One More Time (1947) de Heinosuke Gosho: ***
Parece haver uma constância histórica que molda a preocupação central das obras do pós-guerra japonês. Grande parte das vezes a trama é semelhante: o amor é separado ou impossibilitado pelo clima político difícil que reinava durante a Segunda Guerra Mundial. Com One More Time, Heinosuke Gosho alcançava uma tremenda popularidade e juntava-se a Akira Kurosawa, que no ano de 46 descrevia semelhantes misturas entre opressão e romantismo em No Regrets for My Youth. Apesar da roupagem política (até de uma inclinação comunista e de um certo repúdio, personificado no protagonista, pelas elites económicas) no seu núcleo, One More Time é um filme que destila humanismo: aquela palavra tão frequentemente usada quando descrevemos um cinema comprometido com o papel do homem e os seus afectos no meio de uma sociedade em convulsão e evolução permanentes. Arthur Nolletti bem o disse: "Mas o romantismo de Gosho não é somente um caso estilístico ou temático, como vimos, é também uma filosofia de arte e vida e um meio para um fim ainda mais elevado e nobre: humanitarismo." De facto, temos uma fusão bastante interessante - mas não assim tão original ou desprovida de determinismo histórico, como parecia afirmar Nolletti - entre as paixões puras e belas (não era Kinoshita que dizia: "Tudo o que é belo é verdadeiro?") e uma certa resistência do real que obriga os protagonistas a esperar e a serem fieis a eles mesmos. Filmado num comprido "flashback" recortado pelo olhar de um relógio - enxergar o tempo da separação - , Gosho não termina o romance nem na indeterminação, nem na tragédia fatalista (como Tadashi Imai faria no seu Until We Meet Again), pelo contrário, abre espaço para o reencontro prometido, como se todos os sonhos pudessem, ao fim de muito esforço e dignidade, ser cumpridos. Evidentemente, a mensagem chegava a bom porto para os espectadores de então, assolados pela memória ainda tão presente da derrota na Guerra.
The Blue Sky Maiden (1957) de Yasuzo Masumura: ***
Segunda produção de Yasuzo Masumura e primeira de várias colaborações com a diva da Daiei, Ayako Wakao, The Blue Sky Maiden foi descrito por Jonathan Rosenbaum - aquando de um enquadramento da obra do realizador por grandes temas - como filme sobre mulheres fortes e simultaneamente filme de juventude. Depois da sua estreia com Kisses, que mimetizava os famigerados Taiyozoku, filmes rebeldes sem causa originalmente escritos por Shintaro Ishihara, Masumura encontra nesta protagonista feminina um meio de confrontar a tradição (o meio rural onde ela vive e que é banhado por um céu fortemente azul - daí o título) e a modernidade (a busca pela sua mãe coloca-a na grande cidade de Tóquio, onde tudo é barulhento e artificial), mas este confronto jamais declina para a violência ou para atitudes mais selváticas e bestiais como acontecia na juventude filmada por Ko Nakahira num Crazy Fruit, por exemplo. A mulher em Masumura sempre foi mais robusta e interessante do que os homens - e aqui não é excepção. Rosenbaum, no artigo marcante "Discovering Yasuzo Masumura - Reflections on Work in Progress", tem razão quando aponta apenas a cena final como algo (que no futuro seria) distintivamente masumuriano e descreve o resto como estando enquadrado nas comédias românticas do seu tempo. Dizia ele: "Mas o que dá uma específica inflexão japonesa, e uma realmente transgressiva, é o clímax no qual Wakao culpabiliza o seu pai doente e fá-lo aceitar a responsabilidade de todos os problemas familiares." Essa cena, mesmo não sendo tão energética e psicótica como nos seus filmes posteriores, anuncia já as tensões que uma obra destas carregava e como uma dinamite se instalava, discretamente, nos filmes de estúdios para os fazer explodir.
Rebellion of Japan (1967) de Heinosuke Gosho: **
Arthur Nolletti Jr. termina o seu estudo sobre o cinema de Heinosuke Gosho, "Laughter Through Tears" com uma passagem extremamente certeira de Charles Dickens em Great Expectations: "Heaven knows we need never be ashamed of our tears, for they are rain upon the blinding dust of earth, overlying our hard hearts." Se é verdade que o cineasta japonês nunca esqueceu a sua propensão para o melodrama clássico sem pudores nem rodeios, também é certo que essa assinatura baseia-se nas possibilidades, se não redentoras pelo menos necessárias dessa expressão que estetiza e embeleza a impossibilidade, o desencontro e a tragédia. Em suma, há nas lágrimas a tradução máxima da humanidade. No entanto, pode ser que este Rebellion of Japan esteja mais datado do que, por exemplo, o desencanto sorridente e negro presente num Inn at Osaka - embora, tal como nos diz Nolletti, Rebellion terá de ser visto como a "última grande produção de Gosho". A razão para esse quase anacronismo é uma rendição ao óbvio que espelha um certo academismo, uma incapacidade de modificar as representações mais tradicionais e clássicas (como tinha feito, por exemplo, num Elegy of the North). A bela Shima Iwashita protagoniza uma mulher apaixonada por um jovem oficial, embriagado pelo espírito do seu tempo e crente nas teorias que estariam na origem do famoso Golpe de Estado de 26 de Fevereiro de 1936. Conseguimos perceber logo pelos primeiros sinais que a não concretização desse amor será uma certeza no resto da acção. O papel da mulher como alguém que se cumpre amando e o homem como aquele que vive dividido entre obrigação e emoção parece ser também uma consequência lógica, bastante trilhada por filmes do género. Excluindo uma certa teatralidade (originada pelas sequências bem filmadas de Noh), Gosho não aponta para além da competência melodramática (o uso excessivo de close-ups de Iwashita vai ao encontro de uma certa imediatez sentimental). Destaque apenas mais para a sensualidade da célebre cena da neve: quanto mais inatingível o desejo nos surge, mais ele é erótico.
A Woman In Revolt (1970) de Masao Adachi: **
A Woman In Revolt, penúltima agressão adachiana antes da entrega à causa palestiana e sucessivo afastamento da sétima arte traz consigo alguns problemas. Demasiado críptico e enevoado, é uma mistura de dois registos: por um lado, filme que relata dois homicídios e, por outro, exercício de estilo com propensão alegórica (se bem que sempre ténue e obscura). No seu melhor, é uma película com sequências assombrosas, mas que vistas na sua continuidade não conseguem reflectir bem a essência (é expectável que haja uma) do que se quer transmitir. Um sentimento de veneração e pasmo pela rijeza da figura feminina parece ser o denominador comum a todas as imagens, assim como uma componente mítica/tradicional (expressa na personagem da "bruxa" velha) dessa milagrosa e primitiva força. Os propósitos de Adachi são sempre arrojados e a sua cartilha sempre transgressora mesmo quando o reduzido orçamento e a sua necessidade constante de se rebelar (desafiando por vezes inconsequentemente os modos narrativos) seja um entrave.
The Fossil (1975) de Masaki Kobayashi: ****
Originalmente filmado para televisão, o sentimento que esta obra transcendia as limitações do pequeno ecrã levou Kobayashi a reeditá-la ligeiramente e transpô-la para as salas de cinema, trazendo consigo mais de três horas de duração. Faço minhas as palavras de Vincent Caby sobre este monumental The Fossil: "Kobayashi filmou-o como um romancista escreve. Ele fornece detalhe atrás de detalhe - por vezes visualmente, outras vezes nos diálogos, ou ainda através da voz de um narrador omnisciente - e fá-lo em tal alto grau que acaba por perfurar na superfície das coisas de uma maneira que nenhuma outra câmara convencionalmente consegue fazer. Isto leva o seu tempo. Para alguém apreciar The Fossil terá de estar atento a um realizador que não se preocupa em sorrir e dizer: "por favor". Não há tentativas de sedução". E como são verdade estas palavras! Esta experiência tem tudo de colossal e de épico, embora a sua origem televisiva a faça parecer discreta e pouco ambiciosa, pelo menos no que à forma diz respeito. Ora, como dizia Caby, a verdade é que Kobayashi premeia vários tipos de meditação, várias modalidades formais que encaixam umas nas outras e aprofundam um tema tão complexo como é o da morte: vejam-se os enquadramentos, a música (Toru Takemitsu, esse druida sonoro), voz-off das personagens, a voz-off do narrador (destaco como é raro uma narração ser tão literariamente perspicaz). O que para alguns parece ser ineficácia imagética (pelo facto de se recorrer tanto à palavra, narrada ou dita), para nós é um traço quase experimental de como várias linguagens (estritamente cinematográficas ou não) podem fortalecer e aprofundar a arte da narrativa, dividindo-a em vários trilhos. Aqui Kobayashi escreve como filma e filma como escreve.
Rape and Death of a Housewife (1978) de Noboru Tanaka: ***
A Woman In Revolt (1970) de Masao Adachi: **
A Woman In Revolt, penúltima agressão adachiana antes da entrega à causa palestiana e sucessivo afastamento da sétima arte traz consigo alguns problemas. Demasiado críptico e enevoado, é uma mistura de dois registos: por um lado, filme que relata dois homicídios e, por outro, exercício de estilo com propensão alegórica (se bem que sempre ténue e obscura). No seu melhor, é uma película com sequências assombrosas, mas que vistas na sua continuidade não conseguem reflectir bem a essência (é expectável que haja uma) do que se quer transmitir. Um sentimento de veneração e pasmo pela rijeza da figura feminina parece ser o denominador comum a todas as imagens, assim como uma componente mítica/tradicional (expressa na personagem da "bruxa" velha) dessa milagrosa e primitiva força. Os propósitos de Adachi são sempre arrojados e a sua cartilha sempre transgressora mesmo quando o reduzido orçamento e a sua necessidade constante de se rebelar (desafiando por vezes inconsequentemente os modos narrativos) seja um entrave.
The Fossil (1975) de Masaki Kobayashi: ****
Originalmente filmado para televisão, o sentimento que esta obra transcendia as limitações do pequeno ecrã levou Kobayashi a reeditá-la ligeiramente e transpô-la para as salas de cinema, trazendo consigo mais de três horas de duração. Faço minhas as palavras de Vincent Caby sobre este monumental The Fossil: "Kobayashi filmou-o como um romancista escreve. Ele fornece detalhe atrás de detalhe - por vezes visualmente, outras vezes nos diálogos, ou ainda através da voz de um narrador omnisciente - e fá-lo em tal alto grau que acaba por perfurar na superfície das coisas de uma maneira que nenhuma outra câmara convencionalmente consegue fazer. Isto leva o seu tempo. Para alguém apreciar The Fossil terá de estar atento a um realizador que não se preocupa em sorrir e dizer: "por favor". Não há tentativas de sedução". E como são verdade estas palavras! Esta experiência tem tudo de colossal e de épico, embora a sua origem televisiva a faça parecer discreta e pouco ambiciosa, pelo menos no que à forma diz respeito. Ora, como dizia Caby, a verdade é que Kobayashi premeia vários tipos de meditação, várias modalidades formais que encaixam umas nas outras e aprofundam um tema tão complexo como é o da morte: vejam-se os enquadramentos, a música (Toru Takemitsu, esse druida sonoro), voz-off das personagens, a voz-off do narrador (destaco como é raro uma narração ser tão literariamente perspicaz). O que para alguns parece ser ineficácia imagética (pelo facto de se recorrer tanto à palavra, narrada ou dita), para nós é um traço quase experimental de como várias linguagens (estritamente cinematográficas ou não) podem fortalecer e aprofundar a arte da narrativa, dividindo-a em vários trilhos. Aqui Kobayashi escreve como filma e filma como escreve.
Rape and Death of a Housewife (1978) de Noboru Tanaka: ***
À primeira vista, o título chocante e jornalístico (digno de manchete) deste filme de Noboru Tanaka devia apontar para zonas e disposições sensacionalistas, isto é, explorações indevidas e justiceiras sobre a criminalidade e crueldade humana. Os tiques de filme policial (por exemplo, cada vez que um personagem relevante surge, o seu nome é lentamente gravado na imagem como se fosse escrito numa máquina dactilógrafa) também aparentavam uma sórdida ficção, inspirada em factos verídicos - três jovens rapazes violam a esposa de um amigo mais velho - e que distribuiria culpas e representaria as coisas sob o ponto de vista da patologia, da monstruosidade e da brutalidade libidinosa (como Oshima fez no seu Violence at High Noon). Ora, Tanaka censura esta forma de filmar: para ele, a monstruosidade não é alheia ao homem, ela surge momentaneamente, quando menos se espera ou no seio das próprias relações sociais. Mas, podíamos categorizar esta forma de ver as coisas ainda como fantasista e perigosa, bem à maneira das filmografias "eróticas" que tendem a branquear a violência sexual e apresentá-la aos espectadores como, se não desculpável, ao menos desejável e atingível. A crítica japonesa da altura ao apontar Rape and Death of a Housewife como um filme sério e honesto não deixava de, nas entrelinhas, contradizer-se, como se Tanaka abrisse mão dos seus vícios de cineasta erótico para fabricar algo sem quaisquer condicionalismos, algo mais convencional e mais "sério". A verdade é que encontramo-nos sempre num espinhoso equilíbrio entre a estética vigente na Nikkatsu dos anos 70 e uma vontade de, sem julgamentos, pintar uma situação bastante mais delicada do que parece. O sexo aqui é filmado sempre como ritual masculino de grupo: seja nas conversas, seja nos actos ou nas tentativas frustradas ou desejadas de os efectuarem, os rapazes estão sempre a dirigir-se para os seus semelhantes. É um jogo, antes do mais, de socialização com os outros homens e só depois íntimo, com as mulheres. Neste sentido, pode parecer que se está a desculpar levianamente a brutal violação (filmada quase sempre num plano fixo realmente desconfortável), mas ao mesmo tempo, como podemos esquecer a complexidade da reacção do viúvo quando declara: "Eu apenas tive azar. Só isso." Esse sofrimento apático tem tudo a ver com uma não-vitimização mesmo quando se foi, de alguma maneira, vítima. Pode ser que os filmes eróticos tenham usado este raciocínio para suspender o choque dos actos neles praticados. Porém, aqui Tanaka apenas quer sublinhar as consequências devastadoras para a(s) vítima(s), criando dificuldades e uma obrigatoriedade trágica de realce.
The Cowards Who Looked to the Sky (2012) de Yuki Tanada: **
Sobre Yuki Tanada, diríamos que é quase impossível evitar o estatuto (muitas vezes abusivo) de "cineasta feminina", principalmente quando desde Moon and Cherry todo o seu corpus fílmico explora questões carnais com visceralidade e sem paninhos quentes. Desde já confessamos o preconceito, porém não deixa de ser inédito haver uma cineasta capaz de descrever a descoberta sexual, o fenómeno da vergonha e, claro, a diferenciação entre esfera privada e pública sem facciosismos sexistas. Em The Cowards, não há pontos-de-vista privilegiados, femininos ou masculinos. Há sim, multiplicidade, pontos de atracção e repulsa, desejo e vergonha, mulheres e homens encalacrados nas suas fantasias, tornadas públicas aos olhos sempre cruéis dos outros. Tanada, com efeito, executa um drama longo (talvez longo demais) onde a sexualidade é sempre problemática, principalmente quando os outros podem assisti-la. O tema da maternidade é recorrente e talvez aponte, metonimicamente, para a redenção, renascimento e perdão que os mesmos personagens necessitam para seguir em diante. Apesar, portanto, da envergadura do projecto, este é mais um caso de excessiva duração e outros pequenos desvios narrativos parecem estar a mais. Uma visitazinha à sala de montagem não teria sido nefasta.
The Cowards Who Looked to the Sky (2012) de Yuki Tanada: **
Sobre Yuki Tanada, diríamos que é quase impossível evitar o estatuto (muitas vezes abusivo) de "cineasta feminina", principalmente quando desde Moon and Cherry todo o seu corpus fílmico explora questões carnais com visceralidade e sem paninhos quentes. Desde já confessamos o preconceito, porém não deixa de ser inédito haver uma cineasta capaz de descrever a descoberta sexual, o fenómeno da vergonha e, claro, a diferenciação entre esfera privada e pública sem facciosismos sexistas. Em The Cowards, não há pontos-de-vista privilegiados, femininos ou masculinos. Há sim, multiplicidade, pontos de atracção e repulsa, desejo e vergonha, mulheres e homens encalacrados nas suas fantasias, tornadas públicas aos olhos sempre cruéis dos outros. Tanada, com efeito, executa um drama longo (talvez longo demais) onde a sexualidade é sempre problemática, principalmente quando os outros podem assisti-la. O tema da maternidade é recorrente e talvez aponte, metonimicamente, para a redenção, renascimento e perdão que os mesmos personagens necessitam para seguir em diante. Apesar, portanto, da envergadura do projecto, este é mais um caso de excessiva duração e outros pequenos desvios narrativos parecem estar a mais. Uma visitazinha à sala de montagem não teria sido nefasta.
Real (2013) de Kiyoshi Kurosawa: *
Sabe muito a pouco este drama inconsequente e erradamente apelidado de exercício "psicológico", apenas porque o realizador é Kiyoshi Kurosawa e a maior parte da acção narrativa se passa na mente de um casal, separado por uma tentativa de suicídio, que induziu um dos seus membros a um estado vegetativo, e misteriosos problemas do passado. Assim como já tinhamos visto em Penance, não parece haver o mínimo receio de misturar referências várias (horror onírico, ficção científica, romance, até o monster movie) numa embrulhada pouco ou nada coerente que salta de registo em registo (porque tudo é mental - justificação que serve ao filme, mas destabiliza a sua coerência formal) e vai tornando mais claro o drama (aparentemente tão intrincado, mas idiota de tão simples) deste casal. Valha-nos a sensibilidade estética de Kurosawa que constrói sequências ao seu estilo com imagens sempre misteriosas que quase nunca recorrem ao plano detalhe e projectam toda a sua intensidade críptica por serem declaradamente indefinidas. Ainda assim, esta componente atmosférica é completamente subtraída pelos diálogos escandalosos que sobre-expõem em demasia as reacções e os sentimentos dos personagens como explicam instantaneamente pressupostos narrativos sem qualquer preparação prévia. Não conseguimos, portanto, rever-nos minimamente no sofrimento e na urgência de cura deste casal. Mesmo o twist no final (que induz à estrutura já pouco original do "sonho dentro do sonho") surge demasiado imprevisível e irreflectido num filme cansado e prolixo.
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