18/07/13

Fragmentos de 2013/07/18



Woman (1948) de Keisuke Kinoshita: ***
Terceira película rodada por Kinoshita em 48, Woman narra o encontro, mais ou menos conflituoso, de uma jovem dançarina com o seu ex-namorado, um ladrão procurado pela polícia. Os intentos mais universais do título "mulher" (a descrição interior, porventura, do que separa a mulher do homem, ou seja, o que faz uma mulher ser uma mulher) são rapidamente assimilados pela referência nas entrelinhas das consequências devastadoras da guerra no comum dos humanos. Não podemos esquecer o diálogo constituído imageticamente por planos fechados (mesmo quando todo o filme, excepto as cenas do comboio, decorre em exteriores) onde se diz que a guerra é culpada por tornar criminosas as crianças que cresceram nela. Assim, Kinoshita retrata os filhos da sua geração encenando uma parábola moral - o mal é uma escolha ou consequência, quais as possibilidades de reforma ou arrependimento? - que tinha um referente concreto na sua altura, e na verdade não foi nem o primeiro, nem o último a fazê-lo durante o pós-guerra. Mas o que aqui ressalta à vista são os jogos de campo contracampo, recortados de maneira bem fulgurosa (às vezes, relembrando mesmo um antepassado de Violence at High Noon, essa obra-prima de Nagisa Oshima), dando imagens intensas tanto de um conflito latente como de tentativas de fazer esquecer ou mesmo superar um passado negro. Apenas podemos fazer uma menção negativa: o final excessivamente pretensioso, direcionado para o público de maneira inútil e que nada traz para o resto do filme.



Live Today, Die Tomorrow (1970) de Kaneto Shindo: ***
Aqui temos uma tentativa evidente de Kaneto Shindo, o último dos clássicos e o primeiro dos modernos, se aproximar aos cânones estéticos e temáticos da Nova Vaga Japonesa (termo que embora tenha os seus problemas semânticos, caracteriza suficientemente as tendências e o gosto da época), a saber, um interesse pela marginalidade e isolamento, a atribuição de razões e uma causalidade, mediada pelo meio social para aparentes actos de violência gratuita e, finalmente, uma categórica inclinação para anti-heróis que carregam um destino trágico, cada vez mais próximo da morte. Escusado será dizer que à medida que Shindo tenta juntar todas estas peças, há um sentimento de incongruência permanente, devido principalmente a constantes saltos de registo e uma montagem por vezes confusa (algumas elipses vagas quanto à diacronia, aquele voz-off documental desnecessário, etc.) Todavia, estas imagens têm o poder de olhar de volta para nós. Carregam uma destrutiva fixação de asfixias (urbanas e campestres), como se o crime fosse desencadeado pela desoladora paisagem em torno do personagem e este fosse apenas agente passivo, sem qualquer tipo de escolha. Live Today, Die Tomorrow pode olhar para o seu protagonista com distância, mas quando o faz, é porque está a filmar atentamente o cerco à sua volta. Mais coerência narrativa e teríamos algo notável.



At River's Edge (2011) de Tetsuo Shinohara: **
Depois do sucesso da trilogia de Yoji Yamada, cada vez mais a escassa produção contemporânea de jidai-geki's (filmes de época) se vira para a mesma fórmula de encarar o universo dos Samurai: histórias contadas com um espírito zen letárgico, muitas vezes comprometidas em descrever o lado mais comezinho da rotina dos guerreiros, mas não esquecendo nunca a componente dos dilemas axiológicos que levam os personagens a optar pelo bushido ou pela humanidade. A obra literária de Shuhei Fujisawa, nesse sentido, tem sido o ideal para esta reformulação do género (distanciando os filmes de sabre do entretenimento puro dos anos 80) e portanto os três filmes de Yamada deram origem a tantas outras adaptações da obra de Fujisawa, levadas a cabo, por exemplo, por Mitsuo Kurotsuchi (The Samurai I Loved, 2005), passando por Hideyuki Hirayama (Sword of Desperation, 2010) e finalmente Tetsuo Shinohara (que antes deste At River's Edge, tinha já levado ao ecrã Yamazakura em 2008). Podemos, no entanto dizer, que a novidade da interpretação de um Twilight Samurai - que equilibrava bastante bem o pathos com uma sensação espiritual de tranquilidade - já se encontra gasta nestas últimas produções. A câmara recusa-se a tomar uma posição de relevo e a calmaria (por vezes uma linearidade comichosa) acaba por engolir o que poderia desencadear um questionamento dramático sobre o papel da ordem entre os Samurai e a obediência categórica ou não a uma autoridade superior. O que seriam dos chanbara dos anos 60 sem esta componente desconstrutiva? Não será a figura do guerreiro que quebra com a ordem feudal uma prova máxima de autonomia e sensibilidade? Pois bem, Shinohara apenas está interessado neste mundo antigo na medida em que o vê povoado por antepassados. Agora que os chanbaras precisam de uma revitalização, continuamos à espera de uma nova interpretação livre de modas e que nos volte a aproximar do Samurai como um contemporâneo nosso.


  
1,778 Stories of Me and My Wife (2011) de Mamoru Hoshi: *
Recentemente, o tearjerker made in japan tem sido pau para toda a obra no que a sucessos comerciais diz respeito. Todos os anos vimos eles aparecer no mercado, criando uma espécie de hábito sazonal, pronto a conquistar o mesmo público que, em frente do grande ecrã, deixa correr uma lágrima de tristeza ou de aflição. Na esmagadora maioria dos casos, os defeitos destas produções são exactamente os mesmos, pelo que não será estranho para o espectador assíduo ficar com uma espécie de sensação de déjà vu mesmo nas críticas que poderia fazer. Primeiro, assinalamos a falta de profundidade existencial quando, ainda por cima, o que percorre toda a acção é um sentimento de perda progressiva, que surge obviamente sob a forma de doença terminal, quase nunca explorado devidamente (aprenderíamos muito mais com Ikiru de Akira Kurosawa), a não ser para servir de dispositivo narrativo que coloca os personagens/ espectador debaixo de uma urgência e de uma tensão. Por outro lado, precisamente porque não há um fundo psicológico significativo, mas sucessivas repetições da certeza da morte que vêm com pés de lã, lentamente, (por norma estes filmes alcançam tempos indevidos, e este não é excepção), os tearjerkers funcionam como uma comédia ao contrário, isto é, estão constantemente a estimular a tristeza em nós, porém, se uma má piada é uma graça entre muitas, uma má tristeza deixa-nos irrequietos, frustrados, pior, sentimos que o engano prevalece na tristeza que nos queriam vender. Se o protagonista se desenvolver nessas repetições de perdas (como em Ikiru, mais uma vez) achamos ter encontrado um ritmo mais honesto, mas se se ele mantiver intacto, como um semi-espectador diante daquele que morre, apenas vemos choro fácil, um sentimento algo embrutecido de emoção. Porém, mesmo que Mamoru Hoshi ceda a estas fórmulas (que nos reenviam aos problemas do tearjerker misturado com o filme romântico, isto é, um filme cuja accção se joga entre dois personagens, um que observa a morte e outro que morre, etc.) e mesmo que esta história seja baseada em factos verídicos - não descurando, portanto, a autenticidade - , podemos dizer que o ponto mais forte neste fraco exercício é aquele que o prende ao seu filme passado, o excelente University of Laughs. Tanto num como no outro, há uma descrição dos poderes medicinais (mágicos?) da escrita, quer ela funcione como questionadora das barreiras políticas e sociais como acontecia em University, quer ela sirva de mezinha e curativo para a esposa moribunda neste 1,778 Stories. Hoshi realçou nestas duas películas não só o poder que a literatura têm de aproximar as pessoas, mas também o seguinte facto: o artista só cria quando deparado com um obstáculo (a censura, a morte, etc.).



Flying with the Gold (2012) de Kazuyuki Izutsu: *
Desde os westerns até hoje, o cinema americano está repleto de assaltos a bancos. Porém, essa tradição de filmes que giram em torno de um plano perfeito, constituído propositadamente para roubar a uma larga escala, parece não ter muitos ou nenhuns equivalentes japoneses. Izutsu foca grande parte da sua atenção nas relações entre os seis personagens, tentando desenvolver aquela que é a mais valia do género, a saber, vermos como os participantes do assalto lidam uns com os outros e como cada um desempenha uma função específica que permite consolidar o plano. Da teoria à prática vai um salto, e quase sempre as coisas não correm bem. Aí, também para o espectador é relevante assistir à personalidade de cada um quando confrontado com esses problemas logísticos. Se Flying with the Gold começa de maneira intrigante, dando espaço para conhecermos cada "peça" do xadrez, eventualmente uma catrefada de desvios, momentos irrelevantes e inexplicáveis à narrativa principal abrandam bastante o desenlace, esse momento esperado por todos. Quando, enfim, chegamos ao assalto, percebemos que o plano parecia bem melhor orquestrado do que a execução - em termos cinematográficos, óbvio. Juntamente com isto, temos ainda uma revelação sobre o passado de um dos protagonistas que levanta tantas questões - e surge de forma tão inesperada, sem qualquer fundamento a não ser uma parca explicação - que se torna ridículo levarmos a sério o que quer que seja daí em diante. Apesar das boas interpretações, este ainda não é o filme "à americana" que os japoneses tanto parecem querer ver.



Key of Life (2012) de Kenji Uchida: ****
É impressionante como no decorrer das mais de duas horas de duração, nem uma gota de sangue verdadeiro é usada, mas isso não impede Kenji Uchida de orquestrar um engenhoso e irrepreensível exercício, situado a meio caminho entre uma comédia de enganos e filme de suspense em que basta uma carta fugir do seu lugar para todo o baralho ruir e provocar o caos. A relação do personagem impreparado para a vida, ou melhor, uma vítima das suas circunstâncias (uma das marcas definitivas dos argumentos de Uchida) com o obsessivo hitman amnésico chega a ser responsável pela maior parte das gargalhadas, porém a imensa dedicação e amor por todos personagens (inclusive os mais secundários) faz deste Key of Life um dos melhores filmes do ano passado e um motivo para a produção japonesa se orgulhar de ainda ter argumentistas criativos e realizadores com uma visão própria, sem pedir empréstimos nem a romances escritos por outros nem a remakes sem sentido que sobrevivem apenas pela nostalgia das obras originais.

03/07/13

Fragmentos de 2013/07/03



A House in the Quarter (1963) de Tomotaka Tasaka: ***
Algumas considerações sobre a diferença entre este A House in the Quarter e o já visto neste espaço May Love Be Restored, ambas adaptações do mesmo romance de Tsutomu Minakami, Gobancho Yugiriro. Primeiro, destaca-se a diferença óbvia de cinematografia que nos leva àquela discussão velha de nos anos 60 se cuidar muito melhor da imagem do que nos anos 80 (aqui temos cinema, no outro tínhamos televisão). Tasaka está também, ao contrário de Yamane, muito mais interessado em aprofundar os sofrimentos e o percurso emocional de Yuko, a jovem prostituta vendida pela própria família, do que, por exemplo, desenvolver o romance ou as motivações do seu amante, um aprendiz de monge frágil e gago. Mesmo o acontecimento do incêndio do Templo do Pavilhão Dourado, consagrado em May Love Be Restored numa cena longa e que era o grande acto de revolta do monge, aqui foi reduzido a um plano distante da luminosidade do fogo e do fumo na rua do quarteirão do prazer. Nesta versão de Tasaka, o que conta é, portanto, a descida trágica de Yuko que espera doente pelo amante que não verá mais. Postas as coisas assim, podemos dizer que aqui não perdemos o foco da heróina e que, não é de todo necessário mostrar uma relação amorosa para o espectador poder sofrer pela sua falta. Apenas necessitamos de um personagem forte.



Decapitation of an Evil Woman (1977) de Yuji Makiguchi: ***
Na continuidade (i)lógica da saga ero-guro de Teruo Ishii para a Toei ou das loucuras barrocas de Norifumi Suzuki, Yuji Makiguchi mantêm-se um fiel sucessor da estética do exagero, da saturação e do paroxismo, sendo também daquele tipo de cineastas que consegue abusar dos tiques grindhouse (série-B, como desejarem) sem com isso tornar piroso e, a passos, menos profundo o seu ofício de narrador. Devedor grato da estética manga, Makiguchi demonstra-nos uma era Meiji aos pulos e em erupção, anacrónica (veja-se o uso da banda-sonora moderna) - brilhante até nos delitos mais graves - e repleta de rebeldia trágica. Vale-nos, no que às interpretações diz respeito, Terumi Azuma que arrecada uma belíssima prestação como mulher criminosa que irá ser executada pelo homem que amou. A cena final quebra com o ambiente folgado do resto do filme, introduzindo uma conclusão digna de respeito. Não julguemos, portanto, o livro pela capa.



Zero (1984) de Toshio Masuda: *
O filme bélico japonês passou por muitas transformações ao longo do tempo. Porém, se essa mutabilidade não foi alheia às flutuações históricas nem tão pouco à derrota marcante na 2ª Guerra - o que fez que as produções propagandistas nos anos 40 rapidamente dessem lugar a um desencanto visceral e anti-militarístico ao longo dos anos 50/60 - o facto é que nem sempre os cineastas japoneses olharam para a participação na 2ª Guerra com essa negação categórica de alguns mestres (Imai, Ichikawa, etc.) Até já referimos por aqui uma vaga de filmes sentimentais sobre a prestação dos soldados e a sua inexorável morte pela nação: a Toho produzia estas películas nos anos 60 como se fossem ninkyos modernos. A arte bélica costuma, pois, focar-se no soldado e não na guerra, mas no caso do Japão temos sempre de falar de uma obrigatoriedade fáctica (o peso da derrota real) que reencaminha a fantasia à realidade pessimista, portanto, mesmo os filmes injustos - como este Zero - , historicamente imprecisos e que glorificam o espírito colectivo têm sempre de se conformar à hecatombe no desenlace. Num certo sentido, mesmo o romantismo associado à bravura dos soldados diz respeito a uma estética de derrota, na qual se salvaguarda, apenas na imaginação, o ideal do herói para todas as circunstâncias. Toshio Masuda, que passou os primeiros cinco anos da década de 80 a filmar grandes épicos sobre as batalhas emblemáticas do século XX japonês, está completamente embrenhado neste tipo de avaliação confusa. Os seus pilotos são a personificação deste género de herói fabricado para o público, com a distância devida para apagar a realidade desumana da guerra. Aqui, o trágico só pode vir pela derrota e não pela guerra, o que revela uma mensagem fraca e circunstancial.



The Hidden Festival (1998) de Taku Shinjo: **
O cinema japonês não deixou nunca de representar o misticismo primitivo de comunidades deslocadas do tempo e da modernidade, apegadas a uma ritualística basilar, transmitindo assim aos invasores urbanos um regresso ao passado e às origens. Imamura, Terayama e outros viraram-se para a antropologia filmada para resgatar reencontros particulares, com uma dimensão hierática (no caso do segundo) e socialmente crítica (no primeiro). No entanto, Taku Shinju, que ficou mais conhecido por ter rodado o polémico e ultra-conservador filme kamikaze For Those We Love, não está interessado na dimensão revitalizadora do primitivismo deste género de sociedades e portanto apenas vê cabimento na linguagem policial, como se essa componente mística mais não fosse do que apenas confronto letal com os que são estrangeiros a ela. Shinjo sabe filmar as tremendas paisagens de Okinawa mas a pouca destreza no pay-off narrativo (que acaba com uma cena final circular bastante anedótica) não deixa este Hidden Festival sair da razoabilidade.



Weekend Blues (2002) de Kenji Uchida: **
A primeira longa-metragem esquecida de Kenji Uchida (modesta quanto aos meios, mas já marcada pela inventividade narrativa) demonstra muito bem a destreza humorística - sem necessidade de ser totalmente deslocada de sentido ou absurda - que seriam características do realizador, nomeadamente em A Stranger of Mine (2005). Tal como nesse filme, a comédia serve para aprofundar os dilemas de um personagem falhado, cuja epopeia (mais ou menos verosímil) se vai construindo à medida que a acção prossegue e vai revelando contornos mais sórdidos. Temos de sublinhar a prestação do novato Takashi Nakagiri, que interpreta um pobre salaryman simpático, mas sem grande jeito para ser protagonista. Alguns momentos, relativos a essa incapacidade de liderar a trama, são divertídissimos, mesmo que a narrativa por vezes ande à deriva (algo que estaria totalmente limado no seu próximo filme).



11.25: The Day He Chose His Own Fate (2012) de Koji Wakamatsu: **
Não nos enganemos: esta versão da história dos últimos dois anos do lendário Yukio Mishima não é um exercício audaz, convulsivo e multiforme (à imagem e semelhança do seu protagonista) como Paul Schrader nos tinha presenteado há quase trinta anos. Assistimos, antes, a uma ablação integral, tanto estilística (parece que Wakamatsu teve de se conter radicalmente na forma para não ser obrigado a tomar qualquer posição política) como diegética (qual o lugar para o Mishima escritor nesta adaptação?) Parece mesmo que a apresentação quadrada e a secura imagética (repetição de planos, uso entediante de uma linguagem cinematográfica simples para facilitar o discurso, etc.) serve apenas para demonstrar, por A mais B, as razões que levaram Mishima a tomar de assalto o quartel da polícia e cometer harakiri juntamente com alguns membros da sua milícia, os Tatenokai. Grande parte do filme concentra-se na relação do escritor com os seus compatriotas, ressalvando apenas o Mishima político que foi sempre o menos interessante e o mais odiado, mas também estranhamente respeitado, pelos esquerdistas - Wakamatsu, ele próprio, não consegue sair deste enquadramento. Um uso tão cru das suas motivações políticas e sociais sem o complemento devido com a sua obra e o modo como "espada e caneta se juntariam numa só acção definitiva" acaba por ser uma leitura demasiado literal, demasiado bruta para fazer justiça à complexidade inacreditável do pensamento de Mishima. Aqui ficamos pelo ideal conservador, e não problemático do samurai, como se o autor estivesse petrificado e fosse digno de contemplação por causa do distanciamento histórico. Eis a nossa declaração de intenções: preferimos quando a arte ressuscita os autores e não quando os torna parte do passado e da indagação histórica (Mishima de Schrader versus Mishima de Wakamatsu).