácil de categorizar. Aqui chegamos a um ponto onde a intensidade (e a paixão) de Yoshida pelas suas escolhas culmina numa análise complexa do pintor madrileno, passando pelas suas obras de corte, sorumbáticas telas de aristocratas vindos de "castelos de cartas" em decadência, o seu erotismo mundano d'A Maja Nua, dar ao corpo feminino aquilo que é do corpo feminino, e a sua fase enigmática das pinturas negras, esta última apresentada num episódio final organizado em espiral claustrofóbica, com pesadelos seguidos de pesadelos e desembocando numa tela surpreendente que, segundo Yoshida resume a obra de Goya, O Enterro da Sardinha: "É uma festa religiosa, alegre em aparência, mas onde perpassa qualquer coisa de sinistro. Talvez para os espanhóis a essência do Carnaval contêm esse sentimento mesmo. Depois do Carnaval, chega um período de abstinência que, uma vez acabado, abre lugar para o desejo que se instala em cada um, em função da abstinência que se praticou. O desejo, sendo inevitável no homem, torna necessária a abstinência. Quanto mais austera for a abstinência, mais o desejo se refinará. Podemos dizer que, sem jamais meter em causa esse paradoxo, evoluindo-o num circulo infinito de desejo e controlo de prazer, Goya pôde tornar-se Goya."
Delacroix ou o Paradoxo do Romantismo: Em dois episódios, Yoshida propõe-se aqui estabelecer as ligações complexas entre o classicismo e o romantismo, esclarecendo ambos os conceitos com análises próprias a telas, auxiliando-se de Baudelaire (e do seu conceito complexo de dandysme) para ilustrar os intentos do pintor Delacroix. De entre algumas telas, destaca-se A Morte de Sardanápalo como a que expressa melhor a imensa "beleza irracional e ébria" da estética do pintor que suscita no seu espectador, não um sentido descritivo, um ver aquilo que se vê, mas uma convocação para o imaginário surgir. Baudelaire, citado por Yoshida, dizia sobre Delacroix: " O céu pertence-lhe como o inferno,  como a guerra, como o Olimpo, como a volúpia. Ele é mesmo um dos raros escolhidos, e a extensão do seu espírito compreende a religião em todo o seu domínio. Tudo aquilo que há de dor na paixão, o apaixona; tudo aquilo que há de esplendor na Igreja, o ilumina."
O Escândalo sagrado: O pintor Manet: Tentando traçar com toda a precisão o espírito burguês da Paris do século XIX, Yoshida ressuscita os escândalos radicais do Almoço na Relva (o seu nu inquietante que reenvia algum grau de inquietação com os homens vestidos e um clima descontraído, mas transgressor e ímpio) e Olympia (como os traços marcados e as cores contrastantes, mas vagas nos fornecem uma imagem de erotismo tão próxima que é escandalosa) para apelidar Manet de dandy, relembrando a definição do seu contemporâneo Baudelaire ("le dandysme est un soleil couchant"). Sem dúvida, o culminar destes dois episódios é a análise profunda do quadro Um Bar em Folies-Bergère e o seu espelho bizarro que não duplica necessariamente o bar, mas deixa-nos aceder a um mundo de sombras apagadas e espectros bizarros, aquilo que Yoshida apelidará "uma emancipação obscena da cor" e uma vagueza nas formas. Aqui a música de Ichiyanagi transporta-nos para o maravilhoso prazer da despersonalização. 
Cézanne, o Olhar de um Solitário: Aqui temos, em dois episódios mais teóricos, o testemunho da obra de Cézanne que nos é descrita como o produto de um solitário que, a cada traço, retirava aos sujeitos pintados a gravidade dos seus sentimentos, agora vistos e tomados em consideração como qualquer objecto ou natureza-morta (veja-se a Mulher com Cafeteira, por exemplo). Para Cézanne, a pintura é um caso único e exclusivo de "forma e cor", nada mais, nada menos. Yoshida, para além de nos mostrar as telas acompanhadas pelos locais reais que o pintor usara, descreve-nos o perfil analítico, mas misantropo deste homem que conduziu a pintura a uma expressão lógica e pura, abrindo o caminho para uma concepção onde as imagens pintadas não seriam mais cópias de uma realidade natural, exterior a elas, mas uma criação inteiramente nova: uma outra realidade autónoma, já um prenúncio do cubismo, etc. O confronto com as pinturas, a precisão, por exemplo, de Os Jogadores de Cartas representa uma profunda revelação. O pintor solitário que anula o olhar do outro em contraponto a uma visão neutra e saturada.
Van Gogh: Yoshida, no decorrer destes quatro episódios, chega ao limite da admiração e reverência, defendendo que as circunstâncias da morte de Van Gogh eternizaram mais a sua vida melancólica do que mesmo a sua arte. Todos os episódios envolvem uma tremenda aura de luto, quer ela esteja presente na nossa projecção da vida pobre, mendigante e solitária do pintor, quer esteja figurada nas suas telas, ou nas reconstituições biográficas de Yoshida (a amizade, o paralelo e as dissidências com Gauguin resultam muito interessantes). A câmara nesta incursão entristecida está mais liberta, muitas vezes tentando replicar o olhar lucidamente enfermo de Van Gogh. Alguns quadros (ex: Terraço do Café à Noite) musicados pelo aqui ora subtil, ora malévolo Ichiyanagi são completos mergulhos num mundo plenamente transfigurado.



Round About Midnight (1999) de Makoto Wada: **
Com um excelente início (que coloca o resto do filme facilmente nas sombras) este filme de Makoto Wada podia ter sido muito mais se a abordagem fosse diferente. Falamos de abordagem narrativa, claro, já que não há quase nenhum segundo que não seja agradável de ver e ouvir; planos e imagens cuidados, cores vivas realçadas por um ambiente nocturno realmente envolvente e uma banda-sonora inspirada por Miles Davis (a sonoridade do trompete do protagonista é semelhante à primeira fase Columbia do mítico intérprete). Valha-nos isso para desculpar uma narrativa robótica e repetitiva, embora Hiroyuki Sanada e outros membros do cast façam um trabalho bastante decente com o que têm. Um filme estéticamente poderoso cuja falta de inventividade temática condena à razoabilidade.

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