03/09/15

Fragmentos de 2015/09/03



Policeman's Diary (1955) de Seiji Hisamatsu: **
Seiji Hisamatsu, que chegou a ver estreado um filme seu no Festival de Cannes em 1955, é hoje um cineasta completamente esquecido. Policeman's Diary, uma das suas películas mais famosas na altura, não alinhava no exotismo oriental que fazia furor na Europa, continente que se gabava de ter redescoberto o cinema do país do sol nascente, mas que ainda tardava em conhecer a vertente que falava dos problemas do dia-a-dia sem floreados, transcendentalismos ou pretensões artísticas. Na verdade como o título deixa antever, ao gendai-geki juntavam-se uns pinceladas neo-realistas que conferiam à obra de Hisamatsu contornos sociais e morais que muito faziam recordar as preocupações típicas de um cinema do pós-guerra que olhava de frente para as misérias humanas restantes de um período de reconstrução e pobreza. Esta dimensão faz-se notar, numa primeira leitura, através da ausência de um personagem principal. Se o título passasse para o plural ("Diários de Polícias") talvez fosse mais certeiro, pois, se há um agente que vai tomando a dianteira como pseudo-protagonista, o filme passa a maior do tempo filmando vários polícias (e casos de polícia) e o ambiente de azáfama de uma esquadra no campo. Múltiplos protagonistas, múltiplas tragédias: da prostituição ao abandono de crianças, passando sempre pela desintegração das famílias pelo vicio, crime ou depressão, Policeman's Diary retrata as dificuldades que parecem não estar presentes nas grandes narrativas e que quiçá ressoavam mais alto na memória e olhar dos japoneses de então. Se o filme, hoje, é um exercício bastante curioso mas datado, elogiamos a escolha lúcida de não optar pelo sensacionalismo de jornal de segunda. Típico também do cinema neo-realista é o germinar da esperança através da força humana que se levanta após cada agressão e despedida (e aqui há uma tocante cena de despedida). Casamentos, folhas vivas, sorrisos: basta estar atento para ver os símbolos da esperança que Hisamatsu nos deixou.



Advance Patrol (1957) de Kazuo Mori: ***
Será difícil imaginar quão diferente teria sido Advance Patrol nas mãos de Akira Kurosawa. O argumento original data de 1943 e por dificuldades várias tornou-se um projecto inviável para o realizador de Rashomon, sobretudo pelas conotações bélicas nele contido, já anacrónicas quando a sua carreira atingia a maturidade. Suspeitamos que se essa fita existisse seria francamente menos interessante do que esta adaptação tardia de Kazuo Mori que, apesar do "patriotismo" tosco e evitável das cenas finais, guarda uma distância considerável em relação ao tema e ao tom. Talvez a versão de 43 seria inflamada por ideais nacionalistas (estabelecendo um paralelo de quarenta anos entre a vitória japonesa frente aos russos com o confronto no Pacífico contra os americanos), numa altura em que era vital fortalecer o cansaço bélico que começava a tornar-se evidente aos poucos. Kazuo Mori, juntamente com Hideo Oguni, fizeram as mudanças essenciais e encararam o argumento original como um documento histórico não só sobre os últimos dias da guerra russo-japonesa, como da importância de poucos homens na decisão de um conflito entre nações. Seis soldados comandados por um capitão ficam encarregues de passar a fronteira russa e inteirarem-se sobre os planos e a composição do exército do adversário. Seis cavalos acompanham-nos no nevão, sendo que a missão só termina quando pelo menos um cavaleiro voltar com vida para contar o que viu aos superiores. Se esta narrativa de trespasses fronteiriços pode relembrar The Men Who Tread on the Tiger's Tail, a última película de Kurosawa durante a guerra e simultaneamente a primeira de uma nova era, o tom usado por Mori difere radicalmente. Se o filme de Kurosawa era ligeiro e animado por personagens, Advance Patrol refreia grandes identificações subjectivas e é tão inóspito como a belíssima e contrastada fotografia. Note-se o afastamento da câmara em relação aos personagens, o escondimento das suas faces, principalmente, a recusa de planos aproximados mesmo quando a narrativa exigia o contrário. Quase sempre em plano aberto, filmando a aridez das paisagens em terras-de-ninguém até surgir um russo ou chinês, Mori parece elogiar a abnegação individual, quebrando a individualidade dos seus personagens, o que, ao invés de escoar grandes lições patrióticas, reforça o carácter abstracto dos seus esforços e até da insegurança da sua missão. Se nos esquecermos do desfecho demasiado glorioso, Advance Patrol representa um interessante e discreto exercício atmosférico.



The Scarlet Camellia (1965) de Yoshitaro Nomura: ****
Este jidai-geki raro do criminologista Yoshitaro Nomura vai contra as definições mais simples do policial, género que de alguma forma se colou ao nome do cineasta da Shochiku. The Scarlet Camellia desenrola-se à volta das múltiplas vinganças de Shino, uma órfã com um passado demasiado negro para ser revelado de uma só vez (impossível não fazer referência à estrutura narrativa que elucida através dos flashbacks só depois de anunciar suficientemente o mistério). Primeiro passando por amante e depois revelando a real razão da sua presença, Shino castiga pelas suas próprias mãos os homens devassos que arruinaram a relação dos seus pais e, nesse sentido, o filme abre uma série de questões acerca da "justiça que não encontra leis neste mundo" e até do papel social dos homens e das mulheres na sociedade feudal e como facilmente a fragilidade das mulheres pode servir como arma num universo de objectificação. Se a protagonista pode ser encarada como um anjo exterminador, muito na tradição japonesa das vendettas femininas, a longa duração e a cinematografia aprumada permitem-nos aprofundar todo o rastilho destrutivo que uma mulher sem nada a perder deixa. Para além do contexto familiar difícil (e há aqui pano para mangas para análises psicanalistas), a mente alucinada de Shino pretende substituir a impotência e boa vontade do pai por um castigo divino que ele nunca precisou de procurar. Neste misto entre masculinidade desejada, cerebral, e feminilidade usada como veneno ou armadilha (talvez um eco terrível e desviante da mãe ninfomaníaca de Shino) é bem possível que encontremos a justificação para o magnetismo assustador e para a sensualidade assexuada da interpretação de Shima Iwashita. Muito mais do que uma película de enquêtes (nos primeiros minutos ceifa-se logo a primeira vítima), The Scarlet Camellia encontra na vingança devastadora (na vingança que neutraliza ou na que acorda a culpa pesada) o tema primordial de análise.



Thirst of Love (1966) de Jun'ya Sato: **
De milongas constantes e violinos melodramáticos é acompanhado este Thirst of Love (também traduzido por Love Lust ou ainda Grapes of Passion), um relato de um redemoinho passional que não assenta bem na imagem da carreira prematura de Jun'ya Sato na Toei, realizador bastante mais conhecido pelos seus épicos de acção com grandes orçamentos. Aqui há uma tensão dramática irrisória de tão expressiva e o melodramatismo chega mesmo a ser abstracto de tão exagerado. Ezaki, um conceituado publicitário, disputa a sua afectividade pela antiga companheira, Natsuko e por Yuki mas é com a segunda mulher, uma viúva negra, que mergulhará no amour fou quiçá sem retorno. Surpreendentemente, Sato alinha na concepção, partilhada pelos surrealistas, segundo a qual a verdadeira paixão é desestabilizadora e a própria instabilidade, que se procura, manifesta todo o poder sensual. Não podemos deixar de fazer referência à dicotomia presente entre, por um lado, as incumbências do trabalho (progressivamente negligenciadas) e, por outro, o mundo surdo da concupiscência onde nada resta a não ser a viagem febril dos sentidos. O último neutraliza as conquistas maquinais do primeiro, pois a adrenalina erótica quebra com a finalidade do trabalho e dá de volta a liberdade temerária, até infantil, que se perdeu algures na frieza de um escritório. Nesse confronto, descreve-se ainda o lado completamente obsessivo da sedução, como se se tratasse de um vício, mesmo doença, maior que o mundo e apenas satisfeito pela corrupção das almas e dos corpos, acordando de um sonho junto de um cemitério (décor que fecha o filme, não por acaso). Porque também é possível dar conta da complexidade por detrás dos mecanismos à flor da pele do melodrama, Thirst of Love, com a sua realidade de papel sempre pronta a ser soprada pelos ventos da paixão, prova que as aparências iludem.



Prison Boss (1968) de Yasuo Furuhata: **
Só há dois desfechos para os heróis dos ninkyo: ou morrem como mártires ou são presos após a carnificina dos vilões que sempre defrontam no clímax. A presença das autoridades, no entanto, da lei e das próprias prisões resta sempre ou quase sempre subentendida e mesmo os filmes que iniciam a narração com a libertação dos protagonistas apagam dos fotogramas, como se se tratasse de um recalcamento, os anos de pena que tiveram de passar. Prison Boss, na senda da popular saga Abashiri Prison também estrelada pelo ídolo Ken Takakura, contradiz esta mania de que as prisões são um tabu já que a usual fórmula dos ninkyo sofre aqui algumas alterações, especialmente porque a cena final ocorre a meio da acção e não temos maneira nenhuma de escapar ao ambiente e às relações prisionais que se estabelecem entre o protagonista e até outros líderes rivais que também cumprem castigo. Motivado pelo sentimentalismo que caracterizará toda a sua carreira futura, Yasuo Furuhata cria um herói mais frágil e mais humano que vingará não só o seu clã, mas mais decididamente a amizade antiga que redescobre enquanto recluso. Neste sentido, Prison Boss vai beber a Abashiri Prison o tema da grande amizade (quase homo-erótica: avessa a traições, zangas, reconciliações...) e se escolhe demonstrar a rotina de um prisioneiro é porque quer tornar o retrato mais credível e um pouco menos fleumático



The Wild Daisy (1981) de Shin'ichiro Sawai: *
Para os mais atentos, assim que a trama se desvendava diante dos nosso olhos não conseguíamos evitar um sentimento de déjà vu inquietante. Já tínhamos visto esta intriga anteriormente (dois primos, na flor da inocência desenvolvem sentimentos um pelo outro e rapidamente tornam-se o assunto da aldeia) só que as imagens por nós mastigadas e que faziam eco nesta tragédia de amor proibido eram, por comparação, bastante mais marcantes do que as que nos eram presenteadas agora. Keisuke Kinoshita, na verdade, já tinha rodado o mesmo conto de Sachio Ito com resultados bastante mais satisfatórios e com um lirismo nostálgico que encantava o mais céptico dos pedregulhos. Usando filtros na imagem captada pela câmara e enquadrando uma moldura (a moldura da memória) em cada plano rememorado, Kinoshita conseguia elevar a voz do amor impossível às nuvens, criando também uma espécie de alquimia plástica que apagava a noção de diacronia, já que quem contava a história era um verdadeiro prisioneiro do passado. The Wild Daisy pelo então estreante Shin'ichiro Sawai (realizaria mais tarde o melhor Tragedy of W) é só uma menor e mais literal versão de She Was Like a Wild Chrysanthemum com prestações mais inocentes, por um lado, mas menos capazes de dramaticidade por outro. Resta-nos recorrer à linguagem floral e sublinhar a simbologia, quer do crisântemo, quer da margarida selvagem, flores que resgatam a ideia da virgindade e do "amor frágil", precisamente as palavras que enchem de significado a triste sorte dos amantes.



Enclosed Pain (2000) de Isao Yukisada: *
Terceira instalação do projecto Love Cinema, Enclosed Pain segue à risca os propósitos da série que, no princípio do milénio, tentou explorar as capacidades das câmaras digitais aliando uma estética descomprometida de jovens cineastas que teoricamente fariam da falta de meios e da volatilidade técnica uma assinatura independente. Dos seis filmes produzidos, destaca-se uma nova geração, a primeira geração do digital, capaz de introduzir novos caminhos para a velha arte. No Ocidente, conhecemos certamente Visitor Q de Takashi Miike (o sexto e último filme de saga) e para os mais atentos não serão estranhos nomes como Akihiko Shiota, Ryuichi Hiroki ou até mesmo Isao Yukisada. Este último em Enclosed Pain demonstra competências para tornar as imagens mais embaciadas do digital em registos mais imediatos, onde muitas vezes a fronteira entre planificação e improviso parece esbater-se. No entanto, o problema advém de uma narrativa inconvincente que coloca dois irmãos incestuosos com um passado problemático (ela, escritora de renome, ele, um rapaz perturbado que pensa poder acabar com o mundo no momento em que se afoga) num processo de redescoberta afectiva que nem sempre, sobretudo nas cenas finais, funciona com motivações claras. A introdução de duas novas personagens (o editor da irmã e uma colega de escola do irmão) a princípio criam uma instabilidade interessante na vida obsessiva dos amantes secretos, mas acabam rapidamente por tornar-se, numa daquelas cenas que estragam um filme, simples engodos para a narrativa chegar onde se pretende. Infelizmente para Yukisada, a ânsia de querer unir pontas soltas do argumento traí o poder e o interesse da sua intriga e personagens, por mais bizarros e sofredores que fossem. 



The Vancouver Asahi (2014) de Yuya Ishii: **
Yuya Ishii para alguns rendeu-se fatalmente a "comercialismos" a partir de The Great Passage, contrariando as suas muito "especiais" raízes independentes que, tirando um ou outro caso, nunca resultaram nada de extraordinário. Em The Vancouver Asashi, Ishii debruça-se sobre a emigração japonesa no Canadá das primeiras quatro décadas do século XX, aproveitando um acontecimento verídico de uma equipa de baseball composta exclusivamente pela segunda geração de emigrantes japoneses para descrever a vivência difícil dessa comunidade e a discriminação racial sempre presente no quotidiano. Filme de desporto em que a vitória surge como corolário de todos os esforços de aceitação de uma minoria, Vancouver Asahi pode apresentar-nos personagens simpáticas (porque resistem contra a adversidade, respondendo com a singularidade) mas nunca consegue superar as emoções de um filme cujo carácter de justiça social vem sempre a reboque de uma certa artificialidade histórica. Nesse sentido, nunca conseguimos realmente ver a complexidade subjacente à discriminação racial que tantas vezes é descrita mas que acaba por ser executada de forma maniqueísta, algo que permite uma identificação imediata com os nossos jogadores, mas que no final não consegue fornecer um retrato realmente fidedigno dos tempos.



Little Forest - Winter/ Spring (2015) de Jun'ichi Mori: ***
O segundo capítulo de Little Forest prossegue com os experimentos gastronómicos de Ichiko durante as estações que faltavam explorar no primeiro filme, o Inverno e a Primavera. Como seria esperado, manteve-se a mesma estrutura e coerência estética do primeiro filme. Dois segmentos de aproximadamente uma hora (com créditos iniciais e finais para cada um) ilustram as quatorze iguarias fabricadas pelas mãos da nossa misteriosa intérprete, relembrando sempre a importância da agricultura subsistente, o aproveitamento dos recursos e a circunstância de que a culinária evoca memórias antigas, pessoas e lugares de que sentimos falta. Com efeito, um diálogo silencioso é estabelecido entre Ichiko e a mãe que a abandonou e alguns pratos transpõem sabores e experiências do passado, gentilmente recapturadas por entre as dentadas de um bolo natalício para não cristãos ou outras delícias do mesmo calibre. A mesma finura das imagens conquista-nos, não pela apropriação televisiva que delas se podia ter feito, mas porque a simbiose entre a natureza, aproveitamento e paciência aquando da confecção resulta como um todo, a despeito da quase inexistência de trama ou conflitos. Little Forest foi cozinhado em lume brando. É por isso obrigatório saborear lenta e cuidadosamente para retirar o maior prazer do seu consumo.

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