15/02/14

Fragmentos de 2014/02/15




Miyamoto Musashi - Duel at Kongo-In Temple (1947) de Daisuke Ito: ****
A par com os 47 Ronin, poderíamos dizer que a odisseia de Miyamoto Musashi foi - e é - uma das mais adaptadas não só para o grande ecrã, como para outros tipos de média mais improváveis (um exemplo a destacar é Vagabond, o manga longo e ambicioso de Takehiko Inoue sobre o carismático espadachim). No cinema, sempre houve a dificuldade em contar todas as aventuras do valente personagem e até à trilogia de Hiroshi Inagaki (oscarizada em 1956) e à heptalogia de Tomu Uchida (1961-1971), os argumentistas tinham de fazer escolhas sobre a parte da história que queriam contar e a que teriam de deixar de fora. Kenji Mizoguchi em 1944, talvez motivado pela eminente catástrofe bélica, escolheu o duelo final de Musashi e o arqui-inimigo Sasaki Kojiro e engendrava, em apenas uma hora, um clímax sem preparação, uma despedida épica sem qualquer princípio. É por essa razão que entrei nesta versão de Daisuke Ito (o pai do jidai-geki) com um cepticismo algo justificado. Como dar a Musashi aquilo que é de Musashi, ou melhor, como exprimir a complexidade de um personagem tão marcante se começamos in-media-res e acabamos in-media-res? Pois bem, rapidamente percebi que o carácter fragmentário da narrativa jogava a favor de Ito, aqui muito mais empenhado na forma do que no conteúdo, ou, como através da forma podemos exprimir largas intuições do que está em causa em termos temáticos. Logo numa das primeiras cenas, quando Musashi renega o amor de Otsu na ponte, podíamos achar que apenas o melodrama (distanciado e lacrimejante) iria imperar, já que essa é a primeira vez que no filme os vemos juntos. Como filmar uma despedida sem um encontro prévio? Ora, a câmara de Ito aproxima-nos do drama do casal somente através da câmara que, a cada fala de Musashi avança para Otsu como se lhe desse chicotadas. Um movimento destes coloca-nos logo na intensidade desejada, mesmo que nos falte informação sobre essa recusa. A incompletude surpreendentemente regala-nos com abstracção e a abstracção faz-nos compreender as coisas como se adivinhássemos o que está em causa.



Sex Zone (1968) de Masao Adachi: ***
Pelo que sabemos esta é a quarta e última aparição do personagem Marukido Sadao (japonização do célebre escritor Marquês de Sade) no universo criativo de Masao Adachi. Podemos estabelecer um paralelo psicológico (talvez psicopatológico) nessa tetralogia que poderíamos apelidar - e correctamente - da misoginia. The Embryo Hunts In Secret, realizado por Koji Wakamatsu mas escrito por Adachi, revelava sérias inclinações edipianas quando a amante aprisionada se sacrificava no altar da maternidade e Sadao desejava metaforica e literalmente regressar ao útero. Em Abortion e Birth Control Revolution, ambos realizados por Adachi, Marukido é um ginecologista interessado em separar a reprodução sexual do prazer e estandardizar, assim, a vida das mulheres, comparadas sempre a animais ignorantes. Finalmente, em Sex Zone - aparentemente o mais convencional dos pinks acima descritos - o nosso anti-heroi vai pulando de relações em relações, chegando sempre e de forma fatalista ao assassinato das suas amantes. O tema em comum destes bizarros contos é sadiano não na medida em que a transgressão radical é possível sem afectação, mas sim porque, tal como em Sade, não há violência sem ideal, não há acção sem imaginação. A verdade é que Marukido Sadao consagra o assombro do cinema pink - isto é, quando esse cinema não está interessado em propagar prazer - : relaciona sempre a repulsa e exploração da mulher concreta a um estado doentio de vingança abstracta, traumática ou real. Portanto, as inclinações surrealistas de Adachi que se traduzem em estados alucinatórios, puxam o erotismo para dentro da mente do protagonista e, desse modo, já não enxergamos o sucessivo extravasar do desejo na exterioridade - é isto o filme pornográfico - mas os limites dessas disposições no ideal que as condiciona.



The Morning Schedule (1972) de Susumu Hani: ****
Hani é certamente o cineasta privilegiado da nostalgia. Já o sabíamos: desde os primeiros documentários sempre lhe interessou o mistério da infância e os ritos de passagem que levam à transição de um estado de inocência para um de conhecimento. Várias vezes (e sobretudo no aterrorizador Nanami - Inferno of First Love) essa mudança trazia consigo mágoa, porém, o que constitui Hani como o cineasta da nostalgia é o facto de, primeiro, o seu cinema reconstituir, como uma obsessão, os momentos chave e primordiais da vida dos entes filmados e, segundo, projectar esses mesmos momentos como sacralização de uma memória reencontrada, mas ao mesmo tempo perdida. Ao recente ciclo integral da obra do cineasta, o Harvard Film Archive apelidou de "As If Our Eyes Were in Our Hands" e trata-se, efectivamente, de um título que ilustra muito bem o seu cinema e este filme em específico. Em The Morning Schedule, com efeito, os olhos das protagonistas estão nas suas mãos: a sua amizade, o seu passado, as suas paixões estão consagrados no universo poético dos 8mm enquanto o tempo real diegético situa-se no tom monocromo. A ideia do testamento em filme - que já estava presente no tremendo Oshima em The Man Who Left His Will on Film - ressoa também aqui. Por mais inocente, corriqueiro e caseiro que esse testamento seja (e Hani deixou os seus "actores" filmarem-se a eles mesmos nas sequências de super 8, retirando completamente a sua autocracia e controlo artístico), a ideia era destilar na ficção um pendor do real que não pudesse ser fingido ou mesmo encenado. Hani cria, por várias vezes, momentos de pura intimidade que escapam ao controlo canibal da câmara. Por isso mesmo, essas filmagens têm qualquer coisa de melancólico e inatingível - tal e qual como os personagens que olham para elas nostalgicamente -, como se celebrássemos a despedida, reencontrando-a, como se pudéssemos ver aquilo que há de real em toda a ficção.



Okinawa Yakuza War (1976) de Sadao Nakajima: **
Há somente uma razão para verificar Okinawa Yakuza War: Sonny Chiba! A sua interpretação explosiva e imprevisível e sobretudo a sua falta de medo em arriscar e exagerar, claramente confessando um over-acting estranhamente contagiante, ecoa a folia grind-house que o tornou tão popular, por exemplo, na saga Street Fighter. Ao longo destas longas guerras de yakuza - que replicam a estética então consagrada de Kinji Fukasaku, a saber, câmara fervilhante, enquadrada nas diagonais e os célebres movimentos em espiral nas cenas de acção - Nakajima, por constrangimentos narrativos, não aproveita a cem por cento a energia fulgurante de Chiba, a sua selvagem maldade, e executa, com pertinência mas sem grandes rasgos, o conto típico dos yakuza sem honra nem humanidade rebelando-se contra os seus superiores e desencadeando uma guerra entre gangues. Muitas traições e muita violência (irreal e sem quaisquer travões legais) robotizam a segunda parte da película, onde as várias execuções sumárias do rol também excessivamente grande de mafiosos acabam por tornar o desfecho previsível e até um pouco desinteressante.



Orchids Under the Moon (1991) de Takashi Ishii: ***
Se passarmos por cima de Angel Guts: Red Vertigo (1988), poderíamos dizer que Orchids Under the Moon - um straight-to-video rodado no mesmo ano de estreia do outro Takashi, Miike - é o primeiro filme que honra a assinatura de Takashi Ishii. Com isto não queremos ignorar a presença erótica em Angel Guts que flutuaria fantasmagoricamente nas outras criações da carreira do realizador e argumentista (infelizmente as suas últimas obras até se renderam ao óbvio instinto do pornógrafo), porém, aqui assistimos ao desabrochar de todas as obsessões temáticas e formais, mesmo que algumas delas estejam ainda num estado semi-embrionário. Portanto, o film noir à la Ishii nasce aqui e será daqui que partirão as subsequentes tentativas de reformular os cânones desse mesmo cinema. Original Sin, Night in The Nude, Red Flash, Alone in the Night, todos estes títulos partilham da mesma linguagem e nelas podemos encontrar um só percursor, Orchids Under the Moon. Veja-se a recorrência da noite e o personagem perdido nessa mesma escuridão, mas acima de tudo, o uso do plano-sequência para imprimir a mistura idiossincrática entre sonho e realidade. Para além do primeiro plano do filme ser todo filmado num falso e contínuo point-of-view, há ainda outro plano que dura cerca de 7 minutos (sim, eu contei!) em que o protagonista ferido alucina na sua cama enquanto imensas figuras irreais o vêm visitar, revivendo traumas e projectando desejos e ilusões. Há um jogo intenso de luzes, sons (a chuva está e estará sempre presente nestas febris sequências) e só depois regressamos ao suposta real. Mas não será exagero encarar as coisas filmadas por Ishii como sonhos vãos de noites angustiosas e aguadas. Tudo o resto (incluem-se aqui os gangsters, as armas de fogo, o filme noir ele mesmo) parece ser apenas um pretexto para chegarmos a estas imagens, ambíguas e fatais, poéticas na sua brutalidade.



Chinese Dinner (2001) de Yukihiko Tstutsumi: ***
Em 2003, o produtor Shinya Kawai lançou o seguinte desafio aos realizadores Yukihiko Tstutsumi e Ryuhei Kitamura: seria possível, no espaço de uma semana, apenas com dois actores e usando um local, realizar uma longa-metragem com pouco mais de uma hora? Assim nasceu o Duel Project, onde cada um dos realizadores era forçado, de acordo com as limitações prévias, a construir uma intriga, dar o mote para o duelo e escolher um vencedor. Mal sabíamos nós que dois anos antes de 2LDK (foi assim que se chamou a tentativa de Tsutsumi) o mesmo realizador tinha feito um exercício de estilo bastante semelhante ao que o produtor lhe tinha sugerido. Chinese Dinner antecipa, pois, a originalidade da proposta de Kawai e, à sua imagem e semelhança, usa apenas um local, maioritariamente dois antagonistas (a jantar) e cria uma tensão do princípio até ao fim pelo meio de truques de câmara, décors, ritmadas interrupções e até metáforas (lembro, logo no início, o plano aproximado do aquário, que ilustra bem a relação caçador/presa presente depois). Aqui faz-se muito com pouquíssimo e esse labor minimalista é de assinalar, mesmo quando todo o filme é devedor daquele lugar-comum (que pode irritar alguns) do "fala antes de disparar". O filme entretém, é dono do seu espaço e sabe o que está a fazer.



R100 (2013) de Hitoshi Matsumoto: 0
Falta-me latim para escrever sobre mais um falhanço - e que falhanço! - do cómico tornado realizador Hitoshi Matsumoto. Esta privação de palavras e paciência deve-se principalmente à forma como tem vindo a ser encarado o humor no seu cinema e com quatro filmes feitos - e apesar de todos aparentarem diferenças - podemos elaborar um retrato-robô daquilo que decididamente não funciona e devia ser deitado fora das suas criações abjectas. O retrato deixar-se-ia descrever assim: miscelânea de conceitos narrativos estranhos em que o protagonista se encontra perdido numa situação maior que ele, humor físico e uma propensão para fins inesperados (eu diria, cinematicamente alarves) onde o realizador dá aso ao absurdo facilitista (aquilo que na gíria da internet se chama um momento What the Fuck?), vendendo a todos os leigos a sua genialidade absurda. Infelizmente para Matsumoto, não caímos na esparrela do seu não-humor que muito remotamente tem uma ligação com aquilo que primeiramente o tornou popular na televisão, isto é, os Batsu Game: jogos que são punidos fisicamente caso as suas regras fictícias sejam transgredidas. Também aqui um homem é perseguido por dominadoras que de forma não programada o castigam, o atormentam e, surpreendentemente, lhe dão prazer. Alguma da metáfora social (a agressão absurda pode ser mais quotidiana e silenciosa do que imaginamos) perde-se completamente e R100, que passa mais tarde a ser um filme dentro do filme (com tendências idiotas de satirizar o sistema de rating de idades da indústria cinematográfica japonesa), fica a viver apenas do humor idiota que encontramos quando alguém escorrega numa casca de banana. Depois de canibalizar o plot e de entrarmos na aleatoriedade narrativa (repito: sem qualquer tipo de piada) apenas podemos baixar os braços como se estivéssemos a ser agredidos. "Matsumoto, Out"!



Miss Zombie (2013) de Sabu: **
A experiência de ver Miss Zombie podia ser descrita assim: juntem o Romero de Day of the Dead com o The Housemaid de Kim Ki-Young e não esqueçam nessa mistura um toque estético da nouvelle vague japonesa (o cinemascope óbvio e até um caso de alternância entre preto-e-branco e cor tão característico, por exemplo, do cinema pink dos anos 60). Sabu esforça-se em pôr em prática os seus conhecimentos cinéfilos para renovar o filme de zombies - um género tão irritantemente popular nos dias que correm - e, portanto, estavam todas as condições para assistirmos a algo de surpreendente e até de louvar, visto a falta de cultura cinematográfica que muitos realizadores japoneses parecem ter quando não aplicam nem aproveitam conhecimentos e experiências do passado. No entanto, narrativamente não há como nos relacionarmos com a exploração da rapariga zombie e a sua sucessiva revolta contra os humanos. O carácter fantástico e a mistura com um cinema mais íntimo e silencioso (que Sabu tinha levado às últimas consequências em The Blessing Bell) estranhamente torna distante qualquer relação afectiva que possamos ter com os personagens. É de lamentar, pois percebemos onde Sabu quer chegar e quais são as suas referências para tecnicamente construir um exercício robusto e bem filmado. A intenção está cá, mas falta alma.



The Ravine of Goodbye (2013) de Tatsushi Omori: ***
Os limites do perdão e a possibilidade de encontrar a absolvição (nem que seja moral) são os temas da derradeira obra de Tatsushi Omori, cineasta que aos poucos está a encontrar a sua voz depois de ter rodado contos negros em que a violência surgia sempre excessiva, inquestionável. Em The Ravine of Goodbye o interesse recaí nas chagas desses actos, que antes eram impenetráveis, e a questão agora é a seguinte: como é possível lidar, desculpar ou ser desculpado dessa violência que agride e que não sai impune, isto é, que deixa as suas marcas tanto na vítima como no agressor? Ao contrário de Whispering of the Gods e A Crowd of Three - filmes que propositadamente obscureciam os seus intervenientes para tornar os seus actos ainda mais difíceis de julgar ou perceber - este Ravine é, acima de tudo, um estudo de personagens, e um estudo de personagens honesto e claro. Em primeiro lugar, porque a prestação de Shima Onishi e Yoko Maki permite ver a tremenda complexidade das emoções aqui tratadas. Conseguimos, de facto, sentir as suas contradições - até a linha tênue que vai do amor ao ódio - através de expressões, mímica e olhares e raramente por palavras. Em segundo, a própria mise-en-scène de Omori nunca parece explorar ou condenar quem quer que seja sem antes ter tentado escavar na profundidade do coração. Na profundidade nem sempre encontramos beleza, mas é na aceitação da culpa, da fragilidade e da tragédia alheia que se cumpre todo o esforço da comunicação humana. Omori não sabe se é inteiramente possível tal acontecer, mas esforça-se para torná-lo realidade.

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