06/11/12

Fragmentos de 2012/02/13


Yotsuya Kaidan Part I e II (1949) de Keisuke Kinoshita: *****
O mais exímio exemplar desta famosíssima peça de Kabuki e as suas variadas versões cinematográficas - enumero-as aqui pela minha ordem de preferência: primeiro Yotsuya Ghost Story in Tokaido (1959) de Nobuo Nakagawa, a segunda, Ghost of Oiwa (1961) de Tai Kato, a terceira, Illusion of Blood (1965) de Shiro Toyoda, a quarta, Yotsuya Kaidan (1959) de Kenji Misumi e em último lugar, Yotsuya Kaidan (1956) de Masaki Mori. Apesar desta ser a primeira versão sonora da peça, Kinoshita como que a revoluciona por completo, despindo-a corajosamente do factor sobrenatural e puxando as tensões e a culpabilização de Iyemon para dentro da sua mente, criando assim um autêntico drama psicológico com contornos surreais. Curiosa também é a maneira como este Iyemon - Ken Uehara, bravo! - consegue ser ao mesmo tempo o mais diferente, mas o mais tocante, o mais emocional de todas as versões acima citadas. Aqui, Kinoshita é inteligente o bastante para não caracterizar o anti-heroi só com intenções maldosas (apagando por completo o passo narrativo do assassínio do pai de Oiwa como nas versões de Kato e Toyoda, e outros pormenores muito mais subtis), mas pelo contrário, ao dar-lhe uma personalidade enfraquecida, quase mendigante e bastante influenciável pelo seu amigo matreiro, Naosuke, consegue demarcar ainda mais o teor negro e desesperante de toda a tragédia e a sua decadência enlouquecida. Por outro lado, não me consigo deixar de surpreender com Kinuyo Tanaka que aqui interpreta simultaneamente Oiwa e a sua irmã, com uma precisão obsessiva de bradar aos céus. As duas mulheres são a sombra uma da outra e poder-se-ia mesmo dizer que só Iyemon para, na sua loucura, as poder confundir (outro detalhe de louvar é o facto de aqui a nova mulher de Ieymon, Oume não ser confundida com Oiwa, mas sim Oiwa com a sua irmã). Para além de todos estes retoques, os ambientes - apesar de não serem amaldiçoados com fantasmas e labaredas a pairar nos céus - estão repletos e marcados de uma ponta a outra por sentimentos de culpa e a mímica de Ken Uehara é verdadeiramente dramática por ser tão frágil. Kinoshita ao humanizar os fantasmas ao ponto de os fazer desaparecer quase por completo, torna-os mais familiares e por isso mesmo muito mais aterradores e fascinantes.



The Tale of Genji (1951) de Kozaburo Yoshimura: *****
Obra-prima inquestionável, esta adaptação de Yoshimura com argumento de Kaneto Shindo e supervisão literária de Junichiro Tanizaki daquele que muitos consideram ser o primeiro romance psicológico da história da humanidade. E era certamente impossível contar extensivamente as aventuras do princípe Genji num filme de duas horas, todavia, é difícil lembrarmo-nos de uma adaptação que consiga sintetizar tão bem a aura da época e ao mesmo tempo a intensidade lírica e mística do romance. Neste aspecto o valentíssimo cast só reitera o que se disse: veja-se Kazuo Hasegawa que está simplesmente divino, ora passando por diversos tipos de concupiscência até descobrir a velhice através da misericórdia, Michio Kugore, Machiko Kyo - sensacional - e uma jovem Nobuko Otowa com uma linguagem corporal irrepreensível e uma mímica inocentemente erótica - apesar de ser a mais distante do princípe em termos carnais. A câmara assume os registos transcendentais que rememoram Mizoguchi e vai navegando pelos espaços, abrindo os planos e os corações dos personagens, passando em revista nesses andamentos (tal como no romance) os diversos estados de mutação do amor e da paixão, o seu envelhecimento, a sua fugacidade que só aparentemente sai do núcleo da vida, para se reencontrar nele depois da longa passagem do tempo.



The Perfect Game (1958) de Toshio Masuda: ****
Equilibrado e lúcido este jogo irónico de Masuda que, servindo-se do atrevimento do script de Ishihara (como uma premissa tão simples se vai desdobrando em labirintos morais) e da interpretação do bando de jovens - aqui, sim, Akira Kobayashi tem a sua spotlight devida - alcança bons domínios no que ao estudo de personagens diz respeito, destilando os temas da consciência, da culpa e da força sem direcção de uma juventude demasiado libidinal e com os nervos à flor da pele. É um bom precursor temático a filmes como Blackmail is my Business de Kinji Fukasaku, feito dez anos depois, sem que o tempo de distância entre um e outro filme se tenha imiscuido e mudado grande coisa, pelo menos, o essencial.



Lucky Dragon Nº 5 (1959) de Kaneto Shindo: ***
Com este Shindo temos uma proposta realmente arrojada (um conjunto de pescadores de alto mar assistem a um inesperado teste de uma bomba atómica) que é certamente comovente mas poderia ter sido muito mais aguçada na sua crítica aos abusos (absurdos) nucleares, se por exemplo, não focasse tanto num caso individual (não criticasse tanto sobre o ponto de vista dos afectos), mas se apresentasse mais directamente, narrativa e imageticamente, com a sua mensagem de profunda contestação e terror.



Love for a Fool (1967) de Yasuzo Masumura: ***
Nesta adaptação cinematográfica dos excessos, obsessões doentias e afectos atrofiados dos personagens de Tanizaki há qualquer coisa de prenunciador de um excelente casamento com o mundo fetichizado do escritor e o olho irrequieto, crítico e sempre mordaz de Masumura.



Dangerous Cops (1987) de Yasuharu Hasebe: *
Não me surpreendeu grande coisa esta adaptação na tela de uma série televisiva aparentemente muito bem sucedida junto do público japonês e realizada pelo "homem dos sete ofícios" Yasuharu Hasebe. Por pensar nos seus primeiros filmes de yakuza na Nikkatsu no final dos anos 60 (Black Tight Killers, como o grande sucessor do estilo suzukiano depois da saída do mestre do estúdio), as expectativas foram maiores do que deviam ter sido. Afinal, o humor, a música e a construção narrativa (constrastando apenas com uma ou duas sequências mais cinemáticas) assemelham-se mais a um episódio de televisão com o triplo da duração.



Big Joys, Small Sorrows (1988) de Keisuke Kinoshita: *
Um semi-remake (há inclusivamente uma menção dentro do filme ao outro filme) de uma das obras mais fortes e mais carregadas de realismo social de Kinoshita, Years of Joy and Sorrow (1957), com prestações tão memoráveis e sólidas como as de Hideko Takamine e Keiji Sada. Mas, nesta versão tudo vai em contra-mão. Este e o último filme de Kinoshita provam que nesta fase final da sua vida se assistia a uma espécie de estrangulamento do seu idiossincrático "humanismo" (e Kinoshita foi, sem dúvida, com Kurosawa, o mais "humanista" dos realizadores japoneses, mas se o último centrava o seu discurso na luta entre o bem e o mal, Kinoshita virava-se sempre para a descrição de estados mais disposicionais como a saudade, o amor, a alegria etc.), e por estrangulamento queremos fazer entender que ao cinema não basta viver de "ligeireza" para se tornar interessante. É preciso sentir-se, reflectir-se a saudade em quem vê (como o seu filme de 1957 fazia sentir tão bem) e não assistir à saudade dos personagens, descritivamente, sem ser susceptível de contacto e contágio por parte da audiência. Como se subverte uma coisa na outra (a descrição na reflexão) é difícil de se saber, mas em rigor, é isso que decide este tipo particular de filmes e no caso Kinoshita falhou.

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