31/03/14

Fragmentos de 2014/03/31




Wolves, Pigs and Men (1964) de Kinji Fukasaku: ****
Wolves, Pigs and Men é essencialmente um Fukasaku maduro avant la lettre, um objecto incrível e moderno que não só antecipa algumas das suas imagens de marca futuras (falo sempre a este propósito da câmara à mão mexendo-se obliquamente nas cenas rodadas em exteriores) como desenvolve tendências minimalistas que iria fatalmente deixar de parte no seguimento da sua carreira. Logo no genérico a condensação estilística e a síntese imediata de informação dão o mote para o que virá a seguir. Observamos, através de uma catadupa heteróclita de freeze-frames, sons jazzísticos e das sobreposições denunciadoras e agressivas de imagem, o crescimento marginal de um grupo de pobretanas que resolvem evadir-se do bairro da lata em que habitam. Fukasaku resume magistralmente a complexidade dos três evadidos (Ken Takakura é um deles) em pouquíssimos minutos, auxiliado apenas por fortes e sensoriais sequências que parecem explodir para fora do ecrã enquanto os vemos entrar no mundo negro das ruas criminosas de Tóquio. Um plano para roubar largas somas de dinheiro e drogas é executado pelo personagem de Takakura e outro tipo que subira na vida com ele e ambos pedem auxílio a um grupo de seis vadios liderado pelo seu irmão mais novo, interpretado por Kinya Kitaoji. O plano não corre como desejado e o medo de traição faz que os dois chefes enclausurem os seis jovens num armazém abandonado, localizado no bairro da lata em que todos cresceram. Esta situação dá a possibilidade a Fukasaku de desenvolver uma tensão particular entre os novos gangsters (os lobos) e os habitantes pobres do bairro (os porcos) pensada a partir do décor e da iluminação: várias vezes as sombras, os planos aproximados e o carácter rudimentar e primário do velho armazém impõem a soturnidade destes personagens presos na sua condição e dispostos a tudo para saciarem a ganância desmedida e, principalmente, os desejos vãos de mudar de vida. Neste sentido, ainda há espaço para a piedade (algo que seria apagado nos seus exercícios yakuza mais desprendidos e brutais da década de 70) quando todos esses esforços são detidos friamente pelos verdadeiros mafiosos, varrendo assim qualquer esperança e heroísmo que pertenceria a qualquer expectativa normal de visionamento. Portanto, o plano final do terceiro irmão, Rentaro Mikuni, andando sem rumo enquanto os residentes do bairro o apedrejam funciona como libertação das nossas vontades como espectadores. Enfim haja justiça no meio da lixeira.



Professional Killers (1973) de Yusuke Watanabe: ****
Quando vi pela primeira vez Outlaw Cop escrevi algures que se tratava do único filme do seu realizador, Yusuke Watanabe. Com muita surpresa constato que estava enganado: Watanabe tem ainda uns quantos títulos para comprovar e se todos os outros filmes tiverem a qualidade deste Professional Killers então temos mais um mestre totalmente desconhecido! Este é o primeiro capítulo de uma trilogia filmada para a Shochiku onde um grupo de três assassinos fazem justiça pelas próprias mãos, pois só aceitam matar aqueles que consideram ameaças para a sociedade. Um velho misterioso (So Yamamura), um ronin (Koji Takahashi) e um médico acupunturista (Jiro Tamiya) trabalham juntos para resolver um caso de sucessão de uma família rica. O que mais me fascinou foi o anti-sentimentalismo destes personagens, prontos sempre a matar silenciosa e profissionalmente, passando por cima das suas emoções e intuições. Este seu heroísmo atípico contraria muito o tempo melodramático que sempre se deu às películas de acção japonesas em que o protagonista devia ser, acima de tudo, um modelo ético. Uma vez que não há espaço para romances, moralismos sem violência, ou mesmo encontros significativos (o facto genial de o médico Baian nunca ter a certeza se o alvo do seu assassinato era mesmo a sua irmã há muito desaparecida), Professional Killers é sóbrio nas emoções, mas explosivo na estética: não há um plano que não esteja recheado de cores e induza a ambientes festivos. Os próprios assassinatos são filmados sem qualquer peso e a câmara, sempre bem posicionada, cativa-nos o olhar sem qualquer esforço. É, de facto, um exercício muito entretido, bem realizado e com aquela economia dramática que tanto aprecio. Esperemos que as outras duas sequelas sejam tão espantosas como esta!



Traffic Jam (1991) de Mitsuo Kurotsuchi: ****
Há uma cena que sempre me deu calafrios na espinha no Week End de Jean Luc Godard. Arriscar-me-ia a dizer que a cena vale o filme. Falo, como não podia deixar de ser, daquele memorável e endiabrado traveling onde se mostra um engarrafamento interminável. É o típico exemplo do plano-síntese, num só rasgo, num só momento, conseguimos contemplar o inferno das famílias burguesas quando têm de passar o tempo juntas, com os seus passatempos administrados a conta-gotas e feitos no meio da confusão e anarquia higiénica dos seus semelhantes. Talvez esse plano ressoe em mim dessa forma porque nele via algumas das minhas férias e aquela tristeza de se querer descansar no meio da mais desconfortável e absurda das confusões. Godard, que queria corroer o modelo comportamental da burguesia não previu que, na viragem do novo milénio (mesmo muito antes, decididamente já em 1991) esse modelo tinha-se apoderado de todas as famílias, criando uma espécie de fatalismo: por mais que nos esforcemos, por mais que sejamos diferentes, acabamos no trânsito das nossas férias e esperanças. Este inferno que veio da ânsia de escapar ao trabalho, de rever a nossa casa, de refrescar a humanidade. Portanto, o filme de Mitsuo Kurotsuchi, quando segue uma família em viagem à terra natal que perde os seus valiosos cinco dias de férias presa no trânsito, reflecte esse terreno comum e irrecuperável das nossas vidas. Ele descreve o périplo melancólico de uma família (burguesa, mas quais não são?) com uma lucidez tocante. Não a quer destruir, agredir ou castigar (talvez perceba que essa guerra já está decidida) mas identificar-se com a sua dor, os seus risos, a tal ânsia de escapar momentaneamente. Traffic Jam é, ainda hoje, uma maravilhosa e sensível meditação sobre a vida moderna.



The Hit and Run Family (1992) de Toshiyuki Mizutani: ***
Já o dissemos muitas vezes. Ao contrário da maior parte das cinematografias nacionais, na japonesa encontramos um género quase único de filmes que se concentram nas peripécias das famílias burguesas. De todos os exemplos que me ocorrem, a maior parte são comédias, ou pelo menos, resultam em cenas meio absurdas, risíveis ou caricaturadas onde, por exemplo, os papéis de cada membro se confundem e, por momentos, tudo acaba em anarquia e de pernas para o ar. Uma coisa é certa: os cineastas usaram o tema da família (e ainda usam, veja-se o caso recente de Like Father, Like Son de Hirokazu Koreeda) para denunciar a perda de contacto, a atrofia dos afectos e um certo sentimento de "estar-se sozinho, acompanhado" que veio imiscuir-se no seio mais básico e primário da sociedade. Nesta proposta de Toshiyuki Mizutani, que ecoa outros dois grandes filmes sobre famílias à beira de ataques de nervos - The Family Game e The Crazy Family -, a mais insólita das situações proporciona a união de uma casa dispersa e anteriormente sem projecto comum. O chefe de família atropela uma jovem e foge sem lhe prestar ajuda, o que desencadeia cenas hilariantes, salpicadas de humor negro, nas quais se tenta, por exemplo, esconder e desmantelar a prova do crime, o carro, ou ainda se tem de ludibriar a vizinha bisbilhoteira e com uma imaginação muito fértil. O sentimento que estão todos implicados cria a sensação de uma missão comum e mesmo que, às vezes não se apoiem, esta família redescobre-se nas situações más, naquelas que, justamente, escapam ao quotidiano burguês, horizontal, propício ao egoísmo. É exactamente a mesma mensagem de todos os outros filmes (inclusive a de um caso mais recente, Tokyo Sonata de Kiyoshi Kurosawa) e há cenas que são recorrentes a todos eles: o jantar de família no meio do caos, o gosto em estropiar os objectos caseiros, mas principalmente, a necessidade de rebentar com o próprio lar onde se vive, que conduz à verdadeira catarse familiar, aqui encarada como libertação das amarras sociais e espaciais (porque também o filho liberta o lagarto em Okinawa, esse lugar paradisíaco onde a família homeless ri com o horizonte pela frente).



Birthright (2010) de Naoki Hashimoto: 0
Uma rapariga é sequestrada e mantida em cativeiro durante cinco dias por uma estranha que espia obsessivamente a sua casa e a sua mãe. O distanciamento da câmara de Hashimoto revela-se, desde logo, problemático. A duração dos seus planos é demasiado longa e o que se passa neles é insuficiente, quer em termos emotivos, quer na continuidade da escassa e pastelona narrativa: esta impede-se a si mesma de avançar, parando nas mesmas acções e nos mesmos espaços, meditando sobre coisa nenhuma e aborrecendo-nos várias vezes. Há ainda uma tentativa frustrada de dar profundidade psicológica à agressora, engendrando uma trama típica de vingança e conflituosidade familiar mas podemos dizer que, no final, a brutalidade previsível da última cena, ainda que bem filmada, não nos transmite quase nada. E é difícil isso acontecer, visto que passámos mais de hora e meia com as mesmas duas personagens, silenciosas, no negro e a violentarem-se por razões doentias, robóticas e dificilmente relacionáveis. Era preciso mais, muito mais para toda esta formalidade austera de tão discreta encaixar num sentimento de compaixão ou injustiça. Era preciso que as boas ideias de enquadramento pudessem ser mais do que boas ideias de enquadramento, pudessem relacionar-se invariavelmente com os seus personagens. Birthright é, assim, um filme cujas falhas tapam uma certa coragem de não se ser óbvio.



Shady (2012) de Ryohei Watanabe: ***
Vê-se que o estreante Ryohei Watanabe quis dar tudo por tudo no seu primeiro filme Shady. Hoje em dia esta energia numa primeira realização é a excepção à regra e podíamos mesmo considerar este exercício ousado. Ousado, em primeiro lugar, porque mistura arriscadamente uma naturalidade na descrição das primeiras amizades femininas (quase documental e reminiscente de um Shunji Iwai memorável, Hana and Alice) com a desrealização e a queda no abismo dos pesadelos que tal relação, por ser perigosamente exclusiva, por ser resgatada à revelia da opressão das colegas, e por ter contornos confusamente sexuais, acarreta. O "horror" presente na segunda metade é, em tudo semelhante, ao Audition de Takashi Miike: não é o desconhecimento transposto numa exterioridade outra que nos assusta, mas sim os medos e as intuições que povoam as relações do dia-a-dia e que se desbloqueiam descontroladamente à nossa frente em forma de avalanche macabra e interior. Watanabe, portanto, está no bom caminho. Veja-se como a sua montagem nos engana e brinca com as nossas expectativas (por exemplo, somos levados a acreditar que a narrativa é contada retrospectivamente pela protagonista adulta), veja-se como Misa e Izumi são personificadas pelas duas jovens, também estreantes, mas já talentosas actrizes, Mimpib e Izumi Okakura, note-se, finalmente, como há aqui um esforço digno de realização expressiva e jamais a cedência à estética independente ("ausência de truques, porque o cinema não é espectacular") que povoa as mentes dos jovens realizadores japoneses e não só. Fixem o nome. Pode dar que falar no futuro.



Why Don't You Play In Hell? (2013) de Sion Sono: **
É impossível assistir ao novo filme de Sion Sono e não se deixar ser engolido pela ironia corrosiva que nele habita. Esta comédia histriónica, exagerada e irreal parece ser apenas uma versão "pipoca" do estilo assaz particular (para mim, irritante) e cada vez mais saturado do cineasta para alguns tão aclamado. Por exemplo, deixaram-se aqui aqueles momentos tão constrangedores do seu cinema onde a componente super-dramática estava associada a irregularidades morais e comportamentais que desembocavam em reacções histéricas acompanhadas com música erudita. Sono, todavia, continua a ser dos cineastas mais doentia e inadequadamente extrovertidos, quer dizer, há no seu estilo a ânsia barroca de sair dos eixos, gritar a plenos pulmões (quantas vezes, nos últimos anos, vemos esta cena repetida nas suas películas?) e descrever mundos fantasiosos onde a lógica tem pouquíssimo poder. Desde os primeiros minutos até ao final propositadamente ruminante e ridículo, Why Don't You Play In Hell? obriga-nos a entrar no mundo do cinema. Não há nada nele que nos transmita a mínima gota de realidade: tudo é uma projecção insana, resultando no jogo de "lugares-comuns" do cinema popular (yakuza, artes marciais?) e há mesmo oportunidade para a citação (a música do mítico Battles Without Honor and Humanity ou até mesmo o famoso pan das nuvens de Throw Away Your Books, Rally In The Streets) e reciclagem (para alguns, o defeito de se repetirem músicas de outros dos seus filmes confirma esta intenção de Sono auto-consciencializar a sua plateia da farsa entretida que estão a ver). Porque se trata apenas de cinema, de mentiras, também esta paródia hiperbolizada e over the top aos filmes de yakuza serve de elegia fúnebre ao cinema feito em película. Sono, portanto, não demonstra grandes sinais de nostalgia pela velha tecnologia e arte (embora subscreva, à sua maneira irregular e estranha, a tremenda energia louca de uma rodagem) e não hesita em criar autênticas contradições propositadas de imagem quando chegamos ao fim. De facto, o desprendimento artístico, ver paródia meta-crítica, da orgia CGI lá para o final chega a causar confusão (e indigestão estética) pela forma bruta e declarada como está apresentada, criando os tais jogos que equivalem o filmado à ilusão, mesmo quando no próprio filme o excesso e a artificialidade idiota dos efeitos especiais seja parte da realidade. Há quem consiga ver esta sequência sem ironia? Há quem pense que esses efeitos queriam simular o real? Para provar que os 35mm morreram (e com eles, todos os astros por si captados), Sono teve de chacinar o seu próprio filme com tecnologia moderna para talvez mergulharmos de cabeça na sua fogueira foliona e alarve. Seja guilty-pleasure ou não, surpreendentemente esta brincadeira resulta melhor do que o esperado.

17/03/14

Fragmentos de 2014/03/17



Date Masamune - The One-Eyed Dragon (1942) de Hiroshi Inagaki: **
Segundo algumas informações controversas, esta versão das lendárias aventuras de Date Masamune julgou-se durante muito tempo destruída pelas forças da ocupação americana lideradas por MacArthur que, como se sabe, efectuaram uma censura às claras de todas as formas de arte ligadas à mentalidade militarista, em parte causadora da guerra. A pergunta que se faz é a seguinte: porquê intentar contra o filme de época (o jidai-geki) se nele não havia propaganda política declarada? A resposta pode parecer insatisfatória, porém, para os censores americanos, o herói Date Masamune aparecia demasiado intolerante (se, por exemplo, compararmos à versão humanizada de Toshikazu Kono rodada posteriormente em 1958) e, acima de tudo, sempre insatisfeito com as batalhas que travava como se fosse o paradigma para os oficiais que perdiam a sua vida no Pacífico, porque também eles não podiam descansar enquanto não ganhassem a guerra. Num diálogo revelador com o seu pai, Date advoga mesmo o argumento de que, para se chegar a um estado pacífico, tem de haver vencedores e vencidos e jamais tal situação se pode resolver com tratados ou conversas amistosas. A narrativa inclusive chega-lhe a dar razão quando o seu pai é traído quando dialogava com os inimigos para a paz futura. Seguramente, a irascibilidade e bravura de Date é aqui levada ao extremo: mergulhamos no ambiente bélico sem qualquer desenvolvimento de personagem, e do herói apenas ficamos com uma rijeza impenetrável, uma personalidade distante e mitificada, relacionável apenas na idolatração. Para os americanos, Chiezo Kataoka, presença seráfica e insondável, devia surgir como um fantasma dos estranhos soldados japoneses, capazes de se sacrificar para vencer os inimigos, custasse o que custasse.



Eight Men to Kill (1972) de Shigehiro Ozawa: **
A diversão provocada pela terceira e última instalação do caçador de prémios Shikoro Ichibei roça, por várias vezes, o guilty pleasure. Se toda a série era resultado de um cruzamento entre o filme série-B de época japonês e algumas imagens de marca dos western spaghetti (veja-se a inclusão das várias armas de fogo, a música e a própria vestimenta de Ichibei: muito mais cowboy do que ronin), então este Eight Men To Kill é o mais distintamente corbucciano da trilogia. Quando surge, a violência é sempre mutiladora, sangrenta, gráfica e mesmo o nosso herói é bastante menos astuto e muito mais circunspecto, contido, até mais bruto do que, por exemplo, na versão de Eiichi Kudo, a que mais se distancia do espírito grind-house instalado por Shigehiro Ozawa. É verdade que não só uma certa suspensão de juízo é necessária para assimilar certas cenas (o romance forçado entre Ichibei e Omon e certas omissões psicológicas que tornam alguns personagens desnecessários) como também a energia abranda quando chegamos à mina de ouro, porém, o final explosivo da película resgata todo o poder selvagem, embora de certo modo previsível, que se vinha anunciando: o eclipse, as cores, a azáfama da montagem, os sucessivos "duelos" finais a cavalo e a pé... Tal como em The Great Silence, o massacre final manifesta a absurdidade dos esforços bondosos (a salvação da criança em troca do ouro). Mas, ao contrário do desespero fechado de Corbucci, a injustiça oficial, perpetrada pelos funcionários cínicos da justiça serve aqui para fazer-se justiça pelas próprias mãos, sendo Shikoro Ichibei, mais uma vez, o herói invencível que assiste ao aniquilamento de todos pela ganância. Uma tardia e entretida fusão de referências.



Gekisatsu! Nihon no Kinbaku (1980) de Mamoru Watanabe: *
Gekisatsu! Nihon no Kinbaku (usamos o título japonês pois nunca houve tradução comercial) inscreve-se na longa tradição dos filmes eróticos (pink) com gostos anarquistas. Digo anarquistas e não anti-bélicos, porque na caricatura grotesca da masculinidade chauvinista dos oficiais da Segunda Guerra Mundial não encontramos objecções palpáveis à guerra, mas uma desculpa para questionar a simbologia do exército e deitar tudo pelos ares numa fantasia que tudo tem de chocante e subversivo. Subversão é mesmo a palavra correcta para descrever este baile de máscaras desagradável, onde o sadismo podia muito bem ter uma dimensão metafórica de como as bestas da guerra só conseguem viver sendo agressores e escolhendo vítimas, mesmo que estas sejam as suas mulheres ou familiares. Watanabe, que com Koji Wakamatsu e Kan Mukai é um dos "pais" do pink, serve-se tanto da violentação e da exploração feminina que a força da denúncia da última mulher perde muito do seu poder desejado. Para além disso, esta não deixa de ser uma película altamente difícil de se ver, misturando o arrojo estético e académico de algumas passagens (a voz soturna do Imperador Hirohito na rádio enquanto a violação decorre ou a footage documental intervalando as cenas sexuais) com mau gosto anarca, demasiado raivoso e ofensivo.



Tattoo (1982) de Banmei Takahashi: ****
Produzido e distribuído pela Art Theatre Guild, Tattoo é um filme que respira o ar soturno do seu tempo. Em primeiro lugar, porque não esconde a atmosfera apática e desencantada, muito particular de uma década que se virou obsessivamente para a representação de boçais e auto-destrutivos anti-heróis. Se é difícil fixar esse gosto japonês pelos rufias niilistas que acendem um rastilho caótico de brutalidade à sua volta (todo o cinema pink os têm e o que são, por exemplo, os filmes de Oshima sem eles?), não será excessivo dizer que a partir de outro filme selado pela ATG em 1976, Youth Killer do estreante Kazuhiko Hasegawa, que contava a crónica de um parrícida a monte, os jovens realizadores de então sentiram a necessidade de não romantizar a figura do forasteiro, retirando as chancelas provocatórias do passado, isto é, a dinamite política, portanto, apenas contando, da forma mais dramática possível, o seu périplo criminoso. No caso, a escolha por este género de narrativa (que teria sucessores estritamente temáticos, logo no ano seguinte, com The Mosquito on the 10th Floor, ou ainda no genial Ryuji dos respectivos estreantes Yoichi Sai e Toru Kawashima) permitiu a Banmei Takahashi saltar do cinema erótico para o sucesso comercial, reunindo duas excelentes interpretações (Ryudo Uzaki e Keiko Sekine, casada com o realizador), uma banda-sonora introspectiva que faz racord com as imagens melancólicas e, finalmente, um protagonista tão estranhamente indomável que revela uma ingenuidade perigosa, absurda e até piedosa.



The Island of Love (1982) de Paulo Rocha: ****
A Ilha dos Amores (usei acima o título inglês por razões editoriais) é uma colagem "modernista" luso-japonesa, épica no tom e na forma de dirigir (actores e público) caracterizada por manifestar uma teatralidade declarada que incita a jogos complexos de distanciamento e proximidade, estando esses jogos (operáticos e com auto-consciência, comprove-se isso com a omnipresença dos espelhos nos décors) sempre sujeitos ao crivo de uma vontade de tudo englobar e nada deixar fora: as referências literárias eram óbvias na intersecção de estilo clássico e forma moderna (veja-se a divisão em cantos, estrutura cara a Camões, Chu Yuan, Ezra Pound) e o uso extremo e sem concessões do plano-sequência (já lá vamos) comprova essa tara holística e paradoxal de ligar os diversos mundos interiores e terrenos, como se o resultado final tendesse para uma espécie de "Descobrimentos cinematográficos", a união de um mapa mundo cerebral e imagético. A proposta radical e abstracta de Paulo Rocha não tem grande equivalente na história do cinema (não tem percursores nem deixou sucessores): trata-se de uma leitura mística cruzada, repleta de mistérios, paradoxos e racords culturais, da vida vadia, atribulada e elegíaca (como a caracterizou Paulo Rocha) do cônsul de Portugal em Kobe, Wenceslau de Moraes, um dos únicos escritores do Ocidente que permaneceu no arquipélago até falecer, falecimento esse envolto numa certa bruma e descrito aqui duas vezes com autêntico despudor dramático. Por entre uma Lisboa em convulsão política, uma Macau a prometer encantos mais a extremo Oriente, Kobe, lugar solene e hierático da primeira morte (aquele plano fatal e fatalista do espelho!) e Tokushima, cidade melancólica onde dará o último suspiro cercado por uma solidão devastadora, Moraes é perseguido pela perda e morte das mulheres que o acompanham. Todo o acesso que temos à sua vida é povoado por representações estranhas (às vezes rebarbativas: Luísa Neto Jorge), cantos, estrofes, intervenções corais demasiadamente rígidas, cuja presença constante e propositada por vezes entra em conflicto directo com a arte narrativa mais tradicional (que também está cá). Mas perdoamos os excessos barrocos (perdoamos o excesso barroco, circular, neo-romântico, que é o filme e que caí no erro de enunciar vários inícios, como vários fins) em virtude do apuramento da linguagem estritamente cinematográfica. Posso mesmo dizer que não conheço nenhum realizador ocidental que tenha ido ao Japão filmar "à japonesa", sem acrescentar ou tirar quaisquer vírgulas ou pontos. Também aqui Rocha cumpre bem o seu programa megalómano e camoniano da união do globo terrestre, filmando como um outro sem deixar de ser ele mesmo, e também aqui se respira em cada plano e cada movimento de câmara resulta de um processo altamente minucioso, coreografado e radical de "montagem" dentro do próprio plano (Rocha diria: "A diferença entre os planos-sequência da Ilha e do Amor de Perdição talvez venha do uso sistemático da collage no interior dos meus planos: o olhar da câmara unifica fragmentos descontínuos, os espaços vazios entre as constelações"). Com efeito, cada plano-sequência desta obra épica mas descentrada (como bem a classificou João Bénard da Costa), é um universo. Na recusa dos planos-médios ou aproximados e na destruição do corte temporal introduzido pelo campo contracampo (aqui, como em Mizoguchi, one scene is one shot), Rocha esculpe os espaços, sublinhando o seu poder de imersão, de mergulho e encantamento sensorial. As direcções do espaço e a corporalidade prevalecem sobre a psicologia e a emoção, num sentido muito estrito e fornecem interpretações geométricas do estado de espírito dos personagens. Percebemos o significado das palavras de Rocha quando dizia ao seu director de fotografia: "Pense que este é o único plano da nossa vida, o nosso testamento"; ou escrevia: "era preciso que cada enquadramento fosse o único enquadramento possível". Todo este atrevimento, arrojo e força está inscrito no filme a ferros, quer se goste, quer não.



Moraes' Island (1984) de Paulo Rocha: ***
Sobre este A Ilha de Moraes falou-se, várias vezes, de uma nova apropriação do mesmo material que tinha dado origem à Ilha dos Amores e que aqui se transfigura, por força das circunstâncias e porque,  parafraseando José Manuel Costa, o fim da Ilha dos Amores dá lugar ao início da de Moraes, num documentário itinerante à procura do lado mais intimista do escritor radicado e morto em Tokushima no Japão. Mais pessoal em todos os sentidos da palavra (com Paulo Rocha a servir de intermediário, sendo ele a verdadeira presença "portuguesa" nas trocas de palavras nipónicas e macaenses), a gentileza e finura das imagens, esse exotismo bruxuleante, evoca o lado mais terra-a-terra tanto do escritor como do próprio cineasta. Em termos estéticos dá-me mesmo a impressão que Paulo Rocha aprendeu bem a lição dos documentários rodados para televisão de Shohei Imamura (ele próprio realizaria um sobre esse "espírito livre", como lhe chamaria): o mais importante é saber conversar, não filmar. Por isso, é comovente seguirmos outra vez o percurso de Moraes pelo Oriente a partir das imagens, mas decididamente a partir das palavras: quer dizer, as várias interrogações deixadas por Rocha e as respostas dos testemunhos preciosos de familiares portugueses, especialistas da obra e conhecidos japoneses ainda vivos. Neste sentido, A Ilha de Moraes é um precioso documento sobre o cruzamento de duas culturas e a sua tentativa de diálogo permanente, sendo esse diálogo aperfeiçoado na imagem do amor que prenderá Moraes a Tokushima, prestando culto às duas mulheres que profundamente amava. Até a monja japonesa apanha desprevenido o nosso Paulo Rocha quando lhe pergunta se já teve alguma vez uma Ko-Haru. É nessa recusa divertida em responder que reside a identificação secreta com o "mendigo ocidental" Moraes. Por muito que recuse a comparação, Moraes para Rocha é tanto um ideal como uma realidade, realidade que lhe está nos poros.



KT (2002) de Junji Sakamoto: ***
KT, mais conhecido por Killing the Target, é um thriller político de Junji Sakamoto que conta o rapto e sucessiva tentativa de assassinato de Kim Dae-Jung, uma das grandes vozes de oposição ao regime norte-coreano nos anos 70. É raro haver espécimes destes no cinema japonês, pois a Guerra Fria e sobretudo as tensões políticas entre as Coreias e o Japão não costumam ser tema para blockbusters já que se trata sempre de um tema delicado que só nos filmes mais "artísticos" parece ter cabimento. Porém, Sakamoto sabe sempre o que faz e engendra um drama sólido, repleto de personagens (e saber relacioná-las é uma vantagem) e que é arriscado o suficiente para denunciar um certo cinismo daqueles que vencem a história e, portanto, oficialmente a escrevem. Para além de tudo isto - e apesar das inspirações formais americanas - o filme revela um cuidado imagético de destaque, criando uma tensão não só através da montagem, mas principalmente pela composição dos planos e pelas prestações inspiradas, desde Koichi Sato a Yoshio Harada. Estes últimos encarnam algumas das contradições mentais dos anos 70, nomeadamente a crença, num caso, e relutância noutro, em actos radicais que sirvam para mudar qualquer coisa, nem que seja algo apenas estritamente pessoal. Com efeito, KT abre com a notícia do suicídio de Yukio Mishima e, para alguns historiadores, esse acontecimento marca um dos momentos de maior desilusão e dissolução política entre os japoneses (o outro seria a cobertura televisiva do famoso assalto ao chalé pelo Exército Vermelho Unificado). Tanto o jornalista descrente como o ex-membro da segurança secreta - presos numa encruzilhada internacional onde são chamados a desempenhar os seus papéis - encarnam dois lados da barricada, dois lados que são reacções sociais, especifiamente japonesas, depois do ocaso da radicalidade política no final dos anos 60. Um dirá "Os lobos sobrevivem, os porcos morrem!", o outro contesta: "Os porcos sobrevivem, os lobos morrem!"



Backwater (2013) de Shinji Aoyama: ***
Quando vemos os anos através do cinema, quando o inescapável fica captado na celuloide (o sotaque de Humphrey Bogart e o preto-e-branco de Casablanca, etc. dizem mais respeito aos anos 40 do que qualquer reconstituição dessa época), podemos chegar à conclusão de que as gerações deixam uma impressão digital latente nos objectos cinematográficos, pois o ar dos tempos fica sempre fixado no produto final (o cinema, neste caso como a fotografia, não se expande, mas fica preso numa materialidade qualquer). Pois bem, Backwater representa uma tentativa de reconstituição completa  de um tempo, a saber os anos 80 numa pequena aldeia japonesa. Digo (reconstituição) completa porque há aqui uma atenção detalhada ao cinema que se fazia por volta dessa altura, um cinema visceral, carnal e efervescente onde a violência e o sexo eram faces da mesma moeda e a sua presença revelava uma certa preferência por situações e coisas radicais. A reconstituição de Aoyama desse tempo nesta espécie de coming of age story em tonalidades negras, não é meramente reciclagem, pois para captar a angústia "real" de um crescimento cercado por demónios, houve a necessidade de capturar a irrealidade da forma cinemática, ou seja, procurar as intensidades semelhantes de câmara, algo que resulta de um processo de inspiração qualquer nos velhos filmes eróticos que abundavam nas salas de cinema da altura e misturavam o disfuncional com o quotidiano e raras vezes descuravam a estética e as heroínas determinadas. Também é notório o modo como Aoyama, pela primeira vez na sua carreira, aborda tão abertamente - e obscenamente, não se poupando a detalhes - o tema da sexualidade, nunca o tornando desejável mas sublinhando, através dele, o mal-estar do protagonista e a extrema e inesperada personalidade das três mulheres presentes na acção dramática. Podemos dizer que Backwater vive desta reconstituição da época, do cinema e da psicologia. Para bem e para o mal, não parece termos entrado no novo milénio.

09/03/14

Fragmentos de 2014/03/09




The Fort of Death (1969) de Eiichi Kudo: ***
Segundo capítulo da trilogia Bounty Hunter, The Fort of Death é um caso paradigmático do cinema de Eiichi Kudo. É paradigmático porque por mais que se filmem diferentes películas de sabre, está sempre em causa, no seu cinema, uma sensibilidade profundamente contestatária onde os mais fracos se insurgem contra os maldosos e injustos senhores feudais (os famigerados daimyo), mas essa componente política não é motivo de grandes meditações sobre o poder nem inclinações partidárias de pendor comunista. Muitas vezes a simplicidade da visão maniqueísta deu lugar a grandes exercícios de estilo, onde contava para a arte de narrar a inteligência e a estratégia dos líderes na guerra - efectivamente, Kudo adora encenar a guerra dos pequenos contra os que detêm o poder e, principalmente, a maneira como os pequenos, através da perícia e da esperteza, ou mesmo altos valores de sacrifício, vencem ulteriormente os grandes (veja-se a esse aspecto The Thirteen Assassins). Por outro lado, a propensão para dar vida às orgias de sangue e violência dos campos de batalha, sem grandes concessões e com uma frieza e desapego que antecedem Kinji Fukasaku (relembre-se aquele final aterrorizador de The Great Duel), torna este The Fort of Death um filme a meio-caminho entre a encomenda (visto tratar-se de uma sequela) e a obcecada e incansável fantasia de um realizador que sempre adorou explodir com os antagonismos sociais e recriar revoluções ferozes onde a justiça política e moral seria, enfim, concretizada. Realço só a excelente cena de luta do nosso herói improvável com os ninjas ao serviço do daimyo: ritmo, humor, acção e suspense, todos medidos com exactidão de mestre.



Wicked Priest 2 - Ballad of Murder (1969) de Takashi Harada: *
Durante muito tempo pensou-se que as bobines da  segunda aventura do monge Shinkai tinham sido destruídas ou, simplesmente, os donos do estúdio desconheciam o seu paradeiro. Recentemente, Wicked Priest 2 foi exibido num canal de televisão japonês, contradizendo a fama que já tinha virado mito para os especialistas. Como acontece muito com os filmes perdidos ou indisponíveis, há uma certa tendência para romantizar não só todas as informações envoltas em bruma que os fizeram ficar indisponíveis, como o próprio filme em causa. Pois bem, este é daqueles casos em que qualquer romantismo engana. Ballad of Murder é inteiramente formulaico (neologismo incorrecto segundo os linguistas que, ainda assim, me atrevo a usar) onde vemos o nosso monge a fazer as mesmas coisas, sem tirar nem pôr, que fez e faria nos próximos filmes, sem contar com o típico pretexto narrativo da criança abandonada que o herói tem de cuidar (não nesta saga, mas muitas vezes usado na série Zatoichi). Takashi Harada subia na cadeira de realizador, e permaneceria por mais dois filmes e um spin-off de um dos personagens, e quem tenha visto outros episódios da série poderá perceber o padrão em causa: Shinkai viaja para uma terra e encontra problemas com yakuzas, Shinkai relaciona-se com mulheres, Shinkai defronta os seus inimigos e o arqui-rival Ryotatsu. O problema, como sabemos, não é o da existência de um esquematismo próprio da industrialidade das obras de estúdio, mas o de esse esquematismo estar completamente voltado para a repetibilidade e esterilidade criativa. Portanto, podíamos dizer que quando Ballad of Murder não demonstra um academismo bocejante, revela um sentido de humor idiota, até ofensivo (aquela cena "romântica" com a freira é de fugir) e um final aberto que não teria qualquer referência ou resolução no filme seguinte.



My Way (1974) de Kaneto Shindo: *
A cedência de um morto não identificado a uma universidade pelas autoridades suscita reacções de injustiça da viúva, contrafeita a resolver legalmente a questão nos tribunais. Podemos dizê-lo sem grandes rodeios: My Way é um Shindo menor. Trata-se de um filme longo, desordenado e frio. Nele não encontramos o primor da arte de contar histórias, nem somos seduzidos pelas poderosas imagens de outrora. Narrativamente, o filme é também uma trapalhada e nunca parece encontrar razão dramática consistente, caindo tanto na dispersão (pequenas situações sem cabimento nenhum, como os passeios do fotógrafo pelo meio rural abandonado) como no mais entediante e massudo dos formalismos. Com efeito, lá para a segunda parte mudam-se as coordenadas e recria-se o filme típico de tribunal, filmando extensivamente (e sem qualquer instinto de editing) cada depoimento com os mesmos movimentos de câmara e perguntas em tudo semelhantes. Essas cenas deixam-se arrastar indefinidamente, demonstrando um desapego emocional que dificulta qualquer extroversão ou proximidade, prova de um certo "objectivismo" redutor que Shindo parece querer captar na execução da discussão da lei, sem pensar na grande escala das coisas e de como isso afecta negativamente o pathos do seu filme. Da mesma maneira, podíamos dizer que o excelente rol de actores não têm aqui grande matéria prima para pegar. É caso para dizer que quando falha o general, falham também os seus soldados.


  
Melodies of a White Night (1978) de Sergey Solovyov e Kiyoshi Nishimura: ****
Aparentemente já vimos esta história contada em vários sítios. Dois estranhos, de nacionalidades diferentes, entregam-se à suprema emoção de um amor impossibilitado pela realidade, um amor discreto mas maior do que a vida. Mesmo antes de haver cinema, já contávamos o triste fado dos amantes separados pela geografia (excusado será referir Madame Butterfly de Puccini) mas foi, em grande medida, Alain Resnais (descance em paz) que imortalizou em Hiroshima, mon amour o amor pela outra cultura insondável, que compreendia resistências fenomenológicas e históricas deveras fascinantes (como é possível o acesso ao outro, à história, se o outro e a história não somos eu?). Depois desse caso franco-japonês de sucesso, uma sucessão de filmes sobre relações amorosas impossibilitadas pelo tempo e o espaço ergueu um novo tipo de arquétipo dramático conjugal. No entanto, neste trabalho a quatro mãos (duas japonesas e duas russas) não ousaríamos atribuir grandes predicados simbólicos ou abstractos. Trata-se da captura estonteante, ilustrada quer por meio de imagens miraculosas, quase místicas quer pelas melodias inebriantes do grande compositor Isaac Schwartz, de como amamos e de como nos perdemos na necessidade de amar, a despeito da impossibilidade, a despeito do real. Algo que sempre foi muito importante nestes filmes era a sensação de estranheza familiar, diria até, a descoberta de arrebatamento no estrangeiro por via das molduras arquitectónicas, as cidades silenciosas que devolvem o olhar ou ainda os espaços naturais que envolvem os amantes. Os locais foram sempre relevantes: são a corporeidade espiritual do amor. E de facto, quando amamos não somos alheios aos espaços que percorremos, nem somos indiferentes à extrema beleza marmórea que imediatamente cerca esses locais assim que começamos a amar, a percorrer com o ser amado o milagre do mundo existir. Há uma pessoa que liga todos os recortes, desde a sensibilidade japonesa à russa, passando pela materialidade das paisagens à intensidade lírica das sensações e acabando numa quase religiosidade pagã (sim, a que advém da beleza): Georgi Rerberg, o único director de fotografia que conheço capaz de filmar milagres.



Owl (2003) de Kaneto Shindo: **
Na altura com 91 anos respeitosos, Kaneto Shindo contava as peripécias de uma mãe e filha que, ao estarem cercadas pela pobreza e pela fome, descobrem, através da sedução fatal, um modo de contornar as dificuldades da vida rural e sonhar com uma vida melhor. Owl demonstra sistemicamente uma economia dramática (até mais da segunda metade, ficamos com a sensação de ver a mesma situação em loop constante) e um refreamento de meios (apenas um local durante todo o filme) que, mesmo demonstrando um arrojo inquestionável e uma tentativa ainda imperfeita de nos concentrarmos apenas nas interpretações, não nos deixa de distanciar da verossimilhança e realidade destas personagens, enclausurando-as sempre nas mesmas situações (excepto no final explosivo) e deixando o espectador numa claustrofobia, demasiado circular, que funcionaria melhor se não fosse total. Tal como acontecia no seu Onibaba, Shindo parece estar interessado em aprofundar, mais uma vez, as relações entre estado de necessidade e capitalismo, sendo que o capitalismo parece surgir como consequência natural de um estado primitivo qualquer de carência e desespero até extravasar no caos da ganância desenfreada, sistemática e no clássico (latino) "homo homini lupus" - isto porque não há riqueza sem exploração (sem alienação, diriam os marxistas). Talvez também o abandono do sector primário em virtude da terciarização que tudo absorve (no caso, a prostituição, que é essencialmente um serviço) possa ser mais um factor preponderante nesta análise onde os homens estão sempre um pé atrás das mulheres e, estão sempre abertos a dançar na roda viva da carnalidade e do engano, se virem que têm consentimento.



A Bao A Qu (2007) de Naoki Kato: ***
Intrigante mas críptico, A Bao A Qu é um filme formado somente a partir de enigmas (imagéticos e sonoros) e a sua narrativa desdobra-se em vários caminhos e encruzilhadas, tornando-se difícil acompanhar lógica e escorreitamente o que verdadeiramente se passa (não só é difícil perceber o que distingue vigília de sonho, mas o que é imaginação activa, construida, do protagonista escritor e o que é imaginação passiva, agressiva, inesperada e atroz). Julgo que essa suposta confusão no fluxo da gramática cinematográfica, que se transforma em gramática onírica ou sonhada, ganha terreno sensorial e intuitivo justamente por apostar nessa exploração livre de constrangimentos reais ou meramente consensuais. Portanto, Naoki Kato na sua estreia revela-se um experimentalista nato: quão difícil é ver um cineasta capaz de arriscar tanto, principalmente quando se trata de uma primeira obra! Outra particularidade fascinante é a precisão cirúrgica dos planos sequências, não demorando nem mais nem menos do que deveriam demorar. O seu uso rememora-nos, por vezes, Tsai Ming Liang e também neste caso assistimos a um preenchimento da atmosfera pesada e misteriosa pelo tempo real - desconfortável, cuja ficção não consegue ludibriar - esse tempo que cria tensão e estranheza simplesmente por existir. Os dois grandes planos-sequência do filme (um, relativo à conversa com a familiar de uma vítima do homicida e outro relativo à discussão conjugal em casa com as luzes apagadas) são prova do labor minucioso e temerário de Kato, preocupado sobretudo em instigar o "império dos sentidos" do espectador.



Off Highway 20 (2007) de Katsuya Tomita: **
Tive a oportunidade de falar um pouco com Katsuya Tomita, cineasta que esteve presente no ciclo Harvard-Gulbenkian. Tentei explicar-lhe que vejo no seu cinema (já tinha sentido isso com Saudade, a sua obra mais polida) uma certa raivosidade que rememora, sem sombra de dúvida, o início de carreira de Sogo Ishii. Se não fosse feito em 2007, a era do digital, diria mesmo que este Off Highway 20 parecia mesmo ter sido filmado em 8mm, formato que a geração de Ishii tanto usou nos anos 80 para declarar a sua personalidade e independência criativa. Também aqui, Tomita serviu-se de um orçamento reduzido e usou os seus amigos para contracenarem numa ficção que vai beber muito ao documentário, principalmente pela exposição excessiva que a câmara acaba por alcançar, explorando repetidamente e sem pudor, os abusos do consumo de droga num ambiente urbano completamente lancinante onde pouco há a fazer senão cair na miséria de uma rotina que não exclui os negócios sujos, a prostituição e o pachinko, como não poderia deixar de ser. Quando Tomita ouviu o meu paralelo com Ishii esboçou um sorriso e agradeceu-me, exclamando de seguida: "punk, punk, punk"! E, afinal, o que serão aqueles planos finais da auto-estrada néonizada, repleta de solidão e tristeza (mas marcada pelo betão frio da civilização) senão gritos indignados contra vidas cercadas pela auto-destruição permanente? Não é Tomita, com todas as suas dificuldades amadoras, um dos poucos herdeiros actuais desse cinema punk, contestatário e violento, que vem desde Sogo Ishii a Hisayasu Sato e devolve um olhar enojado para as cidades claustrofóbicas e cerradas sobre si mesmas? Talvez a única diferença que separa essa geração da de Tomita é que na sua perspectiva não há actos de violência relevantes que justifiquem ou dêem voz à revolta de se estar enjaulado. Apenas somos testemunhas da lenta morte destas tristes existências urbanas.



Abraxas (2010) de Naoki Kato: ***
A insólita busca interior de Jonen, um monge budista com passados de rockeiro auto-destrutivo, leva-o a resgatar a paixão antiga que quase o arruinava no passado, a música. Querendo organizar um concerto na vila onde se situa o templo onde trabalha, Abraxas descreve a preparação desse evento e como ele é relevante para o monge zen encontrar mais uma pista para o caminho da iluminação. Este podia ser o mote para uma comédia deadpan, à japonesa, onde situações estranhas com premissas estranhas reinam, porém Naoki Kato executa tudo com uma elegância, respeito e charme de realçar. O que nos toca mais aqui é a dignidade dada à procura sincera de um caminho espiritual. Por mais estranho que seja a maneira como o construimos e os meios que arranjamos para o tornar possível, esse caminho afigura-se fulcral para dar (ou desconstruir) o significado da nossa vida. Embora esteja nas entrelinhas, toda a busca interior inicia-se com o fenómeno da inquietação - e não é, justamente, a vida de rockeiro um modo brusco e juvenil de instalar o desencanto e a revolta, tudo traduções básicas (mas que germinam outras) da tal inquietação? Essa continuidade do rock despersonalizado e barulhento com a anulação quieta do ser está bem presente no diálogo inteligente de Jonen com a sua esposa: "o barulho não é aquilo que as pessoas não conseguem ouvir, mas é o ser (self) ele mesmo, portanto, é necessário fundir-nos com esse barulho para o self ficar cercado e anular-se". Mas enganem-se aqueles que pensam poder ver algo excessivamente abstracto. Há uma economia conceptual ao longo de toda a experiência e Kato apenas se serve de algumas reflexões para credibilizar o nosso simpático protagonista - reflexões que não são só budistas, mas também gnósticas, aliás, de onde é originário o título do filme que dá, por sua vez, conteúdo ao último diálogo entre Jonen e a sua esposa. Não é por acaso que o budismo sempre foi a religião mais aberta ao sincretismo, pois o seu foco é sobretudo interior e nele abrem-se diversas possibilidades de se chegar ao mesmo destino por caminhos diferentes.