24/12/13

Fragmentos de 2013/12/24



Castle of Flames (1960) de Tai Kato: ***
Akira Kurosawa ficou conhecido por misturar exoticamente o classicismo shakespeariano na tradição do jidai-geki, ou seja, no filme de época japonês. Não foi, portanto, o único a fazê-lo. O (aqui ainda iniciante) Tai Kato pegou no mais famoso dos seus dramas, Hamlet, e efectuou uma curiosa adaptação passada nos tempos dos senhores feudais. Kato, ainda inseguro quanto à sua saturação estética, executa um drama sólido, competente e que não desonra o material original (apesar de algumas dissidências profanas). Para os puristas, pode até não ser recomendável, mas não deixamos de assistir a momentos dignos de um cineasta em maturação (veja-se a cena da confissão da mãe: toda filmada num sumptuoso plano-sequência), capaz de transpor universos diferentes numa mesma visão homogénea.



The Gambler's Code (1961) de Kazuo Ikehiro: ***
Desde pelo menos 1929 que a indústria cinematográfica japonesa adapta para o grande ecrã o celebérrimo conto de honra escrito por Shin Hasegawa. Kutsukake Tokijiro (título original da obra) é um jogador itinerante que, de início participa, mas depois assiste a uma rixa de yakuzas, na qual se perde uma vida. Decidido a proteger a viúva grávida e o filho do yakuza defunto, Tokijiro arranja problemas com uma quantidade enorme de mafiosos e renega à sua espada para angariar dinheiro, facilitando, assim, o parto da mulher que acompanha. Nesta versão para a Daiei, Raizo Ichikawa está irrepreensível e os personagens secundários (a bela Michiyo Aratama, Takashi Shimura e até mesmo uma aparição rara de Haruko Sugimura) são de luxo. Kazuo Ikehiro encena uma versão clássica na mais pura acepção da palavra, isto é, nada aqui vai contra a forma do filme de época nem da mais básica polarização: bons e maus. Podemos mesmo até dizer que este é um exemplo paradigmático de como se faz (sem exageros, dissidências ou transgressões), um filme de estúdio com alma.



The Lonely Yakuza (1966) de Tai Kato: *****
Olhar para estas duas versões de Kutsukake Tokijiro - a de Ikehiro e a de Kato -, sobretudo se sublinharmos as suas diferenças abissais, é um exercício intrigante. Em primeiro lugar, porque põe a descoberto a circunstância de aquilo que, em cinema, chamamos "clássico" ser sinónimo de idealização, ou seja, o termo espelha a realidade com acréscimos e insuflação moral, sendo que o conflito reside e é desencadeado sempre pelo exterior. Por contraste, esta representação do herói como modelo ou figura ideal sofre crassas mudanças com o método moderno que vira o olhar para o mundo interior e coloca os problemas todos de forma intrínseca e interna. O conflito narrativo como coisa causada apenas pelos outros é demasiado simples para Tai Kato, o grande reformista (mesmo que conservador) dos filmes de época protagonizados por viajantes, jogadores e, principalmente, yakuza. Ver The Gambler's Code lado a lado com The Lonely Yakuza seria, mais ou menos, equivalente a assistir ao The Searchers de Ford e, de seguida, comparar a um remake (imaginário) dirigido por Sergio Leone. Trata-se dos mesmos universos (inclusive os mesmos personagens e a mesma história) só que vistos através de ângulos antagónicos. Toda a obra de Kato é perpassada por um dramatismo sóbrio que raramente molda ou influência quer o sentido ético dos seus heróis, quer a expressividade da sua câmara. Sempre terra-a-terra, sempre categoricamente mundano, sem esconder a profundidade e os dilemas interiores dissimulando-os com puritanismos, esta adaptação definitiva de Kutsukake Tokijiro é corajosa o bastante para encarar a angustiada vida da errância, vida marcada pelo sentido de obrigação que muitas vezes colide com a humanidade.  Para Kato, a via dos yakuzas apenas traz perdas constantes e nenhuma alegria (nem mesmo a amorosa) é passível de ser satisfeita. Quando Tokijiro (não me canso de elogiar Kinnosuke Nakamura pelas suas sucessivas excelentes interpretações) diz no final: "ser yakuza é como ser um insecto", já não esperamos pelo típico herói que sorri e se despede da plateia enquanto o sol se põe. O pessimismo realista de Kato é tal e qual como os low-angles da sua câmara: presos para sempre à terra e ao solo, vendo a vida como ela é. Portanto, antes de haver herói infalível, há sofrimento, há interioridade.



When Twilight Draws Near (1969) de Akio Jissoji: ****
Esta média-metragem de quarenta minutos assinala o início fulgurante da carreira do enorme cineasta Akio Jissoji. Auto-financiado e distribuído pela mítica Art Theatre Guild, numa sessão dupla que também continha Diary of a Shinjuku Thief de Nagisa Oshima, When Twilight Draws Near apenas pelo seu aspecto e premissa transporta-nos para o reino temático e estético da chamada Nouvelle Vague japonesa, caracterizada, entre outras coisas, por filmar a malaise juvenil e as suas tentativas violentas de resgatar uma certa transcendência através da imanência. De facto,quando a ATG deu a oportunidade para filmar uma trilogia épica (possivelmente uma das melhores trilogias de sempre), Jissoji descrevia da mesma maneira outros jovens perdidos numa era em que nada os metia em questão servindo-se de referências, símbolos ou epifanias religiosas para as cruzar com a necessidade de revolta individual (como no seu Mujo) ou colectiva (ver Mandala). Tal como os filmes de Oshima ou Wakamatsu, When Twilight Draws Near revela, nos seus diálogos, as chagas históricas da guerra (menciona-se Auschwitz, Hiroshima) e compara-se a veracidade e gravidade histórica com o "jogo" absurdo dos seus protagonistas, condenados a recriar o caos para iluminar, refutar ou obscurecer o seu caminho espiritual. Da virtualidade à realidade. Uma coisa é certa: já aqui estavam todos os ingredientes para a sua trilogia religiosa!



Wicked Priest 3 - A Killer's Pilgrimage (1969) de Takashi Harada: *
Wicked Priest 4 - Wicked Priest Comes Back (1970) de Takashi Harada: ***
Wicked Priest, a popular saga do monge atrevido assinada pela Toei (e apadrinhada por Takashi Harada que dos cinco filmes apenas não realizou o primeiro e o último) é um caso paradigmático de reciclagem de ideias que os outros estúdios vinham fazendo, obviamente colocando uma componente mais adulta, às vezes brejeira, talvez para reforçar os momentos de comédia. Shinkai, o nosso monge, tem qualquer coisa de Zatoichi para os crescidos e a sua aparência inofensiva (até o seu ofício inocente e itinerante) reforçam os momentos em que das suas mãos se faz justiça. Por outro lado, a relação animalesca com as mulheres (obviamente muito mais seguindo o espírito grindhouse do que o charme galante - na senda dos ídolos Ken Takakura ou Koji Tsuruta) faz ainda lembrar o personagem de Shintaro Katsu na saga Hoodlum Soldier. Finalmente, Shinkai é Tomisaburo Wakayama, isto é, até à altura, o actor representava-se a si próprio e a sua imagem de marca era tão importante que os argumentistas claramente escreviam directamente para a estrela. Posto isto, pouca coisa nesta saga é verdadeiramente marcante. No terceiro filme, o confuso A Killer's Pilgrimage, Shinkai, entre algumas coisas, visita uma aldeia piscatória, enamora-se por uma pescadora, luta contra um grupo de indigentes que quer fazer a revolução à força e ainda tem tempo para combater o seu arqui-inimigo, o monge Ryotatsu (cego desde o primeiro filme). Já em Wicked Priest Comes Back a série ganha algum do seu charme. Desta vez, o monge volta à sua aldeia natal e arranja problemas com a máfia residente e ainda se torna rival do seu melhor amigo de infância. Por se aproximar mais de um estudo de personagens e por dificultar o caminho do seu protagonista (cegando-o, a dada altura), Harada aqui consegue consolidar bastante melhor a narrativa episódica a despeito das imperfeições do costume.



Prophecy (1983) de Susumu Hani: *****
Não, não conseguimos sentir (moralmente) a História senão pela presentificação. Sem confrontarmos as imagens avassaladoras das vítimas dos bombardeamentos atómicos - que pela sua intensidade lancinante anulam qualquer intenção perversa, qualquer perspectiva escondida ou propósitos sensacionalistas - não podemos retirar um conteúdo ético e existencial duradouro. Só olhando de frente para esse caos escatológico podemos conservar a memória da tragédia alheia, tornando-a, justamente, um pouco mais nossa. O eu torna-se outro por este acto de reconhecimento na tragédia. Certamente Hani e o 10 Feet Film Movement (um movimento organizado pelo Museu da Paz que incentivou cidadãos japoneses a comprar aos Estados Unidos filmes confidenciais sobre os dias que se seguiram ao lançamento das bombas atómicas) perceberam essa necessidade indubitável de mergulhar nas imagens tenebrosas captadas in loco e com um despudor cirúrgico dos milhares de inocentes destinados a sofrer para a eternidade por guerras e interesses que não eram os seus (e que ainda continuam a nortear o mundo). Temos de olhar para estas imagens e deixar ecoar na nossa famélica memória a amargura categórica e profética destas palavras: "to our sufferings, never again".



Lone Wolf and Cub - The Final Conflict (1993) de Akira Inoue: ***
Ah, a velha querela com os remakes! De entre todos os argumentos (muitos dos quais partilho) contra a existência desse parasitismo artístico, esquecemo-nos que o que legitima uma readaptação é o facto dela poder corresponder a uma nova (e radical) abordagem que cria diálogos múltiplos com o material original enquanto conquista novos espectadores. Sempre associei o argumento da "necessidade" do remake a estratégias de marketing disfarçadas de populismo ou falsos serviços públicos. A verdade é que nenhuma obra precisa de ser refeita apenas para parecer mais moderna se se mantiver tudo como estava. Portanto, quanto mais radical for a perspectivação do autor, quanto mais se distanciar a adaptação do adaptado, em suma, quando o criador sente que algo devia ser visto de outro ângulo, eis que surge o poder, em certo sentido a necessidade, do remake. A pergunta era: como podia Akira Inoue num só filme competir com os seis filmes originais da saga Lone Wolf and Cub? Como podia ele querer tocar numa obra tão imagéticamente definitiva sem incorrer na blasfémia? Bastou mudar a disposição inteira e o foco para justificar e tornar autónoma esta nova leitura ultra-condensada e bastante mais sentimental da obra de Kazuo Koike e Goseki Kojima. O famigerado percurso para os infernos do executor oficial e o seu filho está aqui virado para a humanização de todos os personagens (incluindo os vilões), distanciando a frieza e a violência cruel que está inscrita, sem dúvida, na obra e nos filmes originais. Não deixamos de sentir em Inoue, que foi assistente do genial Kenji Misumi (dos seis Lone Wolf realizou quatro), uma necessidade qualquer de prestar tributo ao seu mestre, seguindo os seus instintos e orquestrando a sua própria visão da descida aos infernos de pai e filho. Com todas as suas diferenças e fraquezas (de facto, o cuidado estético e a brutalidade estoica dos originais criava contrastes fabulosos), este é um remake digno sem qualquer medo de arriscar e sem vergonha de falhar.



The Bandage Club (2007) de Yukihiko Tsutsumi: *
Umas palavras em relação ao ciclo da Cinemateca que dá pelo nome "Passado e Presente do Japão Na Cinemateca": já o título anuncia que "anything goes". Com o apoio privilegiado da Japan Foundantion esperava-se mais criatividade na curadoria e escolha dos filmes, perfilando na programação uma má ou insuficiente amostra tanto do que se tem feito actualmente (fica-se com a impressão que apenas há filmes ligeiros a explorar) como da imensa riqueza do que se fez (Mizoguchi e Imamura a representar teimosamente o tal passado aludido, como se bastasse). Enfim, enquanto mantivermos os mesmos nomes de sempre - presenças automáticas que deixaram de reflectir escolhas integradas numa lógica de ciclo - podemos apenas contar com a propagação de reconhecimento que, muitas vezes se opõe ao conhecimento, sinónimo de descoberta, aventura. Sobre este The Bandage Club há pouquíssimo a assinalar. Segundo de três filmes realizados por Tsutsumi apenas em 2007 (os outros dois são o desequilibrado Happily Ever After e o medonho Sword of Alexander), a narrativa centra-se num grupo de jovens que criam um clube de ligaduras para sarar as feridas que todos carregamos. É um filme inofensivo mas extremamente melodramático (no mau sentido), prova disso é a música irritante que não nos deixa quietos e é mecanicamente inserida sempre que o espírito tele-novelesco pede. Apenas algum cuidado imagético impede que o filme se torne num gigantesco tédio, e por mais simpático que o grupo de jovens seja, jamais sentimos grande apreço pela narrativa, que anda completamente à deriva, resolvendo e abrindo problemas de forma sistemática e artificial. Senhores da Cinemateca: para quando um ciclo japonês coerente só de inéditos? Um ciclozinho ATG?



The King of Jail Breakers (2009) de Itsuji Itao: **
Itsuji Itao, actor e celebridade pública, tem aqui a sua estreia na realização. À semelhança de um Hitoshi Matsumoto (outro comediante que também tentou a sua sorte na cadeira de realizador), o filme confia demasiado num determinado conceito e fá-lo repetir, absurdamente, numa cadeia de pequenas situações e sketches, variando talvez só na intensidade e dramatismo como são executados. O próprio Itao interpreta o prisioneiro mudo (feliz escolha a de o ter privado de diálogos, tornando-o mais misterioso), rei da fuga que progressivamente vai-se evadindo das maiores e mais difíceis prisões qual Macgyver japonês. Em termos de imagem, o digital realmente não abona muito a favor de Itao. Mal contrastado e imagens pouco polidas fazem-nos obrigatoriamente virar para as interpretações que são satisfatórias. E não quer dizer que não haja momentos curiosos de cinema neste The King of Jail Breakers (por exemplo, o facto de se reproduzir, frame a frame, o inicio a meio do filme e de seguida surgirem as letras do título), mas isso diz mais respeito a truques de montagem e twists narrativos (como o final: nada complicado, mas eficiente) do que verdadeira pujança cinematográfica.



Tokyo Oasis (2011) de Kana Matsumoto e Kayo Nakamura: *
Apesar de ser ainda tão nova, a realizadora Naoko Ogigami surpreendentemente já fez escola e nos últimos anos temos visto chegar à cena independente umas quantas discípulas que pegam, sem tirar nem pôr, na mesma estética e feeling - já os descrevi noutro lado como um "estar-se" e não um "ir-se" - da cineasta. Casos como Pool (2009) de Mika Ohmori, Mother Water (2010) de Kana Matsumoto e agora este Tokyo Oasis vão das boas surpresas a um mimetismo sem esqueleto. Infelizmente, esta tentativa a quatro mãos recaí no segundo conjunto. De facto, o carácter fragmentário e espaçado que já estava presente na obra de Ogigami dessintoniza-se aqui de personagens ou mesmo situações significativas. Todos os momentos - por mais insignificantes que sejam - são filmados de um modo completamente vazio e desapegado e os três encontros no filme (porque são, de facto, três encontros, com nenhuma ligação entre si) não nos fornecem momentos prazerosos ou aquela comicidade discreta que soluciona problemas aparentes de ritmo. Kana Matsumoto e Kayo Nakamura, afinal, esquecem que não basta filmar conversas incessantes e corriqueiras para suscitar alguma emoção. Meninas, relembrem a regra primordial aprendida na escola de cinema: show, don't tell!

28/11/13

Fragmentos de 2013/11/28



Female Ninjas - In Bed With the Enemy (1976) de Takayuki Miyagawa: ***
Como é possível um exercício ser constituído, de fio a pavio, por moralidade duvidosa, simplificação dramática e sexualização gritante e ainda assim ser um espectáculo grandioso e operático, barato em certos departamentos (não negamos), mas exímio noutros e com propensões psicadélicas fora de série? Chame-se guilty pleasure ou não, a verdade é que a artisticidade entretida (até ridiculamente superficial) é o mote para as aventuras das três kunoichi, encarregues de recuperar ouro perdido do governo. A melhor coisa deste filme politicamente incorrecto é, primeiro, a sua lata e, depois, a inventividade imagética, composta por magníficas cenas de uso de técnincas ninja improváveis, como troca de corpo, asfixiamento vaginal e o golpe da última cena: hipnose cruel que acaba com um estrangulamento letal de nádegas. Não acreditam? Vejam por vocês mesmos!



Black Board (1986) de Kaneto Shindo: *
Coincidência ou não, os velhos mestres pareciam virar-se para os problemas da juventude na década de 80. Keisuke Kinoshita alertava (com sensacionalismo e sem espírito cinematográfico) para os crimes juvenis e para a decadência de uma era sem rumo. Kaneto Shindo, que no mesmo ano tinha filmado o autobiográfico e surpreendente Tree Without Leaves, decide neste caso tratar o tema do bullying nas escolas, pintando o mesmo retrato desencantado da juventude do seu conterrâneo. O grande problema neste Black Board é o facto de ser realmente desorganizado e não ir muito longe na sua mensagem. Parte policial, parte exercício moral em que mergulhamos nos ritos de integração e de exclusão dos jovens, o filme não consegue homogeneizar a componente dramática e revela-se excessiva e chata, a inclusão de várias personagens-intérpretes, isto é, aquelas que deviam fazer a ponte entre os adultos e os jovens (professores, pais, o director da escola e até mesmo um jornalista irritante e despropositado). No final, o irreverente e "sempre jovem" Shindo (mesmo tendo 74 anos aquando da saída deste filme) não demonstra grande mestria e, especialmente, abertura espiritual para "dar a César aquilo que é de César" e, portanto, filmar estes jovens sem a teimosia e negativismo barato de um velho do Restelo.



Seigi no Tatsujin - Nyotai Tsubo Saguri (2000) de Sion Sono: 0
Não é que Sion Sono tivesse a necessidade de conservar a credibilidade da sua imagem, mas Seigi no Tatsujin - Nyotai Tsubo Saguri é coisa que arruína, ou pelo menos, embaraça carreiras. Este pink sem ponta por onde se lhe pegue (e não, nem todos os pinks são assim tão óbvios) é meramente um amontoado de cenas soltas de sexo em parte protagonizadas pelo próprio Sono, aqui também actor que demonstra o seu gosto malcheiroso sem precedentes. Filme com laivos de pornógrafo de segunda categoria, mesmo a inclusão, supostamente mais refinada e de "autor", de mecanismos de quebra da quarta parede (entrevistas, actores dirigindo-se para o espectador e os créditos escritos em pedaços de cerâmica) não passam de adornos vazios que dissimulam a falta de inteligência de todo o projecto. Verdadeiramente terrível.



Forget-Me-Not (2006) de Hiroshi Sugawara: **
Já muitas vezes o dissemos: a confiança no flasback robotiza e cria previsibilidade na acção narrativa, pois está dependente da estrutura "escondimento-revelação". Para sermos mais precisos, o facto do passado avançar ou clarificar o presente torna, tanto um tempo como outro, carentes e fracamente substanciais, se encarados individualmente. Por isso mesmo, um bom filme de flashbacks é aquele que escolhe bem os elos de ligação. Na verdade, Forget-Me-Not tem certas particularidades que enriquecem a tal recorrência constante ao passado. Por exemplo, a perda progressiva de visão da protagonista aponta para a necessidade urgente de reconstruir as imagens da infância, afinal, sublinhando nesse processo a particularidade da memória: a arquitectura de imagens mentais, prescindíveis de visão. No entanto, Hiroshi Sugawara muda o ângulo diegético e rapidamente a tragédia da guerra e os avisos às novas gerações contaminam os relatos e as memórias mais pueris, mas não menos verdadeiras. O filme não encontra muito bem o seu terreno dramático e deixa-se levar pela mensagem anti-militarista, esquecendo um pouco a busca de memórias significativas sem a fatalidade de um trauma.



The Dark Harbour (2009) de Takatsugu Naito: ***
Para apelidarmos esta estreia de Takatsugu Naito de filme mudo não seria, de todo, necessário substituir os parcos diálogos pelos famosos intertítulos. De facto, The Dark Harbour faz-se exprimir na linguagem do cinema pré-sonoro, veja-se o seu humor maioritariamente físico, o seu sentido de dramatismo silencioso (com as sensações sempre amparadas pela corporalidade) ou ainda certos planos abertos (ou de ambientação) dignos dos clássicos. Naito consegue, pois, nesta aventura (des)amorosa reinventar uma gramática perdida sem recorrer à citação ou ao excesso da mímica. Trata-se, pelo contrário, de um filme silencioso, mordaz e gentil que pega na figura icónica do solitário infeliz (e todos os heróis japoneses são solitários) e sujeita-a ao crivo dos enganos e das desilusões. Podemos dizer que há aqui qualquer coisa de alegremente contagiante mesmo quando os desenlaces não são propriamente reluzentes.



It's Me, It's Me (2013) de Satoshi Miki: 0
O novo filme de Satoshi Miki inclina-se, de inicio, para situações absurdas, mas ontologicamente desafiantes. Um jovem finge por telefone ser filho de outra pessoa, pedindo dinheiro para pagar um suposto acidente de carro. Mais tarde descobre que se tornou, realmente, filho dela. A proposta de Miki começa por ter um charme cómico e não nega jamais as suas escolhas mais bizarras (ouça-se, por exemplo, a banda sonora: a melhor maneira de a descrever seria Bach em sintetizador). No entanto, o seguimento da premissa inicial é demasiado idiota, incompreensivelmente futurista e hipotética. Crê tanto na teoria de conspiração que despreocupa-se quanto ao sentido narrativo e ignora a potencialidade que o tema da (perda de) identidade tinha. No final, ficamos com a sensação que a ideia original poderia ter sido desenvolvida e concluída de uma maneira muito mais digna e intelectualmente estimulante, sem parvoíces, hiperbolismos desnecessários e irritantes mudanças de tom e foco.



The Great Passage (2013) de Yuya Ishii: **
Yuya Ishii é um cineasta que beneficia da lentidão para gravar uma certa progressividade natural das emoções e idiossincrasias dos personagens. Claramente, The Great Passage tem uma aparência e um cast digno de superprodução, o que contraria as orientações mais modestas e independentes (nuns casos, estapafúrdias) do jovem cineasta. Algumas coisas mudam, mas outras permanecem. Ishii, aparentemente está mais emocional e menos ácido, mais"clássico" e menos alternativo a descrever. Não cede, todavia, a ritmos mais velozes, nem a  tiques próprios do cinema comercial. O grande problema aqui é que joga-se demasiado no seguro e mesmo uma sensação tradicional, psicologicamente falando, deixa-nos com personalidades e problemáticas, por vezes, unidimensionais. Nem tudo são más notícias. Realmente prazerosa é a maneira como Ishii descreve, não só o processo de criação lento e dedicado de um dicionário (nunca mais vou ver os dicionários da mesma maneira!) mas também o papel do significado das palavras na vida, já que a linguagem tem vida (porque resulta de um processo aberto e dinâmico de comunicação). Se o papel do editor é ir ao encontro das próprias palavras, capturando-as, então todos estes personagens têm o seu quê de caçadores selvagens, pequenos nefelibatas à procura de fixar a magia da linguagem. De facto, Ishii sempre filmou personagens estranhamente engraçados.

17/11/13

Fragmentos de 2013/11/17



Whipmaster - Ballad of Murder (1970) de Takashi Harada: *
O monge vilão e cego da série Wicked Priest (os religiosos travessos por esta altura eram inesgotáveis para os estúdios) também teve direito ao seu filme. Protagonizado por Bunta Sugawara, Ryotatsu difere dos monges agitados e patetas caracterizados pelos irmãos Shintaro Katsu e Tomisaburo Wakayama. Anti-herói confesso com espaço para boas acções, ainda que isoladas, e um carácter impenetrável e bruto, não traz nada de novo nem original ao típico rufia indisposto e estereotipado (nem mesmo a presença da criança inocente a seu cargo) tão omnipresente nestes exercícios série-B. O único destaque vai para a banda sonora: fusão heteróclita de funk, espirituais negros com alguns instrumentos tradicionais (maioritariamente o shakuhachi), algo relativamente comum nos exageros amalgamados dos anos 70, mas aqui realmente energéticos e absorventes.



The Revolt (1980) de Shiro Moritani: *
Outra produção baseada na única tentativa de Golpe de Estado da História do Japão. O famoso incidente 2-26 (isto porque ocorreu no dia 26 de Fevereiro de 1936) foi organizado por um grupo de jovens soldados descontentes com a situação social e com a deterioração, ver mesmo, corrupção da classe militar. Ken Takakura, neste épico de duas horas e meia, encarna um dos militares que encabeça a revolta e, como na maior parte dos filmes sobre o incidente, paira um certo sentimentalismo, algo nefasto e historicamente inexacto em nossa opinião. Shiro Moritani avança a sua narrativa a um ritmo letárgico, filmando excessivamente e sem grande afinco o percurso deste soldado descontente. Outra tentativa de se conceder humanidade ao protagonista surge com o love-interest, demasiado robótico e pouco autêntico. Pouco mais há a dizer a não ser isto: este é um projecto sem alma.



Dangerous Cops Again (1988) de Haruo Ichikura: *
O título já sugeria a insistência provocatória ou desnecessária (?) das aventuras do duo de detectives forasteiros e playboys, mas o abuso dos mesmos lugares-comuns policiais assim como uma narrativa desesperadamente genérica impede, tal como acontecia na primeira instalação realizada por Yasuharu Hasebe, que algum do aprimoramento imagético colha algum mérito. Pouquíssimo temerário no departamento narrativo, Dangerous Cops Again só consegue distinguir os seus dois protagonistas pelas graçolas. Insuficiente e monótono.



Penance (2012) de Kiyoshi Kurosawa: **
Originalmente uma mini-série de televisão, Penance foi reeditado, para fins de exportação, numa longa-metragem em duas partes, quase excedendo as cinco horas de duração. Apesar das diferenças do médio, não assistimos a grandes submissões embaraçosas nem mudanças programáticas. Trata-se, pois, de um projecto típico de Kiyoshi Kurosawa: a sua noção atmosférica e minimalista de terror está com todo o seu potencial (vejam-se os posicionamento de câmara, colocação de personagens no plano, etc.) e a imprevisibilidade patológica, contudo, discreta e contraída, dos seus personagens não é olvidada. Quatro meninas assistem à morte de uma amiga e o filme salta para o futuro de cada uma delas, futuro esse sempre envolto em traumas ou atitudes desviantes, já que são pressionadas pela presença constante da mãe da criança defunta. Com o seu estilo sóbrio e metódico, Kurosawa tem a oportunidade de explorar vários registos e disposições (comédia, drama, etc.) sem nunca abandonar a tensão lenta e psicológica que caracteriza toda a sua obra. Podemos dizer que essa inscrição experimental resulta desequilibradora e, claramente, não se adapta bem ao formato longa-metragem, formato que assume uma continuidade, neste caso, fastidiosa e irregular. Por exemplo, se há capítulos bem conseguidos nesta odisseia de vingança e trauma (nomeadamente o primeiro e o terceiro), o epílogo no quinto capítulo é apressado, confuso e, no cômputo geral, insatisfatório, lançando soluções de última hora e revelações (telenovelescas) de evitar. Se avaliássemos cada episódio, as notas seriam bastante díspares, mas como experiência única e continua (e com um final tão qualitativamente diferente do resto), Penance não é mais do que uma grande confusão com momentos de assinalar.



A Story of Yonosuke (2013) de Shuichi Okita: ****
Há dois tipos de filmes: os maiores do que a vida e os que se mantêm equilibrados, à tona dela, gentilmente revelando segredos para quem estiver disponível para os guardar. No primeiro caso, inclinamo-nos para a sensação de arrebatamento, no segundo, apenas temos suficientes e discretas comoções. Ora, a terceira longa metragem de Shuichi Okita enquadra-se no segundo tipo. De facto, A Story of Yonosuke com a sua disposição amável, com a generosidade emotiva dos seus personagens e com o seu humor modesto, porém hilariante, enche-nos as medidas e representa um passo de gigante para Okita que vem-se afinando a cada nova obra, apostando sempre em filmes conduzidos por uma gentileza contagiante mas, ainda assim, justa com as vicissitudes da vida. Aqui, como nas suas tentativas passadas, vive-se de personagens e toda a dedicação é-lhes concedida, sejam protagonistas, secundários, etc. Este é um valente festival de momentos, de sorrisos, de acting (a minha vénia para Kengo Kora) e de sentimentos nostálgicos mas sempre com uma sensação positiva prevalecente e recompensadora.



See You Tomorrow, Everyone (2013) de Yoshihiro Nakamura: ***
É de salutar que o mais recente filme de Nakamura não negligencie uma análise social, escondida somente no subtexto, sem nunca esquecer também o apreço pelo seu protagonista bizarro, condenado à solidão e ao abandono. As peripécias (quase todas cruéis e sem grande esperança) de Satoru, aparentemente alguém que se recusa a crescer e abandonar o bairro artificial composto por edifícios pré-fabricados, não pode ser dissociado do desenvolvimento massificado da sociedade japonesa desde o final dos anos 70 até hoje. A analogia tem uma acuidade avassaladora se notarmos, através dos anos, a passagem do abandono sucessivo dos seus colegas à consequente ocupação por minorias étnicas, daquilo que era uma das representações do milagre económico. Nakamura, às tantas, filma esses prédios estéreis e essa urbanização estandardizada como se tudo tivesse sido assombrado e o seu filme mais não fosse do que um conto apocalíptico onde os ostracizados se reúnem. Claro que continuamos a ter um filme baseado no protagonista e este seu tão característico amor pela "pessoa errada na situação errada" (que é obrigada a "encontrar-se" na folia) mantêm-se, mas aqui excedem-se os módulos do entretenimento de sorriso fácil que imperavam nas suas películas pipoca. Este olhar não encontra concessões e é até uma marca insofismável de desencanto e amadurecimento. Como nós gostamos...



Like Father, Like Son (2013) de Hirokazu Koreeda: ****
Desde Nobody Knows a I Wish assistimos em Koreeda à obsessão antiga de encontrar (e resgatar) nas crianças um estado de honestidade em bruto. Falando em termos clássicos, nessas obras havia muito mais Hiroshi Shimizu do que Yasujiro Ozu, isto é, as crianças não serviam meramente propósitos de comic relief (ao desabarem comicamente o mundo dos crescidos) mas era essa sua inocência comovente destroçada pelos adultos, ora por negligência, ora por egoísmo (ou porque crescer é uma inevitabilidade). Como o título deixa claro, este é um filme sobre a interdependência entre adultos e crianças. É, por isso, um filme sobre família(s) - e que tem feito Koreeda senão escalpelizar, precisamente, os afectos familiares com todas as suas diferenças? - e a insubstituibilidade (ou não) dos filhos. É, em rigor, um conto sobre a importância dos afectos e como, em última instância e ao fim de muito sofrimento, esses afectos podem vencer qualquer petição de verdade ou conceito como relação de sangue. Formalmente, continuamos embarcados numa estética discreta, delicada e não-impositiva, mesmo quando tudo (principalmente a temática) indicaria o contrário. Cada personagem representa um rio complexo, instável e tenso de emoções, contradições e tentativas de mudança que nunca permitem um sentimento de artificialidade instalar-se. Os adultos de Koreeda, ironicamente, aqui muito mais desamparados do que as crianças são chamados a prestar declarações como se o processo de crescimento fosse, afinal, o deles. Como todos os bons cineastas, Koreeda aposta na pluralidade das perspectivas (os filhos são vistos através do olhar hesitante dos pais e, simultaneamente, os pais são vistos pelos olhos perturbadoramente passivos das crianças) e na indeterminação do final. Tudo motivos para enriquecer a experiência e aproximá-la de um ritmo autêntico, à flor do real.

08/11/13

Fragmentos de 2013/11/08




A Chivalrous Spirit (1958) de Sadatsugu Matsuda: **
A força das program-picture sempre residiu na variação da repetição, isto é, quanto mais transfigurador e original fosse a modificação na estrutura, mais único e original, mais "artístico" até, seria o produto final. Sadatsugu Matsuda no seio da Toei filmava a um ritmo frenético, muitas vezes adaptando a mesma história duas ou três vezes em curtos espaços de tempo: isso passou-se, por exemplo, com o lendário conto Chushingura (os 47 Ronin) , rodado por Matsuda em 1958 e 1961. Portanto, A Chivalrous Spirit conta as peripécias clássicas de Shimizu no Jirocho e os seus 28 yakuza, o que não é nada estranho já que a mesma história seria recorrente nos jidai-geki futuros da Toei (Masahiro Makino filmaria Kingdom of Jirocho em 1963) e da Daiei (o díptico Jirocho Fuji, realizada por Kazuo Mori em 59 e 60). Pormenores históricos à parte, este é um filme razoável de estúdio, contido e focado nas prestações (já que se trata de um cast all-star) com pouco a destacar a não ser o final trágico e incompleto, que prometia mas não deu sequela.



A Scoundrel (1965) de Kaneto Shindo: ****
Situado a meio caminho entre os aclamados Onibaba e Kuroneko, A Scoundrel é uma obra-prima esquecida do mestre Kaneto Shindo. Em primeiro lugar, este é um filme que simultaneamente se aproxima e distancia dessas obras não menos nem mais marcantes do realizador. Distancia-se porque prescinde qualquer componente esotérica: Onibaba era uma fábula ética construída a partir da maldição sobrenatural, Kuroneko, por sua vez, era uma história de vingança baseada no folklore fantasmagórico. Diferentemente, neste A Scoundrel apenas há espaço para a intriga, sempre com os pés bem assentes na terra, e a demonstração nefasta e crítica de uma sede de poder sem limites e travões. Isto é material digno de Shakespeare, se lhe tirarmos (e perdoarmos) os fantasmas. É nesta descrição malévola da ganância e da anarquia do poder que reencontramos as suas duas outras obras. De facto, Shindo nos anos 60 estava interessado em descrever as relações de poder e influência entre os humanos, especialmente nas sociedades feudais, e raramente as suas conclusões eram optimistas. Em Onibaba, por exemplo, a ganância de um bando de forasteiros surgia através do desejo de obter mais dinheiro, riquezas e destroços dos guerreiros que morriam. Já aqui, a ambição, se bem que também transcende as regras sociais nomeadamente as maritais, vêm das suas esferas mais altas e constituintes. O braço direito do shogun, Ko No Moronao nutre uma obsessão por uma mulher casada. Instigado pela sua serva (que grande papelão de Nobuko Otowa), o general não dá término à sua busca enquanto não conseguir roubar a sua paixão do marido. Isto dá o mote para uma quantidade de cenas que, diacronicamente, vão da comédia à tragédia. Shindo pode até finalizar a sua narrativa no pessimismo, porém, não deixa de subverter esse sentimento negativo (o de que os poderosos são intocáveis e estão acima de todas as regras) com um desafio poderoso e inquietante: não existe poder desmesurado que conserve o que quer que seja. A ambição corrompe até os lucros secretos que julgávamos retirar dela. Mais uma fantástica fábula moral assinada por Shindo.



Hoodlum Priest and the Gold Mint (1968) de Kazuo Ikehiro: **
O que fazia Shintaro Katsu, um dos actores definitivos da sua geração, nos últimos anos antes da falência da Daiei? Alternava entre o massagista cego Zatoichi (o papel da sua carreira, 26 filmes), Asakichi, o yakuza de bom coração da saga Akumyo (conta exactamente 16 filmes), o soldado insolente e boçal de The Hoodlum Soldier (8 filmes) e ainda tinha disponibilidade para participar em produções semi-independentes como Hitokiri de Hideo Gosha ou The Man Without a Map de Hiroshi Teshigahara. No final dos anos 60, Katsu era, certamente, um homem ocupado e a juntar aos trabalhos a Daiei apostava em dois filmes (este é o segundo) em que o carácter rebelde e imprevisto do seu personagem era, mais uma vez, um pré-requisito. A isto não se pode esquecer a tentativa de querer aproximar a irascibilidade e o atrevimento naturais de Katsu a linguagens na veia do exploitation que fazia furor na Europa e nos Estados Unidos e chegava com pés de lã aos estúdios japoneses. Por isso, neste Hoodlum Priest o personagem é um monge budista atípico que se apaixona facilmente por mulheres, um mestre no roubo e na extorsão que não olvida um sentido de justiça algo bizarro. Kazuo Ikehiro - que, na nossa opinião, era um dos mestres ignorados da Daiei - não consegue demonstrar a sua excepcionalidade característica e o filme não é mais do que uma coleção de vinhetas engraçadas e entretidas com o sempre festivo Katsu a não perdoar. Coincidência ou não, Tomisaburo Wakayama, o irmão mais velho de Shintaro Katsu, também interpretou no mesmo ano, em 68, um monge semelhante numa saga assinada pela Toei que começou com Wicked Priest de Kiyoshi Saeki e teve mais quatro sequelas até 1971. Uma coisa é certa: se queres ser provocante, usa monges!



The Dancer (1989) de Masahiro Shinoda: **
Adaptação do célebre conto homónimo de Mori Ogai, que por sua vez, era baseado nas suas experiências em 1884 aquando de uma estadia em solo germânico por motivos académicos, The Dancer, como todas as histórias de amor impossível, tem como pressuposto o confronto entre os outros e aquilo que poderíamos chamar de egoísmo a dois. A particularidade do conto de Mori é que, em rigor, não eram os outros que tornavam impossível a concretização do projecto amoroso, mas sim, o próprio amante, um estrangeiro (e como poderia não se ser estrangeiro, sendo um japonês na Alemanha do século XIX?) que abandona a sua amada alemã, grávida e com um ataque de nervos. Nesta versão cinematográfica, Masahiro Shinoda quis retomar a instância clássica que aponta as culpas e responsabilidade derradeira para os outros (para um colectivo outro), desta feita, limpando um pouco os sentimentos dúbios e negros do nosso protagonista ao desistir da sua relação e voltar para o seu país natal. Porém, algo que sempre se realça aqui é a descoberta da palavra amor, completamente contrária quer ao dever militar, quer ao interesse mais lato pela nação japonesa. Assim que esse fino segredo é revelado, nada mais faz sentido a não ser a pessoa amada, o objecto do desejo. Talvez por isso, Shinoda esteja mais interessado em diferenciar culturas do que desenvolver a psicologia dos seus personagens (essa apenas dada em longos e, por vezes, desnecessários monólogos em voz-off): dificilmente um japonês pode amar à ocidental, pois sempre se suplanta no seu interior a realidade colectiva que apaga e castra a liberdade individual. Infelizmente, este tipo de paralelos identitários frequentemente esteriliza a vitalidade e profundidade dos envolvidos. E este caso não é excepção.



Graduation Journey: I Came from Japan (1994) de Shusuke Kaneko: 0
Poucas pessoas sabem que o famigerado realizador que revitalizou Godzilla e Gamera e também levou o manga Death Note para o grande ecrã foi, em tempos, especialista em comédias ligeiras. Prova disso é o seu All Quiet on the Employment Front de 1991 (referência satírica ao filme e livro de guerra, All Quiet on the Western Front), comédia juvenil que reunia um grupo de recém-licenciados à procura de emprego numa sociedade altamente competitiva sem lugar para todos. Muito do humor resultava de uma visão cínica do Japão pós quebra da bolha económica, mas o tom era quase sempre leve e descomplexado. Este Graduation Journey é ainda mais - e infelizmente - um produto do seu tempo. Supostamente um filme sobre o sucesso instantâneo que qualquer japonês pode ter na Ásia (nomeadamente na Tailândia, onde qualquer japonês pode ser ídolo pop), Kaneko não deixa de ecoar um sentimento desgostoso ao ridicularizar a carência cultural dos povos asiáticos e a reverência absurda que nutrem pelo Japão. Claro que a ideia seria a dos japoneses se rirem deles próprios no processo, mas, finalmente, Graduation não consegue ser engraçado e situa-se apenas entre o politicamente incorrecto, o sentimental e o parvinho.



Hello, My Dolly Girlfriend (2013) de Takashi Ishii: 0
Nunca questionámos a importância e o papel de Takashi Ishii na redefinição do cinema erótico quando o seu trabalho como argumentista (e, posteriormente, realizador) começou no final dos anos 70. Os seus mangas polémicos eram fonte de inspiração para realizadores tão marcantes como Chusei Sone, Noboru Tanaka, Toshiharu Ikeda e até mesmo Shinji Somai (que fez do seu Love Hotel um filmalhão sem precedentes). Por isso mesmo, vê-lo nestas figuras tristes e a dispor de um erotismo tão depravado, gratuito e explorador é confrangedor. Ishii continua a usar certas imagens de marca, nomeadamente a sua fotografia expressiva e equilibrada entre cores quentes febris e frias virulentas. Mas, tirando essa orientação da cinematografia, a verdade é que este Hello, My Dolly Girlfriend mais não é do que um filme de fetiches (no pior sentido do termo), auto-indulgente e interessado irritantemente em filmar por entre as pernas das actrizes. Pouco aqui há de psicológico (era essa uma das suas assinaturas no passado), a não ser os sonhos molhados e as projeções infantis de um otaku. Incrível desperdício de tempo e talento.



Shield of Straw (2013) de Takashi Miike: *
Takashi Miike sempre foi o campeão da "suspensão de juízo" e as obras que firmaram a sua carreira (Visitor Q, Ichi the Killer, Gozu, a trilogia Dead or Alive, Audition, entre dezenas de outros casos) podem, certamente ser vistas como novas maneiras do espectador ser espantado se ele jurou não se interrogar sobre a plausibilidade da coisa filmada. Não é novidade, portanto, que a postura camaleónica de Miike se apoiasse no género para agitar a consciência ou abalar o estômago e as sensibilidades dos espectadores à deriva nos seus devaneios, mas confiantes. Shield of Straw, no entanto, comercializou a sua, em tempos, tão expressiva suspensão do juízo, transformando-a num espectáculo alvoraçado onde só os calafrios contam. Neste caso, certas inverossimilhanças assim como o próprio pressuposto da narrativa (um milionário publicamente põe a cabeça a prémio do violador e assassino da sua neta) remam contra a maré de um certo realismo nos dilemas e nos sentimentos ulteriores dos personagens: um grupo de polícias que têm de assegurar, contra todos os civis e até mesmo traidores no seio policial, que o psicopata chega são e salvo ao quartel general. Miike, quando estava na sua melhor forma, deitava pela janela qualquer apego, à nossa escala, com os sujeitos filmados e quando isso acontecia a subversão cómica, até mesmo um sentimento de fraude absurda, era uma consequência natural. Aqui, Miike executa um dramalhão frágil, com pés de barro, disposto apenas a criar situações de ansiedade, aparentemente abertas quanto ao seu desfecho, que vão alimentando uma e outra vez a experiência que apenas vai vivendo do sentimento instável de dúvida radical da segurança da escolta policial e do assassino. Lá para o fim tenta-se encenar o diálogo clássico do mal puro (o mal sem arrependimento ou possibilidade de redenção) o que cria, por sua vez, um sentimento de impotência no esforço para cumprir a missão. Mas, por esta altura, já estamos cansados de tanta forma e pouca substância. Começamos, inevitavelmente, a queixar-nos desta mal amanhada e fatídica suspensão de juízo que está lá para servir propósitos narrativos e não forma, por si só, uma linguagem surreal e fantasiosa, digna de cinema, digna de Takashi Miike.



Tokyo Family (2013) de Yoji Yamada: **
Uma das coisas mais belas e certeiras que Audie Bock disse sobre Ozu foi o seguinte: «os (seus) filmes não são para aqueles que procuram soluções utópicas. Ozu nunca se comprometeu em anunciar a possibilidade do amor romântico, do sucesso terreno ou até mesmo da comunicação humana. Apenas a aceitação, e jamais a felicidade, estava aberta para os seus personagens, independentemente da classe social a que pertencessem. Evitando técnicas virtuosas, assim como estruturas dramáticas ele mergulhou directamente na irracionalidade do carácter e naquela verdade terrível: "a vida é decepcionante, não é?"» Esta conhecida sentença de Noriko no Tokyo Story original - que podia ser repetidamente aplicada a toda a obra ozuniana como se de um mantra se tratasse - era a maior demonstração de que o seu filme mais melodramático era também o mais desencantado, o mais severo ao ponto de se instalar uma tristeza comovente e silenciosa, uma dor impotente de mundo. Estava visto que um remake dessa obra cimeira não era tarefa fácil, mesmo tratando-se de Yoji Yamada na cadeira de realizador, o máximo seguidor da estética Shochiku firmada pelos mestres Ozu e Kinoshita. Na verdade, Yamada esforça-se para replicar cada cena, simultaneamente reverenciando o original com tiques de museólogo  e alterando alguns pormenores para informar aos espectadores que sessenta anos passaram. O casal de idosos agora tem problemas com as novas tecnologias e Noriko, que no original de 1953 era uma viúva de um filho morto na segunda guerra, agora é meramente a namorada desse filho mais novo, aqui vivo. Por muito que Yamada entre num esforço mimético (esforço esse que inclusivamente é formal), a única coisa que não consegue captar é, precisamente, a tragédia que reside nos sorrisos vagos, melhor dizendo, o desencanto ozuniano, discreto e secreto como tudo. Por isso mesmo, de todos os momentos chave colhidos por este Tokyo Family, prescindiu-se apenas de um: o momento em que "a vida é decepcionante, não é?" é proferida, como se não houvesse espaço para o lado mais negro, porém mais fascinante e comovente do mestre japonês. Yamada é apenas um Ozu de museu sem essa verdade terrível.

19/10/13

Fragmentos de 2013/10/19



Seven Seas Part 1 - Virginity (1931) de Hiroshi Shimizu: ***
Seven Seas Part 2 - Frigidity (1932) de Hiroshi Shimizu: **
Esta foi considerada por muitos a primeira obra-prima muda de Hiroshi Shimizu, nomeadamente por William M. Drew que escreveu no site Midnight Eye uma esclarecedora e completa revisão da obra pré-sonora do cineasta recém revitalizado. Não partilho na integra o seu entusiasmo - devido a certas escolhas narrativas menos sábias -, porém, Seven Seas é um exercício curioso a vários níveis. Isto deve-se principalmente a Yumie Sone, a protagonista feminina que demonstra uma raríssima complexidade e um poder de resposta e reacção que transcende a sua feminilidade. Incapaz de ficar com o homem que ama, acaba por ser violada pelo irmão do seu apaixonado (revelação frouxa no meio de cenas sem grande pista ou build-up). Com a sua família dissolvida, Yumie nega o seu amado, aceita surpreendentemente casar-se com o homem que lhe roubou a inocência e para além de esbanjar a fortuna da sua família abastada ao ponto da falência, impõe a sua castidade como punição. Esta mudança de personalidade engendra uma vingança com contornos sexuais em tudo rara nas narrativas dos anos 30, colocando na dianteira uma mulher abusada que tem de mergulhar na mesquinhez e na crueldade para conseguir fazer pagar o homem rico, explorador por natureza. O grande problema deste mudo é, finalmente, a sua resolução inconsequente, como se o choque e a intensidade dramática tivessem sido filmados em vão.



Duel at Fort Ezo (1970) de Kengo Furusawa: *
A década de 70 ficou conhecida por tentar revitalizar o chambara. Uma das estratégias mais conhecidas para captar novos espectadores foi o de intensificar quer a violência, quer a sexualidade dessas películas. Porém, a Toho, um dos estúdios menos afectados com a crise administrativa e financeira das casas de produção, não mexia um centímetro quanto à sua maneira de fazer entretenimento, como os americanos dizem, cheesy. Na senda das produções baratas e singelas de Senkichi Taniguchi para o estúdio - relembro, pelas piores razões, The Samurai Pirate (1963) ou Adventure in Kigan Castle (1966) - aqui também se reuniu um conjunto de actores de renome e se orquestrou uma aventura com pretensões épicas, ressoando aparentemente algumas influências do género: um conjunto de bandidos em missão de infiltração. A famigerada suspensão do juízo atinge proporções gigantescas quando, por exemplo, vemos um homem vestido de urso a fingir ser um ou uma violação que é perdoada por ter despertado o espírito feminino da líder da aldeia. Apenas um actor consegue destoar as imperfeições reinantes. Rentaro Mikuni sempre que surge é uma alegria e o seu personagem - matreiro como as raposas - esconde o típico jogo duplo (neste caso triplo, à boa maneira de Yojimbo) quando coloca duas facções em conflito e foge de cena. O seu carisma é de tal maneira antagónico ao descrédito da película que torcemos pelo seu triunfo aquando do duelo final. Sempre previsível e pouco polido, Duel at Fort Ezo não cumpre nem essa expectativa.



The Catch (1983) de Shinji Somai: *****
O cinema de Shinji Somai evoca uma certa e radical tendência mizoguchiana de esbatimento das emoções. Neste magnânimo The Catch a estratégia não difere do resto da sua obra: distanciamento da câmara dos actores com pericias de acrobata (e como acontece com todos os acrobatas, nem sempre fazem cambalhotas perfeitas), renegação de qualquer tipo de plano-detalhe ou "close-up" e prolongamento teimoso da duração dos planos, compassando e esculpindo assim o tempo, um tempo tão marcadamente seu que torna indefinida qualquer previsão de como e quando acaba uma sequência. Ainda sobre os seus gigantes e inigualáveis planos-sequência (e que planão-sequência abre este filme!) poder-se-ia dizer o seguinte: Somai é o arquitecto dos corpos, não num sentido carnal, mas na acepção dos diversos posicionamentos espaciais dos actores no interior dos seus planos sempre móveis e irrequietos. De facto, se já se privou a expressividade rápida e súbita do "close-up", se já houve a recusa absoluta de um acesso à emoção a partir do pormenor (seja ele facial ou outro qualquer) resta-nos apenas a presença declarada do corpo distante no meio da abrangência dura do plano. Estes corpos revelam-nos tudo o que é necessário: relações de poder, disposições mentais e psicológicas, mas acima de tudo, são esboços materiais das emoções. Por isso, estranhamente, na opção de divergir, dispersar e borrifar os sentimentos (até de os recusar, em certa medida) Somai volta a encontrar essa emotividade de um modo completamente original e severo. Eis mais uma obra, a todos os níveis, arrebatadora.



Darkness in the Light (2001) de Kei Kumai: *
Uma boa mensagem não resulta necessariamente um bom filme. No caso, poder-se-ia dizer que as intenções de Kei Kumai até eram nobres e a crítica dos mass-media como entidades continuamente responsáveis na culpabilização de gente inocente podia ser vista como uma resposta à esquizofrenia mediática que os inesperados ataques de gás do culto Aum Shinrikyo trouxeram à sociedade japonesa nos meados dos anos 90. No entanto, Darkness in the Light é demasiado massudo, pouco engenhoso e recorre exageradamente à explicação e a diálogos fastidiosos que lá vão puxando a intriga mas pouco mais fazem. No final, não temos muito mais do que um enredo e uma estética telenovelesca com propósitos mais elevados. Os propósitos, infelizmente, mereciam um tratamento bastante melhor.



Torch Song (2001) de Isao Yukisada: **
Um homem acaba por contaminar negativamente a relação de duas amigas. Os trios amorosos costumavam ser matéria para os realizadores pink desconstruirem o papel tortuoso que cada membro interpreta na relação amaldiçoada por não ser completa e totalizante. Essas obras são conhecidas por tornarem misteriosos, arrogantes e inacessíveis os homens e virarem-se para as reacções e sentimentos das mulheres, essas muito mais contrastadas e "humanas". Honestamente, Isao Yukisada está na pista desta estética, não exagerando em nada no ritmo da história (deixando escorrer o tempo), e concentrando-se apenas nos seus três personagens, abrindo, portanto, o drama doméstico a desenlaces mais imprevistos (um deles, dispensável). Neste seu quarto filme, que antecede Go, exercício que iria marcar definitivamente a sua carreira, há alguns problemas de durabilidade e algumas cenas parecem ser excessivas, já que não avançam em quase nada a história nem acrescentam qualidades ou detalhes aos personagens. Sabemos que, como filme independente que é, a importância reside na atmosfera, mas mesmo esta poderia ter poupado uma certa repetição.



A Chorus of Angels (2012) de Junji Sakamoto: *
A recorrência ao passado por via de flasbacks é um mecanismo que tem de ser usado com cuidado e  cepticismo. O novo filme de Junji Sakamoto (realizador que, apesar de surpresas desagradáveis, já foi responsável por um punhado de obras-primas), como tantos outros, confia em demasia num esquema diegético esclarecido e revelado pelo pretérito e como tal, não consegue livrar-se de um dramatismo excessivamente planeado e coreografado, ver até mesmo postiço. Também é uma pena que a cinematografia de Daisaku Kimura tenha sido usada para filmar as paisagens gélidas de Hokkaido e nunca chegue a dar uma verdadeira intenção à câmara, um poder que poderia cortar com o sentimento entediante da excessiva duração.



Happiness Come On (2012) de Daisuke Nakamura: ***
No cinema japonês, sempre houve a tendência de representar as forças miraculosas da maternidade, que é o mesmo que dizer, todo o instinto romantizado de abnegação e sacrifício feminino. Nos anos 50 os Haha-mono alcançaram uma popularidade avassaladora, sendo essa fixação prova de que, parafraseando Ian Buruma no seu estudo Behind the Mask, a sociedade japonesa esconde secretas e profundas raízes matriarcais. O primeiro filme de Daisuke Nakamura é interessante na medida em que joga constantemente com o papel moral da mãe, papel que durante anos se manteve intocável e inexpugnável: a maternidade é a condição mais purificada de uma mulher. Poderíamos até ir mais longe. Quase nunca o cinema japonês ousou filmar a maternidade de forma tão disfuncional e, ao mesmo tempo, tão carinhosa. Daisuke Nakamura executa aqui um primeiro filme interessante, repleto de momentos cómicos e tocantes. Em Happiness Come On, por mais chocante que seja a irresponsabilidade materna, por mais politicamente incorrecta e indelicada que seja a relação entre filho e mãe (e o poder e a responsabilidade são aqui invertidas), resta sempre um sentimento de que há coisas eternas. Afinal, para se ser mãe não é necessário ser-se santa.



Petal Dance (2013) de Hiroshi Ishikawa: ***
Não consigo deixar de estabelecer um paralelo entre o falecido Jun Ichikawa (com "c") e este nosso Hiroshi Ishikawa (com "s"). Os dois realizadores vieram da publicidade televisiva e ambos encaram a expressão cinematográfica como um acto de purificação e condensação do quotidiano, algo, em tudo contrário à linguagem material e objectificada da propaganda. Por isso, ambos lutam contra o artifício e contra a típica cadeia de causa e efeito psicológico, na esperança de erguer uma intimidade duradoura e insuspeita. Tanto Ichikawa como Ishikawa filmam o feminino recorrendo ao silêncio espaçado dos momentos, portanto, não esquecem jamais a clarividência discreta e as lições astutas dos haijin, os escritores de haikus. Tal como Eureka de Shinji Aoyama, este é um road-movie difuso e desintrincado, que não coloca nenhum propósito a não ser o da própria experiência de saborear a maresia, respirar fundo o ar que soa a piano e enxergar os céus acinzentados com aviões paridos. Petal Dance não é cinema para abrir os olhos, mas antes, cinema que os ensina a fechar. Nada mais, nada menos.

23/09/13

Fragmentos de 2013/09/23



Until We Meet Again (1950) de Tadashi Imai: ***
O pessimismo sempre passa pela admissão de um destino trágico (seja ele cósmico ou pessoal), à revelia dos sentimentos e esperanças dos personagens principais, desembocando, naturalmente, naquela maldição grega ao dia em que se nasceu. Em vários casos, Imai é um pessimista confesso. As suas histórias de amor ficam sempre pela não concretização, ficam-se unicamente pelas vontades jovens, intocáveis, puras. Eis o melodramatismo do pós-guerra que podia juntar na mesma encruzilhada impossível o amor por vir e a inexorável e constante violência dos bombardeamentos e de uma guerra sem fundamento. Neste sentido, Imai distancia-se ligeiramente da geração intitulada humanista, que via no pós-guerra uma oportunidade para o melhoramento individual (como Kurosawa muito ocidentalmente anunciava) ou colectivo (veja-se, por exemplo, a obra "vermelha" de Yamamoto). Aqui, a ocasião é nostálgica e não progressista. Não é que Imai não tenha feito os seus filmes felizes e esperançosos, balançados na estética do seu tempo, mas há nestas revisitações do tempo bélico uma enorme vontade de retratar o passado com contornos negros e fechados. Há aqui uma vontade de sofrer e fazer sofrer, provavelmente para poder superar a dor que ainda precisava de se cicatrizar.



An Inlet of Muddy Water (1953) de Tadashi Imai: ****
An Inlet of Muddy Water para muitos torna-se motivo de curiosidade ou ódio quando foi escolhido filme do ano pela conceituada revista Kinema Jumpo, ultrapassando Tokyo Story de Ozu, Ugetsu e A Geisha de Mizoguchi ou ainda A Japanese Tragedy de Kinoshita. Claro que, na altura, esta preferência por Tadashi Imai (cineasta hoje votado ao esquecimento) podia-se justificar pelo recorrente afinco social que percorre todo o seu cinema do pós-guerra. De facto, tanto a silenciosa aceitação de Ozu como a complexidade formal de Mizoguchi  pareciam não ser tão actuais para os críticos quando comparados com as narrativas eminentemente esquerdistas de Imai. Essa sua extrema actualidade e popularidade nos anos 50 foi uma das razões para no final dos anos 70, quando se voltou a descobrir os mestres clássicos no Ocidente, se desacreditar desta obra, apelidando-a de datada ou hipócrita. A verdade é que Imai, hoje e ontem, é um caso de preconceito. Antes mesmo de se experimentar a obra já nos debruçamos no lugar-comum de que um cineasta mais politicamente comprometido é um cineasta desonesto. Adaptando três contos de Ichiyo Higuchi (escritora cuja obra reflecte as dificuldades sociais da era Meiji) Imai filma dedicadamente a dicotomia latente entre pobres e ricos. Ela está bem presente nas três histórias, mas o mais fabuloso é que nunca incorremos no erro provinciano do maniqueísta, isto é, a pobreza não é meramente símbolo de bondade, nem tão pouco a condição de se ser rico significa corrupção e maldade. O mais precioso neste exercício - e talvez o que menos se fala - é a forma como a comunicação entre as classes se dá. Várias vezes, as diferenças de poder são tantas (veja-se a 2ª história, por exemplo) que os pobres não podem deixar de ver os ricos com o medo atroz da subserviência. No entanto, a união espiritual, mesmo que momentânea, é possível. No primeiro segmento, um condutor de riquexó encontra uma amiga de infância, mal casada mas abastada financeiramente. Este encontro, por acaso, no meio da noite que os envolve e torna iguais até o dia nascer serve como metáfora para o desejo utópico das classes se juntarem, apagando as diferenças que os identificam. No terceiro segmento, o mais longo dos três, temos a mais complexa leitura de personagens se quisermos categoriza-las unicamente segundo riqueza ou pobreza. O bordel, local onde a fusão de classes se dá (nem que seja relativo à diferença entre clientes e prostitutas), é o local privilegiado para se esbater as diferenças e vermos os personagens comunicar sem barreiras. Claro que Imai não esquece o passado triste da sua protagonista feminina, como que destinada a morrer com o homem mais perturbado pela pobreza e paixão. A violenta discussão que este homem tem com a sua esposa (símbolo de abnegação incondicional que caracteriza culturalmente a mulher da era Meiji) é dura e comprova, mais uma vez, o realismo não discriminatório de Imai, não desculpando os actos com a condição social. Podemos aqui falar de cinema social na medida em que este se dirige às classes com um desejo entristecido de união (talvez sabendo que ela não é possível meramente por vontades individuais), e jamais com o tom violento de um moralista.



Bronze Magician (1963) de Teinosuke Kinugasa: **
A penúltima obra de Kinugasa antes da sua reforma é estranhamente marcada por uma contenção e uma sobriedade raras para uma obra de estúdio. O seu estilo e ritmo são metade hipnóticos, metade mecânicos. Raizo Ichikawa interpreta Dokyo, um monge com poderes sobrenaturais que, na esperança de melhorar a vida das populações, cura a Imperatriz de uma doença bizarra e torna-se seu conselheiro. O filme gira em torno de intrigas políticas e pouco mais e é rodado quase na integralidade em interiores, oportunidade para se reforçarem  os ambientes claustrofóbicos da corte, lugar instável onde se decide constantemente quem deverá suceder ao trono. Tudo fica dificultado quando o mago misterioso, qual versão oriental de Rasputin, se perde de amores pela Imperatriz. Negando a sua promessa de castidade, os seus próprios poderes começam a desaparecer e os seus inimigos ganham espaço para lhe armarem a última cilada. Com esta premissa, Kinugasa não vai muito para além das suas obrigações como cineasta de estúdio. Alguns pormenores de iluminação podem destoar a estaticidade da câmara, mas no geral, Bronze Magician é apenas razoável.



Female Student Guerrilla (1969) de Masao Adachi: ***
Kiju Yoshida no seu Heroic Purgatory viu-se forçado a descrever os processos revolucionários como farsas simultaneamente absurdas e determinantes de realidade. De facto, a distorção temporal desse filme e todo seu finíssimo apetrecho estilístico fazia dos revolucionários espectros vampirescos, viajantes no tempo prontos a saltar de climas incertos e instáveis para a comodidade entediante do status-quo e vice-versa. Masao Adachi, que aqui antecede em dois anos não só essa premonição crítica de Yoshida como assustadoramente também o bem real destino e falência trágica do Exército Vermelho Unido, decide expurgar a sua narrativa alegórica (sempre escrevera assim os seus argumentos para Wakamatsu) com laivos de sátira e um corrosivo talento para tornar nobres e quiméricos os malogros e frustrações da juventude revolucionária no crepúsculo dos anos 60. O isolamento de cinco estudantes de medicina (dois rapazes e três raparigas) e a consequente criação de um estilo de vida sem discriminações ou barreiras sexuais - a ideia do amor-livre volta aqui a ressoar - era o modelo ideológico e a esperança do anti-estabelecimento derrubar as estruturas do poder, por mais insignificante que elas fossem ou aparecessem. Digamos que há nestes personagens o espelho, ainda que embrutecido, de uma geração. Mas, justamente, Adachi não deixa de lançar o seu veneno (que, em certo sentido e segundo outra interpretação, pode ser ainda visto como exercício de auto-crítica tão patrocinado pela cartilha revolucionária de esquerda) quando numa sequência mete um dos seus soldados da revolução dizendo para outro: "Já me esqueci porque andamos a fazer estas coisas. Espero lembrar-me quando perdermos". Outra cena, profética quanto à sina auto-destrutiva dos movimentos organizados de revolta, tinha de ser a final: corrosão no núcleo mais íntimo dos cinco personagens. A sua união quebra-se quando encontram o seu ser mais espontâneo, num certo sentido, o seu. Aí, só há lugar para o ódio. para o desprezo, enfim, vê-se surgir a esfera do "meu" e, por consequência, a dos "outros". Neste sentido, a condenação de Adachi só não vai mais longe porque era demasiado contemporânea aos eventos descritos. O seu final semi-aberto, entre o ridículo e o épico, parece revelar a postura de quem espera pelo futuro para verificar se os seus medos são mesmo imaginações vãs ou certezas de uma profecia turva.



Story of White Coat: Indecent Acts (1984) de Hidehiro Ito: 0
Podemos dizer que tal como na comédia, o género erótico muitas vezes escolhe mostrar deliberadamente os seus próprios mecanismos para encenar uma farsa que reenvia ao espectador sentimentos prazerosos. Na comédia, este estar-se consciente do humor, quando bem encenado, torna contagiante a experiência de se rir, porém, no caso do cinema erótico, não costumamos assistir a grandes melhoramentos. Quase todas as comédias atrevidas caracterizam-se por um espírito grosseiramente juvenil irritante, desfasado e completamente vulgar. No meio desta fragmentada confusão - sem qualquer personalidade ou intuito - nem chegamos a ver o desejo à distância. A consciência do ridículo e a paródia básica são as culpadas por ainda hoje se pensar que o erotismo é sinónimo de despreocupação e escape.

09/09/13

Fragmentos de 2013/09/09



Winter's Flower (1978) de Yasuo Furuhata: **
Aqui Ken Takakura interpreta o personagem estóico que sempre o caracterizou, desta feita com uma narrativa mais melancólica e contemporânea do que o habitual, resultado cruzado entre o milieu dos filmes yakuza mais modernos (inclusive com pequenas menções à câmara oblíqua e furiosa de Kinji Fukasaku nas cenas de acção) e um espírito decididamente mais clássico, ninkyo diga-se, de sacrifício em nome do dever. De facto, Furuhata sempre apelou às origens dicotómicas dos primeiros filmes de gangsters, onde se batalhavam constantemente os pares giri e ninjô, termos que significam respectivamente obrigação e humanidade. O personagem de Takakura, marcado para a vida com um assassinato irrecusável (porque feito por giri), encontra-se exactamente na mesma situação de tantos outros heróis do gênero: perda progressiva da humanidade que, à sua revelia, não se apaga absolutamente. Eis um personagem que parece distante do mundo e dos outros (que conexões emocionais consegue este personagem fazer excluindo a única ligação que o prende ao mundo dos sentimentos?) mas que tenta, ainda assim, humanizar-se. Winter's Flower não segue a linha de um Fukasaku, principalmente no que concerne à desistência total de contar histórias de gangsters através desse dualismo existencial giri-ninjô. O cenário moderno assim como o look anos 70 são só parte da fachada que faz emergir motivos mais clássicos, como o omnipresente Concerto para Piano de Tchaikovsky. A questão de Furuhata é a seguinte: como revitalizar o antigo no novo?



Nurse Diary - Wicked Finger (1979) de Shin'ichi Shiratori: *
Entrei curioso e saí totalmente desiludido. Não conhecia o trabalho de Shin'ichi Shiratori no seio da Nikkatsu no período quente da Roman-Porno, contudo, a sua estreia em 1973 fá-lo pertencer à primeira geração de realizadores, geração essa que foi, de longe, a mais interessante e a que mais filmes surpreendentes pôs cá fora. Como obviamente já se percebeu, por cada obra magistral saiam dez menos boas e vinte de fugir, e se Shin'ichi Shiratori não é hoje reconhecido como um mestre de excepção (como eram Kumashiro, Tanaka, Sone), então podemos perceber o motivo desse esquecimento. Nurse Diary, uma das muitas produções com enfermeiras, começou de maneira diferente, com uma protagonista com emoções verdadeiras (e não desculpas para a ver em situações menos próprias) e uma personalidade forte. Este tipo de personagem já em muitos casos demonstrou que na Roman-Porno faziam-se filmes a sério e que, muitas vezes, as cenas sexuais eram meramente um pretexto para se filmar tudo o resto. No entanto, Shiratori, ao escolher a comédia ligeira, destrói o que tinha construído e tudo vai ao sabor do espírito atrevido que mais não faz do que simplificar ou colocar os personagens em situações embaraçosas, sem grande piada e com muito mau gosto à mistura. Já tinhamos dito o mesmo acerca do estilo comichoso e kitsch de Koyu Ohara, e aqui Shin'ichi Shiratori não faz melhor nem pior.



Kamui Gaiden (2009) de Yoichi Sai: 0
Ainda não percebi qual a razão para o especialista excelso em cinema asiático Tony Rayns ousar proferir a típica afirmação de capa de DVD: "Kamui Gaiden é, talvez, o melhor filme de ninjas alguma vez feito." Afirmações deste género são sempre difíceis de concordar na integralidade (excepto o consenso à volta de um Citizen Kane, filme que até afugenta as novas gerações pela sua fama), mas concordar neste caso é uma impossibilidade lógica. Não tenho conhecimento das justificações de Rayns, contudo, confio na minha experiência como espectador. Como é que um filme tão desorganizado e desinteressante, tão pouco substancial nas suas imagens (com um narrador com estatuto de eucalipto, pois, seca todo o engenho imagético que restava) e tão preguiçoso nos seus efeitos especiais - este CGI de trazer por casa é bem pior do que os efeitos artesanais ou até os jump-cuts às vezes desastrados dos filmes de ninjas da década de 50 - pode, alguma vez, querer competir com títulos tão definitivos como Castle of Owls (1963) de Eiichi Kudo, Ninja Hunt (1964) de Tetsuya Yamaguchi, a saga Shinobi (1962-1966) da Daiei com Raizo Ichikawa, Samurai Spy (1965) de Masahiro Shinoda, entre tantos outros. Como é que um má adaptação do manga mítico de Sampei Shirato poderia augurar qualquer coisa de recomendável? Em suma, fujam disto como o diabo foge da cruz.



Household X (2010) de Koki Yoshida: ***
Dizer que a desintegração familiar é o tema predilecto dos cineastas japoneses do novo milénio não é grande novidade. A crescente modernização da sociedade parece desactualizar o modelo mais tradicional de família e não é estranho que o silêncio e a dormência sejam os mecanismos mais usados para descrever tal falta (e falha) de comunicação no seio que devia preparar todas as outras relações. A atrofia sensorial, a robotização dos gestos e a sonolência à beira da despersonalização são as características essenciais dos três personagens que compõem a família destroçada de Household X. Esta proposta com pouquíssimos diálogos e uma câmara que filma com proximidades desconfortáveis e invasivas mergulha-nos numa rotina insignificante à margem de qualquer afectividade, como se fosse o corolário não só da frustração colectiva como do falhanço do modelo burguês de organização social. Koki Yoshida não dá tréguas nem no final, onde normalmente se resolve alguma coisa (desde Pasolini que a coisa tem sido assim). Mas aqui temos apenas um silencioso grito de revolta abafado (ou não) pelos próximos. Este final aberto, então, tanto pode significar o retorno da rotina que mata lentamente ou uma mudança talvez mais significativa. Nenhuma pista nos é dada.



Torso (2010) de Yutaka Yamazaki: 0
Pouquíssimo há a dizer do talvez não tão aguardado filme do director de fotografia de Hirokazu Koreeda, Yutaka Yamazaki. A alienação a partir de objectos e o vício do irreal - temas que o próprio Koreeda já tinha pisado em Air Doll com resultados estranhamente insatisfatórios - são representados de uma maneira insignificante e dramaticamente esbatida, como se o pendor simultaneamente natural e realista fosse mero eufemismo de entediante. Com efeito, Yamazaki quer retirar crescimento dos seus personagens (duas irmãs) sem criar elos de ligação ou mudança consistentes. O que há então? Pay-off sem build-up, um erro clássico de má construção narrativa. Para além do mais, o tom monocromático que percorre todos os espaços não é o melhor exemplo de uma direcção de fotografia expressiva que tente replicar o interior psicológico, como seria de esperar de um filme que lida com solidão e ritos obsessivos em busca de afectividade. As intenções serão com certeza outras mas Torso não é mais do que um falhanço crasso, dispensável e aborrecido.



Let's Make the Teacher Have a Miscarriage Club (2011) de Eisuke Naito: **
O tema não é edificante. Um grupo de estudantes, liderado por uma rapariga que parece ter uma aversão visceral pela maternidade e consequente sexualidade, planeia uma sucessão de ataques à sua professora grávida. Eisuke Naito, um estreante que não consegue esconder algumas imperfeições técnicas de uma primeira longa-metragem (no caso, sonoras) filma todo este bizarro exercício com a calma, e até contenção de um sádico, reflectindo um tom bastante próximo da violência série-B. Pouquíssima explicação nos é dada, e quase toda a psicologia apagada - prova disso são as reacções, não raras vezes imprevisíveis ou descabidas dos personagens quando vítimas de agressões sem razão aparente. Apenas paira um sentimento de absurdo, para uns completamente gratuito e desnecessário, para outros (como eu) curioso, entretido e até humorístico de tão estranho.



Toilet & Women (2012) de Haruhi Oguri: **
O tema não é edificante, parte dois. Neste primeiro filme de Haruhi Oguri encontramo-nos sempre no fio da navalha. A sua protagonista atormentada, Narumi, que começara forte, impudica e primitiva como as heroínas sexuais e rudes de Shohei Imamura, não consegue fugir das suas memórias traumáticas: uma relação incestuosa com o seu irmão e um aborto doloroso, este último filmado de maneira completamente crua e desfetichizada. Talvez a fragilidade desta mulher à beira da loucura não pudesse ter sido mais posta a nu perante os espectadores, no entanto, este pessimismo traz consigo as chagas de um visionamento bastante desconfortável e até um pouco masoquista. Oguri não tem tento, nem parece poupar o voyeurismo da sua câmara, arrastando-a até aos infernos juntamente com esta mulher pecadora. A menção honrosa a Nanaha (a actriz que interpreta Narumi) não pode deixar de ser feita, mas tirando essa interpretação intensa e por vezes difícil de encarar, a película de Oguri está demasiado presa aos seus próprios desenlaces negros.



A Road Stained Crimson (2012) de Tetsuhiko Nono: *
Claramente inspirado pela estética rockeira de Toshiaki Toyoda (a saber, como exprimir pela linguagem punk temas e inquietações espirituais), este primeiro filme de Tetsuhiko Nono sofre de demasiados problemas para ser tanto um bom sucessor desse estilo tão idiossincrático como um filme independente, valendo pelo seu mérito próprio. Em primeiro lugar, certos exageros estilísticos não contribuem muito para o avanço da narrativa e são desnecessários. Por exemplo, os slow-motion (apurados em Toyoda até à máxima purificação e detalhe interior) aqui usados teimosamente em cada cena de maior actividade apenas quebram a sua fluidez e não conseguem, portanto, transpor para imagens a abstração estética do seu mestre. A música, por outro lado, consegue replicar alguma amargura já vista na obra do mesmo Toyoda (é impressão minha ou esta banda soa demais a Thee Michelle Gun Elephant?) mas quando determinadas cenas nos conseguem puxar para a intimidade dos dois personagens eis que a narrativa, fina como uma linha e geral ao ponto de nada trazer, não nos dá mais para sentir. Tetsuhiko Nono, então, não consegue fugir à lógica de revelações de última da hora (o twist de saber quem é o vilão deixou-me a ranger os dentes) e um duelo final desinspirado.