17/03/14

Fragmentos de 2014/03/17



Date Masamune - The One-Eyed Dragon (1942) de Hiroshi Inagaki: **
Segundo algumas informações controversas, esta versão das lendárias aventuras de Date Masamune julgou-se durante muito tempo destruída pelas forças da ocupação americana lideradas por MacArthur que, como se sabe, efectuaram uma censura às claras de todas as formas de arte ligadas à mentalidade militarista, em parte causadora da guerra. A pergunta que se faz é a seguinte: porquê intentar contra o filme de época (o jidai-geki) se nele não havia propaganda política declarada? A resposta pode parecer insatisfatória, porém, para os censores americanos, o herói Date Masamune aparecia demasiado intolerante (se, por exemplo, compararmos à versão humanizada de Toshikazu Kono rodada posteriormente em 1958) e, acima de tudo, sempre insatisfeito com as batalhas que travava como se fosse o paradigma para os oficiais que perdiam a sua vida no Pacífico, porque também eles não podiam descansar enquanto não ganhassem a guerra. Num diálogo revelador com o seu pai, Date advoga mesmo o argumento de que, para se chegar a um estado pacífico, tem de haver vencedores e vencidos e jamais tal situação se pode resolver com tratados ou conversas amistosas. A narrativa inclusive chega-lhe a dar razão quando o seu pai é traído quando dialogava com os inimigos para a paz futura. Seguramente, a irascibilidade e bravura de Date é aqui levada ao extremo: mergulhamos no ambiente bélico sem qualquer desenvolvimento de personagem, e do herói apenas ficamos com uma rijeza impenetrável, uma personalidade distante e mitificada, relacionável apenas na idolatração. Para os americanos, Chiezo Kataoka, presença seráfica e insondável, devia surgir como um fantasma dos estranhos soldados japoneses, capazes de se sacrificar para vencer os inimigos, custasse o que custasse.



Eight Men to Kill (1972) de Shigehiro Ozawa: **
A diversão provocada pela terceira e última instalação do caçador de prémios Shikoro Ichibei roça, por várias vezes, o guilty pleasure. Se toda a série era resultado de um cruzamento entre o filme série-B de época japonês e algumas imagens de marca dos western spaghetti (veja-se a inclusão das várias armas de fogo, a música e a própria vestimenta de Ichibei: muito mais cowboy do que ronin), então este Eight Men To Kill é o mais distintamente corbucciano da trilogia. Quando surge, a violência é sempre mutiladora, sangrenta, gráfica e mesmo o nosso herói é bastante menos astuto e muito mais circunspecto, contido, até mais bruto do que, por exemplo, na versão de Eiichi Kudo, a que mais se distancia do espírito grind-house instalado por Shigehiro Ozawa. É verdade que não só uma certa suspensão de juízo é necessária para assimilar certas cenas (o romance forçado entre Ichibei e Omon e certas omissões psicológicas que tornam alguns personagens desnecessários) como também a energia abranda quando chegamos à mina de ouro, porém, o final explosivo da película resgata todo o poder selvagem, embora de certo modo previsível, que se vinha anunciando: o eclipse, as cores, a azáfama da montagem, os sucessivos "duelos" finais a cavalo e a pé... Tal como em The Great Silence, o massacre final manifesta a absurdidade dos esforços bondosos (a salvação da criança em troca do ouro). Mas, ao contrário do desespero fechado de Corbucci, a injustiça oficial, perpetrada pelos funcionários cínicos da justiça serve aqui para fazer-se justiça pelas próprias mãos, sendo Shikoro Ichibei, mais uma vez, o herói invencível que assiste ao aniquilamento de todos pela ganância. Uma tardia e entretida fusão de referências.



Gekisatsu! Nihon no Kinbaku (1980) de Mamoru Watanabe: *
Gekisatsu! Nihon no Kinbaku (usamos o título japonês pois nunca houve tradução comercial) inscreve-se na longa tradição dos filmes eróticos (pink) com gostos anarquistas. Digo anarquistas e não anti-bélicos, porque na caricatura grotesca da masculinidade chauvinista dos oficiais da Segunda Guerra Mundial não encontramos objecções palpáveis à guerra, mas uma desculpa para questionar a simbologia do exército e deitar tudo pelos ares numa fantasia que tudo tem de chocante e subversivo. Subversão é mesmo a palavra correcta para descrever este baile de máscaras desagradável, onde o sadismo podia muito bem ter uma dimensão metafórica de como as bestas da guerra só conseguem viver sendo agressores e escolhendo vítimas, mesmo que estas sejam as suas mulheres ou familiares. Watanabe, que com Koji Wakamatsu e Kan Mukai é um dos "pais" do pink, serve-se tanto da violentação e da exploração feminina que a força da denúncia da última mulher perde muito do seu poder desejado. Para além disso, esta não deixa de ser uma película altamente difícil de se ver, misturando o arrojo estético e académico de algumas passagens (a voz soturna do Imperador Hirohito na rádio enquanto a violação decorre ou a footage documental intervalando as cenas sexuais) com mau gosto anarca, demasiado raivoso e ofensivo.



Tattoo (1982) de Banmei Takahashi: ****
Produzido e distribuído pela Art Theatre Guild, Tattoo é um filme que respira o ar soturno do seu tempo. Em primeiro lugar, porque não esconde a atmosfera apática e desencantada, muito particular de uma década que se virou obsessivamente para a representação de boçais e auto-destrutivos anti-heróis. Se é difícil fixar esse gosto japonês pelos rufias niilistas que acendem um rastilho caótico de brutalidade à sua volta (todo o cinema pink os têm e o que são, por exemplo, os filmes de Oshima sem eles?), não será excessivo dizer que a partir de outro filme selado pela ATG em 1976, Youth Killer do estreante Kazuhiko Hasegawa, que contava a crónica de um parrícida a monte, os jovens realizadores de então sentiram a necessidade de não romantizar a figura do forasteiro, retirando as chancelas provocatórias do passado, isto é, a dinamite política, portanto, apenas contando, da forma mais dramática possível, o seu périplo criminoso. No caso, a escolha por este género de narrativa (que teria sucessores estritamente temáticos, logo no ano seguinte, com The Mosquito on the 10th Floor, ou ainda no genial Ryuji dos respectivos estreantes Yoichi Sai e Toru Kawashima) permitiu a Banmei Takahashi saltar do cinema erótico para o sucesso comercial, reunindo duas excelentes interpretações (Ryudo Uzaki e Keiko Sekine, casada com o realizador), uma banda-sonora introspectiva que faz racord com as imagens melancólicas e, finalmente, um protagonista tão estranhamente indomável que revela uma ingenuidade perigosa, absurda e até piedosa.



The Island of Love (1982) de Paulo Rocha: ****
A Ilha dos Amores (usei acima o título inglês por razões editoriais) é uma colagem "modernista" luso-japonesa, épica no tom e na forma de dirigir (actores e público) caracterizada por manifestar uma teatralidade declarada que incita a jogos complexos de distanciamento e proximidade, estando esses jogos (operáticos e com auto-consciência, comprove-se isso com a omnipresença dos espelhos nos décors) sempre sujeitos ao crivo de uma vontade de tudo englobar e nada deixar fora: as referências literárias eram óbvias na intersecção de estilo clássico e forma moderna (veja-se a divisão em cantos, estrutura cara a Camões, Chu Yuan, Ezra Pound) e o uso extremo e sem concessões do plano-sequência (já lá vamos) comprova essa tara holística e paradoxal de ligar os diversos mundos interiores e terrenos, como se o resultado final tendesse para uma espécie de "Descobrimentos cinematográficos", a união de um mapa mundo cerebral e imagético. A proposta radical e abstracta de Paulo Rocha não tem grande equivalente na história do cinema (não tem percursores nem deixou sucessores): trata-se de uma leitura mística cruzada, repleta de mistérios, paradoxos e racords culturais, da vida vadia, atribulada e elegíaca (como a caracterizou Paulo Rocha) do cônsul de Portugal em Kobe, Wenceslau de Moraes, um dos únicos escritores do Ocidente que permaneceu no arquipélago até falecer, falecimento esse envolto numa certa bruma e descrito aqui duas vezes com autêntico despudor dramático. Por entre uma Lisboa em convulsão política, uma Macau a prometer encantos mais a extremo Oriente, Kobe, lugar solene e hierático da primeira morte (aquele plano fatal e fatalista do espelho!) e Tokushima, cidade melancólica onde dará o último suspiro cercado por uma solidão devastadora, Moraes é perseguido pela perda e morte das mulheres que o acompanham. Todo o acesso que temos à sua vida é povoado por representações estranhas (às vezes rebarbativas: Luísa Neto Jorge), cantos, estrofes, intervenções corais demasiadamente rígidas, cuja presença constante e propositada por vezes entra em conflicto directo com a arte narrativa mais tradicional (que também está cá). Mas perdoamos os excessos barrocos (perdoamos o excesso barroco, circular, neo-romântico, que é o filme e que caí no erro de enunciar vários inícios, como vários fins) em virtude do apuramento da linguagem estritamente cinematográfica. Posso mesmo dizer que não conheço nenhum realizador ocidental que tenha ido ao Japão filmar "à japonesa", sem acrescentar ou tirar quaisquer vírgulas ou pontos. Também aqui Rocha cumpre bem o seu programa megalómano e camoniano da união do globo terrestre, filmando como um outro sem deixar de ser ele mesmo, e também aqui se respira em cada plano e cada movimento de câmara resulta de um processo altamente minucioso, coreografado e radical de "montagem" dentro do próprio plano (Rocha diria: "A diferença entre os planos-sequência da Ilha e do Amor de Perdição talvez venha do uso sistemático da collage no interior dos meus planos: o olhar da câmara unifica fragmentos descontínuos, os espaços vazios entre as constelações"). Com efeito, cada plano-sequência desta obra épica mas descentrada (como bem a classificou João Bénard da Costa), é um universo. Na recusa dos planos-médios ou aproximados e na destruição do corte temporal introduzido pelo campo contracampo (aqui, como em Mizoguchi, one scene is one shot), Rocha esculpe os espaços, sublinhando o seu poder de imersão, de mergulho e encantamento sensorial. As direcções do espaço e a corporalidade prevalecem sobre a psicologia e a emoção, num sentido muito estrito e fornecem interpretações geométricas do estado de espírito dos personagens. Percebemos o significado das palavras de Rocha quando dizia ao seu director de fotografia: "Pense que este é o único plano da nossa vida, o nosso testamento"; ou escrevia: "era preciso que cada enquadramento fosse o único enquadramento possível". Todo este atrevimento, arrojo e força está inscrito no filme a ferros, quer se goste, quer não.



Moraes' Island (1984) de Paulo Rocha: ***
Sobre este A Ilha de Moraes falou-se, várias vezes, de uma nova apropriação do mesmo material que tinha dado origem à Ilha dos Amores e que aqui se transfigura, por força das circunstâncias e porque,  parafraseando José Manuel Costa, o fim da Ilha dos Amores dá lugar ao início da de Moraes, num documentário itinerante à procura do lado mais intimista do escritor radicado e morto em Tokushima no Japão. Mais pessoal em todos os sentidos da palavra (com Paulo Rocha a servir de intermediário, sendo ele a verdadeira presença "portuguesa" nas trocas de palavras nipónicas e macaenses), a gentileza e finura das imagens, esse exotismo bruxuleante, evoca o lado mais terra-a-terra tanto do escritor como do próprio cineasta. Em termos estéticos dá-me mesmo a impressão que Paulo Rocha aprendeu bem a lição dos documentários rodados para televisão de Shohei Imamura (ele próprio realizaria um sobre esse "espírito livre", como lhe chamaria): o mais importante é saber conversar, não filmar. Por isso, é comovente seguirmos outra vez o percurso de Moraes pelo Oriente a partir das imagens, mas decididamente a partir das palavras: quer dizer, as várias interrogações deixadas por Rocha e as respostas dos testemunhos preciosos de familiares portugueses, especialistas da obra e conhecidos japoneses ainda vivos. Neste sentido, A Ilha de Moraes é um precioso documento sobre o cruzamento de duas culturas e a sua tentativa de diálogo permanente, sendo esse diálogo aperfeiçoado na imagem do amor que prenderá Moraes a Tokushima, prestando culto às duas mulheres que profundamente amava. Até a monja japonesa apanha desprevenido o nosso Paulo Rocha quando lhe pergunta se já teve alguma vez uma Ko-Haru. É nessa recusa divertida em responder que reside a identificação secreta com o "mendigo ocidental" Moraes. Por muito que recuse a comparação, Moraes para Rocha é tanto um ideal como uma realidade, realidade que lhe está nos poros.



KT (2002) de Junji Sakamoto: ***
KT, mais conhecido por Killing the Target, é um thriller político de Junji Sakamoto que conta o rapto e sucessiva tentativa de assassinato de Kim Dae-Jung, uma das grandes vozes de oposição ao regime norte-coreano nos anos 70. É raro haver espécimes destes no cinema japonês, pois a Guerra Fria e sobretudo as tensões políticas entre as Coreias e o Japão não costumam ser tema para blockbusters já que se trata sempre de um tema delicado que só nos filmes mais "artísticos" parece ter cabimento. Porém, Sakamoto sabe sempre o que faz e engendra um drama sólido, repleto de personagens (e saber relacioná-las é uma vantagem) e que é arriscado o suficiente para denunciar um certo cinismo daqueles que vencem a história e, portanto, oficialmente a escrevem. Para além de tudo isto - e apesar das inspirações formais americanas - o filme revela um cuidado imagético de destaque, criando uma tensão não só através da montagem, mas principalmente pela composição dos planos e pelas prestações inspiradas, desde Koichi Sato a Yoshio Harada. Estes últimos encarnam algumas das contradições mentais dos anos 70, nomeadamente a crença, num caso, e relutância noutro, em actos radicais que sirvam para mudar qualquer coisa, nem que seja algo apenas estritamente pessoal. Com efeito, KT abre com a notícia do suicídio de Yukio Mishima e, para alguns historiadores, esse acontecimento marca um dos momentos de maior desilusão e dissolução política entre os japoneses (o outro seria a cobertura televisiva do famoso assalto ao chalé pelo Exército Vermelho Unificado). Tanto o jornalista descrente como o ex-membro da segurança secreta - presos numa encruzilhada internacional onde são chamados a desempenhar os seus papéis - encarnam dois lados da barricada, dois lados que são reacções sociais, especifiamente japonesas, depois do ocaso da radicalidade política no final dos anos 60. Um dirá "Os lobos sobrevivem, os porcos morrem!", o outro contesta: "Os porcos sobrevivem, os lobos morrem!"



Backwater (2013) de Shinji Aoyama: ***
Quando vemos os anos através do cinema, quando o inescapável fica captado na celuloide (o sotaque de Humphrey Bogart e o preto-e-branco de Casablanca, etc. dizem mais respeito aos anos 40 do que qualquer reconstituição dessa época), podemos chegar à conclusão de que as gerações deixam uma impressão digital latente nos objectos cinematográficos, pois o ar dos tempos fica sempre fixado no produto final (o cinema, neste caso como a fotografia, não se expande, mas fica preso numa materialidade qualquer). Pois bem, Backwater representa uma tentativa de reconstituição completa  de um tempo, a saber os anos 80 numa pequena aldeia japonesa. Digo (reconstituição) completa porque há aqui uma atenção detalhada ao cinema que se fazia por volta dessa altura, um cinema visceral, carnal e efervescente onde a violência e o sexo eram faces da mesma moeda e a sua presença revelava uma certa preferência por situações e coisas radicais. A reconstituição de Aoyama desse tempo nesta espécie de coming of age story em tonalidades negras, não é meramente reciclagem, pois para captar a angústia "real" de um crescimento cercado por demónios, houve a necessidade de capturar a irrealidade da forma cinemática, ou seja, procurar as intensidades semelhantes de câmara, algo que resulta de um processo de inspiração qualquer nos velhos filmes eróticos que abundavam nas salas de cinema da altura e misturavam o disfuncional com o quotidiano e raras vezes descuravam a estética e as heroínas determinadas. Também é notório o modo como Aoyama, pela primeira vez na sua carreira, aborda tão abertamente - e obscenamente, não se poupando a detalhes - o tema da sexualidade, nunca o tornando desejável mas sublinhando, através dele, o mal-estar do protagonista e a extrema e inesperada personalidade das três mulheres presentes na acção dramática. Podemos dizer que Backwater vive desta reconstituição da época, do cinema e da psicologia. Para bem e para o mal, não parece termos entrado no novo milénio.

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