Marriage (1947) de Keisuke Kinoshita: **
De maneira a traçar um retrato mais autêntico da espuma dos seus dias, - e ao contrário do que o título deixa antever - Marriage não fala sobre as benesses da união entre dois amantes, mas sobre as dificuldades sociais do pós-guerra, como se pode logo perceber pela circunstância do casamento aqui se resumir a um projecto adiado ad eternum porque se aguardam melhores tempos e melhores conjunturas argentárias. Presente também está a temática do esvaziamento moral do pater familias que atrasa a independência da filha por causa do desemprego, habitual naquela era de convulsões e mudanças (relembre-se a greve que surge do fundo, enquanto os nossos amantes andam pelas ruas). Na verdade, a sétima longa-metragem de Keisuke Kinoshita tem alguma coisa de lúgubre, sobretudo quando filma o clima doméstico (não me lembro de um filme do realizador tão especado) e é por isso que raramente vemos a câmara mover-se, o que sublinha, por assim dizer, a tensão familiar existente e a própria austeridade técnica por que o cinema do pós-guerra passava então. Mais curiosas, porém, são as cenas que correspondem à segunda parte, quando observamos os dois amantes mergulhar na noite, na dança e no álcool para preparar a sua despedida. Aí a câmara assume-se como companheira noturna, amiga boémia, um pouco ao jeito de Ikiru (menos a crítica nele presente). Em termos de tom, talvez fosse mais eficaz se Kinoshita tivesse optado pela separação efectiva do casal, a despeito da correspondência, mas parece haver aqui uma alavanca optimista - como muitas vezes sucede no seu cinema - que encontra necessidade de reconciliar tudo e todos: amantes, pai e filha, os projectos individuais nas obrigações do colectivo.
Apart from Life (1970) de Kei Kumai: ****
Desde o princípio, a câmara de Kei Kumai mergulha nas trevas. Um mar cinza, minas, máquinas, uma confissão de gravidez não planeada desencadeia a possibilidade de um aborto. De seguida, o plano mais chocante: uma quantidade de ratazanas enjauladas atacam violentamente uma galinha. Elas saltam à procura de espaço e oxigénio mas correm, febris, endiabradas, para satisfazer uma vontade profunda de revolta e libertação, se é que os animais entendem o significado de tal urgência. Quererá Kumai colocar os humanos no terreiro das bestas ou redireccionar as bestas para o plano humano? A solução a esta pergunta pode servir-nos de pista para decifrarmos o que vem a seguir: um complexo rol de personagens que tem, pelo menos, uma característica em comum: são as reais e pesadas réstias da moderníssima sociedade japonesa. São, se quisermos, as ratazanas que vagueiam nos espaços escondidos, nos guetos ou que são ocultados dos olhos sensíveis do público: vítimas da bomba atómica e da radiação, burakumin, coreanos, etc. Kumai vai ao encontro deles com tanta honestidade que em momento algum os vitimiza por princípio. Será, pelo contrário, o primeiro a descrever a trajetória letal de existências confinadas ao abandono e desprezo social e cujo sofrimento permanente faz da violência e da aberração comportamental um hábito. Ainda sem qualquer concessão (não fosse esta a oitava produção da Art Theatre Guild), Apart From Life é bastante duro em relação às práticas tribais das diferentes comunidades ostracizadas, como fica provado no momento de extremada oposição em que hibakusha (pessoas afectadas pela bomba) e burakumin disputam, entre eles, quem merece ser mais repudiado pelos japoneses, entidade abstracta e ausente que se torna presença fantasmagórica nos últimos planos nos quais um tanque de criança torna-se num símbolo de conquista e os sorrisos singelos de donas de casa a fazer tricot num jardim de casas padronizadas se metamorfoseiam em sinais macabros de indiferença burguesa. A solução para este bestiário humano é tanto simbólica quanto fáctica: engolidas pelas chamas do ódio e da neutralidade, as almas perdidas vão fatalmente perdendo a vida. E a Kumai só lhe interessa este processo de consumo.
Gambling Den Heist (1975) de Kinji Fukasaku: ****
A anarquia segundo Kinji Fukasaku não significa apenas uma ausência de regras, mas antes uma exacerbação do indivíduo (ou se quisermos, do espírito individual), como se ele precisasse de se libertar de uma pesada herança, não só histórica mas também cinematográfica, que o aprisionava em falsos moralismos e num altruísmo não menos cínico e enganador. Os anti-heróis de Fukasaku são, pois, os heróis da desconfiança e do egoísmo, um profundo egoísmo colectivo que transfigura todos os intervenientes em constantes empecilhos uns em relação aos outros. É este jogo de interesses radical que faz mover os planos de Takeshi em Gambling Den Heist, um ex-recluso que pretende assaltar o patrão responsável pelo seu aprisionamento, enquanto este aposta quantias avultadas de dinheiro com outras famílias num espaço privado. O facto de um yakuza se rebelar contra o seu próprio "irmão" não é totalmente inédito, mas a falsidade e as sucessivas traições do protagonista, seus companheiros de crime e até inimigos provam que o conceito mais distante das relações entre gangsters é a honra. Substitui-se a honra pela ganância desenfreada e o resultado acaba por ser uma dança de egos em busca do golpe perfeito. Gambling Den Heist juntamente com outra fita injustamente ignorada filmada no ano seguinte, Violent Panic: The Big Crash!, formam um díptico onde a execução do plano infalível, sendo completamente reiterada pela realidade que não admite adequações exactas entre "o que era para ser" e "o que é", semeia o caos de forma a que todos os personagens fiquem expostos e todos eles tenham um papel neste grande banquete de violência e traição. Fora das "dinâmicas do poder" entre indivíduos ambiciosos por qualquer coisa, nada mais existe.
Keiko (1979) de Claude Gagnon: ****
Originalmente distribuído pela Art Theatre Guild (não me canso de relembrar o papel insubstituível desta produtora), o primeiro filme do canadiano Claude Gagnon granjeia da minha parte grande admiração. Só conheço dois casos de cineastas estrangeiros que conseguiram ultrapassar a sua condição de "observadores distantes" em virtude da redescoberta de uma sensibilidade profundamente japonesa: Gagnon e o nosso Paulo Rocha. O último compreendeu n'A Ilha dos Amores o poder poético e subversivo do artifício, da teatralidade que é parteira da sétima arte nipónica, já o primeiro através deste discreto retrato de uma jovem mulher, Keiko, que personifica em certo sentido todas as mulheres japonesas, conseguiu revelar os movimentos ocultos da vida como um rio calmo que esconde correntes fortíssimas no seu fundo. Todavia, se a sensibilidade é, como dissemos, digna de um cineasta nativo, o mais curioso será notar como uma certa resistência pictórica aos espaços japoneses surge nas opções de enquadramento. Gagnon filma cantos de bares, becos de ruas e restaurantes, personagens encostados (e incrustados) às paredes de casas minúsculas e sufocantes; filma conversas, beijos, corpos despojados no tatami com um distanciamento de quem não habita - e não se habituou ainda - às divisões que, por essa mesma razão, nos surgem quase na sua realidade mais crua e solitária. Mistura de forma genial intimidade e isolamento, mesmo a dois. É esta, aliás, a virtude do estrangeiro: poder viver com estranheza aquilo que é normal para o habitante comum e encontrar aí algo que lhe passa despercebido, mas que é ainda assim um traço fundamental da sua experiência cultural. Neste sentido, analisa-se também o dilema (muito japonês) entre a libertação afectiva e a ordem social, mas faz-se como se esse dilema não estivesse diagnosticado pelos próprios intervenientes e a sua resolução surgisse intempestivamente, quase como de um fado se tratasse. Não esperamos que Keiko abandone o romance com a sua colega de trabalho, mas o instinto japonês pela ordem e a submissão permanece, como também já tinha sido perceptível nesse rol de cenas silenciosas com o primeiro amante que a traumatizaria: vejam a finura das elipses que contêm os dias que Keiko espera reencontrá-lo no bar até ao dia da consumação do acto carnal. A desconfiança pelo mundo masculino, a descoberta da comunhão e compreensão do amor homoerótico e o encontro frio e estéril novamente com o Homem, cristalizado na contradição de movimento dos dois últimos planos (e que planos!) do filme, um lento distanciamento da amante só e, de seguida, uma aproximação maquiavélica dos noivos que desvenda o carácter postiço da cerimónia matrimonial, fazem deste Keiko um exercício complexo sobre a psique feminina. E se acharmos que há qualquer coisa de feminista no retrato (e só no retrato) do drama da mulher - como Chico Buarque cantava em Mulheres de Atenas três anos antes - então a Keiko valerá também esse epíteto que para muita gente serve de anátema.
Station (1981) de Yasuo Furuhata: ***
Já o disse muitas vezes: Yasuo Furuhata foi o cineasta mais determinante para a velhice do ícone Ken Takakura. Juntos criaram actualizações, mais ou menos conseguidas, da figura característica do estoico e inclusivamente o realizador ficou responsável pela derradeira obra do actor antes deste falecer em 2014, firmando uma parceria de quase 50 anos. Ao contrário de outros trabalhos menos inspirados na década de 90 e posteriores, Station poderá ser considerado, a par com Demon também realizado na anterior década, a melhor colaboração entre os dois homens. Talvez porque a fragilidade do impenetrável Takakura é aqui constantemente posta à prova e é evocada de maneira quase sádica. Nem vale a pena elencar pormenorizadamente todos os episódios da narrativa, mas trata-se de uma história teimosamente marcada pela tragédia: Takakura no auge do desassossego observa desde o princípio, em que se despede da mulher e filho numa estação (também no fim, sempre as estações...), a falência de qualquer estabilidade em diferentes alturas da sua vida. Continuadamente surge-nos a morte (a do seu chefe, a que ele inflige para se vingar), as despedidas e traições (a da mulher, a dos irmãos que separa), o insucesso na sua profissão (com dilemas morais que assaltam os seus pesadelos), enfim, um assustador destino que não o larga como um espectro maligno da máxima socrática: "uma vida sem exame não merece ser vivida". Os demónios de Takakura manifestam-se em todo o seu esplendor no último acto quando encontra finalmente consolo afectivo numa dona de bar viciada em enka interpretada pela extraordinária Chieko Baisho (os dois actores já se tinham encontrado um ano antes em A Distant Cry from Spring realizado por Yoji Yamada). As circunstâncias da sua união (e desunião) desmontam, de uma vez por todas, a ideia de que um homem moral pode descansar à beira do mundo. Cansado, mas em andamento (como os comboios omnipresentes captados pelas lentes do talentoso Daisaku Kimura), Ken Takakura não pode amar uma mulher sem amar antes a justiça. Resta-lhe, portanto, a viagem da solidão, a viagem da neve...
Break Out (1988) de Toru Murakawa: ***
Policial sem complexos e descarnado até ao tutano, Break Out do injustamente desconhecido Toru Murakawa prova, mais uma vez, a capacidade do cineasta intensificar a linguagem já muito trilhada do género ao ponto de a tornar quase incomportável. Um detective viciado em higiene oral, Kaji, investiga um caso de assassinato que o conduzirá a um escândalo sexual e político, metendo a máfia ao barulho. Nishimura, o arquétipo do polícia bom, não compreende os métodos do seu colega barbudo, com olhar simultaneamente inexpressivo e ameaçador como se fosse um equivalente japonês de Charles Bronson: Kaji espanca, persegue, vai ao fundo das questões e inclusive é capaz de matar. Contra tudo e todos, não parará enquanto a verdade não vier ao de cima. Quantas narrativas destas não foram carne para canhão do cinema de acção, principalmente nos anos 80 e 90? Polícia bom, polícia mau, um indivíduo à margem da lei para proteger teimosamente o seu próprio conceito de lei. Dirty Harry? Mais reconhecível do que isto não há, mas se observarmos como Toru Murakawa dá cor aos seus personagens e executa com qualidade uma narrativa tão frágil, podemos estar em condições de captar mais do que era esperado. A energia de Kaji, próxima da loucura ou da psicose, resulta bastante contagiante como se ele fosse o único personagem capaz de rebentar com as convenções que todos conhecemos. Um personagem com ânsias de extravasar o âmbito do seu próprio filme (talvez apenas satisfeito com a sua morte). Ele deixa até de ser polícia mau porque o contraste entre ele e o seu companheiro a dada altura desvanece, tal é a força do contágio. E, na verdade, Break Out com todas as suas fragilidades nada seria sem a interpretação selvagem e irascível do grande Tatsuya Fuji.
How Old is the River? (1994) de Shiori Kazama: ***
Shiori Kazama pertence à geração da quietude, estando o seu cinema desde as primeira produções em 16mm até ao mais recente World's End/Girl Friend intimamente ligado à estética que nasce dos silêncios, que brota da indução em vez da dedução lógica. How Old is the River? esgota por completo os grandes gestos, pois todo o filme é composto por entidades sombrias, discretas intenções, calada rigidez que faz confluir os destinos de três irmãos (dois de sangue, outro por obrigação de outras uniões) e uma prima numa casa de Verão do pai que nunca aparece. Esta ausência declarada da figura paterna remete-nos para um tempo onde, deixadas à sua sorte, as crianças revelam-se incapazes de evitar o desastre e até uma certa traquinice (daqui advêm confissões de amor e todo o tipo de coisas que os miúdos fazem quando os pais não estão a ver). Portanto, não será estranho notar uma certa tensão incestuosa nesta película onde os adultos voltam a ser confrontados com a sua infância numa terra de ninguém abstracta (a terra das memórias) onde é possível voltar a replicar o processo de crescimento. Talvez o plano mais marcante seja aquele em que Sakeko, a prima cobiçada que rememora o tempo mágico e leve das brincadeiras, diz a umas crianças (as impressões vagas de si própria enquanto menina) que já não pode brincar mais com elas.
Rock'n'Roll Mishin (2002) de Isao Yukisada: ***
Sexta longa-metragem de Isao Yukisada, Rock'n'Roll Mishin foi durante muito tempo o filme indisponível que mais ansiava ver do realizador de Go. A história de um salaryman desencantado (Ryo Kase num dos seus primeiros papeis principais) que volta a encontrar um amigo de infância que leva uma vida nas margens, completamente alternativa da sua, soava àquele tipo de desconstruções inteligentes da vida padronizada japonesa que têm eco até no cinema extremo de um Shinya Tsukamoto. Com efeito, Yukisada retrata este estilo de viver vadio com um fascínio que acaba por minar a organização aborrecida de um trabalhador de escritório, Kenji, que descobrirá por sua vez a falência do seu mundo e a descoberta de um novo, aliciante. Especial atenção para o tratamento da cor, para a atmosfera dormente que prevalece quando os horários deixam de existir e, finalmente, para a maneira algo humorística destes personagens se relacionarem. Com isto não quero dizer que Rock'n'Roll Mishin carece de tensão dramática. Ela existe, sobretudo na segunda metade, quando observamos esta utopia discreta de jovens descomprometidos e diletantes afundar-se por causa, claro está, dos afectos. Portanto, a dimensão mais curiosa deste filme circular, porque à primeira vista termina onde começa, é a que atribui à experiência de corte um carácter efémero que pode alterar o modo como vemos o nosso lugar no mundo, mas não a vivência radical. Sendo honesto consigo mesmo e com os seus personagens, Yukisada não esquece que o sítio de onde viemos pode acabar por ser o sítio para onde vamos. E o resto, aquilo que é possível, pertence à "desangulação" da perspectiva.
Osaka Hamlet (2008) de Fujiro Mitsuishi: **
De maneira leve e despretensiosa, Osaka Hamlet fala-nos sobre aceitação de uma maneira bem mais sentimental (por vezes até sentimentaloide) do que a que encontramos na tradição ozuniana. O realizador "mais japonês de todos os japoneses" mostrava-nos a profundidade da abnegação e da positividade da desistência, criando uma maneira poética de nos sintonizarmos com os contrastes e até mesmo com a tristeza e imperfeição do mundo. Fujiro Mitsuishi, mais contemporâneo não apenas no tempo mas sobretudo na atitude, compreende esse fenómeno como aceitação da diferença. Baseado num manga de Hiromi Morishita, o filme compreende três pequenas narrativas que têm uma relação com os três irmãos que assistem logo no início ao falecimento do pai que acontece curiosamente fora de campo, como se fosse um prolongamento de uma ausência já existente. Yukio, o irmão mais rufia, tem de aguentar a vergonha de ser chamado Hamlet pelos seus colegas (a sua mãe, tal como Gertrude na tragédia shakespeareana, volta a casar com o irmão do falecido marido), Masashi mente acerca da sua idade para poder amar uma mulher mais velha do que ele e que virá a ser sua professora e, finalmente, o pequeno Hiroki identifica-se mais com o outro sexo do que o seu e pretende interpretar a Cinderella no teatro da escola. Estes episódios desenvolvem-se em simultâneo e fornecem um tema comum. Os três irmãos lutam contra o preconceito de modo a salvar a sua "honra", não forçando-a (como aliás, Hamlet faria, destruindo-se a si mesmo no processo), mas abrindo as consciências dos outros. Vale a pena conferir a prestação de "Gertrude" e "Claudius" aqui. Keiko Matsuzaka e Ittoku Kishibe, mais inspirados e sabedores do que o elenco mais jovem, são um prazer de ver e conseguem equilibrar os momentos mais defeituosos onde o sentimentalismo irrompe, algo irritantemente.
Riding the Breeze (2014) de Koji Hagiuda: *
Como alguém disse certa vez, os road-movie tradicionalmente colocam um desafio a todos os realizadores: sem estúdios e locais fechados para aparar os golpes de planificação e produção, todo o filme que se situa no exterior dele mesmo necessita do acidente para aproveitar a beleza daquilo que não se espera. Neste sentido, quando se encena uma viagem na sétima arte, os resultados finais dependem muito das paisagens encontradas e transformadas pela câmara, mas mais decisivamente pela maneira como personagem e meio interagem. O novo filme de Koji Hagiuda, que quebra um silêncio criativo de seis anos talvez por dificuldades de financiamento, escolheu Taiwan como local de errância, chamando para a viagem de bicicleta uma japonesa em férias e uma teenager nativa que mente acerca da sua idade afim de fugir de casa. Riding the Breeze é, pois, um filme feito por um estrangeiro numa terra algumas vezes distinguida pelo seu exotismo (basta lembrar o esplêndido Stray Dog: Kerberos Panzer Cops, filmado por outro japonês, Mamoru Oshii, que documentava a estranheza dos cenários e as tradições de Taiwan, deixando o "plot" completamente para segundo plano). Infelizmente, tirando um ou outro momento, a maior parte do que nos é dado a ver incide numa espécie de atitude turística que nunca nos deixa verdadeiramente respirar os ares da viagem. No departamento narrativo, encena-se um triângulo (quadrado?) amoroso pouco perspicaz que carece desenvolvimento e mesma a relação complicada entre as duas protagonistas é tão fina e simples como tudo o resto.
Gambling Den Heist (1975) de Kinji Fukasaku: ****
A anarquia segundo Kinji Fukasaku não significa apenas uma ausência de regras, mas antes uma exacerbação do indivíduo (ou se quisermos, do espírito individual), como se ele precisasse de se libertar de uma pesada herança, não só histórica mas também cinematográfica, que o aprisionava em falsos moralismos e num altruísmo não menos cínico e enganador. Os anti-heróis de Fukasaku são, pois, os heróis da desconfiança e do egoísmo, um profundo egoísmo colectivo que transfigura todos os intervenientes em constantes empecilhos uns em relação aos outros. É este jogo de interesses radical que faz mover os planos de Takeshi em Gambling Den Heist, um ex-recluso que pretende assaltar o patrão responsável pelo seu aprisionamento, enquanto este aposta quantias avultadas de dinheiro com outras famílias num espaço privado. O facto de um yakuza se rebelar contra o seu próprio "irmão" não é totalmente inédito, mas a falsidade e as sucessivas traições do protagonista, seus companheiros de crime e até inimigos provam que o conceito mais distante das relações entre gangsters é a honra. Substitui-se a honra pela ganância desenfreada e o resultado acaba por ser uma dança de egos em busca do golpe perfeito. Gambling Den Heist juntamente com outra fita injustamente ignorada filmada no ano seguinte, Violent Panic: The Big Crash!, formam um díptico onde a execução do plano infalível, sendo completamente reiterada pela realidade que não admite adequações exactas entre "o que era para ser" e "o que é", semeia o caos de forma a que todos os personagens fiquem expostos e todos eles tenham um papel neste grande banquete de violência e traição. Fora das "dinâmicas do poder" entre indivíduos ambiciosos por qualquer coisa, nada mais existe.
Keiko (1979) de Claude Gagnon: ****
Originalmente distribuído pela Art Theatre Guild (não me canso de relembrar o papel insubstituível desta produtora), o primeiro filme do canadiano Claude Gagnon granjeia da minha parte grande admiração. Só conheço dois casos de cineastas estrangeiros que conseguiram ultrapassar a sua condição de "observadores distantes" em virtude da redescoberta de uma sensibilidade profundamente japonesa: Gagnon e o nosso Paulo Rocha. O último compreendeu n'A Ilha dos Amores o poder poético e subversivo do artifício, da teatralidade que é parteira da sétima arte nipónica, já o primeiro através deste discreto retrato de uma jovem mulher, Keiko, que personifica em certo sentido todas as mulheres japonesas, conseguiu revelar os movimentos ocultos da vida como um rio calmo que esconde correntes fortíssimas no seu fundo. Todavia, se a sensibilidade é, como dissemos, digna de um cineasta nativo, o mais curioso será notar como uma certa resistência pictórica aos espaços japoneses surge nas opções de enquadramento. Gagnon filma cantos de bares, becos de ruas e restaurantes, personagens encostados (e incrustados) às paredes de casas minúsculas e sufocantes; filma conversas, beijos, corpos despojados no tatami com um distanciamento de quem não habita - e não se habituou ainda - às divisões que, por essa mesma razão, nos surgem quase na sua realidade mais crua e solitária. Mistura de forma genial intimidade e isolamento, mesmo a dois. É esta, aliás, a virtude do estrangeiro: poder viver com estranheza aquilo que é normal para o habitante comum e encontrar aí algo que lhe passa despercebido, mas que é ainda assim um traço fundamental da sua experiência cultural. Neste sentido, analisa-se também o dilema (muito japonês) entre a libertação afectiva e a ordem social, mas faz-se como se esse dilema não estivesse diagnosticado pelos próprios intervenientes e a sua resolução surgisse intempestivamente, quase como de um fado se tratasse. Não esperamos que Keiko abandone o romance com a sua colega de trabalho, mas o instinto japonês pela ordem e a submissão permanece, como também já tinha sido perceptível nesse rol de cenas silenciosas com o primeiro amante que a traumatizaria: vejam a finura das elipses que contêm os dias que Keiko espera reencontrá-lo no bar até ao dia da consumação do acto carnal. A desconfiança pelo mundo masculino, a descoberta da comunhão e compreensão do amor homoerótico e o encontro frio e estéril novamente com o Homem, cristalizado na contradição de movimento dos dois últimos planos (e que planos!) do filme, um lento distanciamento da amante só e, de seguida, uma aproximação maquiavélica dos noivos que desvenda o carácter postiço da cerimónia matrimonial, fazem deste Keiko um exercício complexo sobre a psique feminina. E se acharmos que há qualquer coisa de feminista no retrato (e só no retrato) do drama da mulher - como Chico Buarque cantava em Mulheres de Atenas três anos antes - então a Keiko valerá também esse epíteto que para muita gente serve de anátema.
Station (1981) de Yasuo Furuhata: ***
Já o disse muitas vezes: Yasuo Furuhata foi o cineasta mais determinante para a velhice do ícone Ken Takakura. Juntos criaram actualizações, mais ou menos conseguidas, da figura característica do estoico e inclusivamente o realizador ficou responsável pela derradeira obra do actor antes deste falecer em 2014, firmando uma parceria de quase 50 anos. Ao contrário de outros trabalhos menos inspirados na década de 90 e posteriores, Station poderá ser considerado, a par com Demon também realizado na anterior década, a melhor colaboração entre os dois homens. Talvez porque a fragilidade do impenetrável Takakura é aqui constantemente posta à prova e é evocada de maneira quase sádica. Nem vale a pena elencar pormenorizadamente todos os episódios da narrativa, mas trata-se de uma história teimosamente marcada pela tragédia: Takakura no auge do desassossego observa desde o princípio, em que se despede da mulher e filho numa estação (também no fim, sempre as estações...), a falência de qualquer estabilidade em diferentes alturas da sua vida. Continuadamente surge-nos a morte (a do seu chefe, a que ele inflige para se vingar), as despedidas e traições (a da mulher, a dos irmãos que separa), o insucesso na sua profissão (com dilemas morais que assaltam os seus pesadelos), enfim, um assustador destino que não o larga como um espectro maligno da máxima socrática: "uma vida sem exame não merece ser vivida". Os demónios de Takakura manifestam-se em todo o seu esplendor no último acto quando encontra finalmente consolo afectivo numa dona de bar viciada em enka interpretada pela extraordinária Chieko Baisho (os dois actores já se tinham encontrado um ano antes em A Distant Cry from Spring realizado por Yoji Yamada). As circunstâncias da sua união (e desunião) desmontam, de uma vez por todas, a ideia de que um homem moral pode descansar à beira do mundo. Cansado, mas em andamento (como os comboios omnipresentes captados pelas lentes do talentoso Daisaku Kimura), Ken Takakura não pode amar uma mulher sem amar antes a justiça. Resta-lhe, portanto, a viagem da solidão, a viagem da neve...
Break Out (1988) de Toru Murakawa: ***
Policial sem complexos e descarnado até ao tutano, Break Out do injustamente desconhecido Toru Murakawa prova, mais uma vez, a capacidade do cineasta intensificar a linguagem já muito trilhada do género ao ponto de a tornar quase incomportável. Um detective viciado em higiene oral, Kaji, investiga um caso de assassinato que o conduzirá a um escândalo sexual e político, metendo a máfia ao barulho. Nishimura, o arquétipo do polícia bom, não compreende os métodos do seu colega barbudo, com olhar simultaneamente inexpressivo e ameaçador como se fosse um equivalente japonês de Charles Bronson: Kaji espanca, persegue, vai ao fundo das questões e inclusive é capaz de matar. Contra tudo e todos, não parará enquanto a verdade não vier ao de cima. Quantas narrativas destas não foram carne para canhão do cinema de acção, principalmente nos anos 80 e 90? Polícia bom, polícia mau, um indivíduo à margem da lei para proteger teimosamente o seu próprio conceito de lei. Dirty Harry? Mais reconhecível do que isto não há, mas se observarmos como Toru Murakawa dá cor aos seus personagens e executa com qualidade uma narrativa tão frágil, podemos estar em condições de captar mais do que era esperado. A energia de Kaji, próxima da loucura ou da psicose, resulta bastante contagiante como se ele fosse o único personagem capaz de rebentar com as convenções que todos conhecemos. Um personagem com ânsias de extravasar o âmbito do seu próprio filme (talvez apenas satisfeito com a sua morte). Ele deixa até de ser polícia mau porque o contraste entre ele e o seu companheiro a dada altura desvanece, tal é a força do contágio. E, na verdade, Break Out com todas as suas fragilidades nada seria sem a interpretação selvagem e irascível do grande Tatsuya Fuji.
How Old is the River? (1994) de Shiori Kazama: ***
Shiori Kazama pertence à geração da quietude, estando o seu cinema desde as primeira produções em 16mm até ao mais recente World's End/Girl Friend intimamente ligado à estética que nasce dos silêncios, que brota da indução em vez da dedução lógica. How Old is the River? esgota por completo os grandes gestos, pois todo o filme é composto por entidades sombrias, discretas intenções, calada rigidez que faz confluir os destinos de três irmãos (dois de sangue, outro por obrigação de outras uniões) e uma prima numa casa de Verão do pai que nunca aparece. Esta ausência declarada da figura paterna remete-nos para um tempo onde, deixadas à sua sorte, as crianças revelam-se incapazes de evitar o desastre e até uma certa traquinice (daqui advêm confissões de amor e todo o tipo de coisas que os miúdos fazem quando os pais não estão a ver). Portanto, não será estranho notar uma certa tensão incestuosa nesta película onde os adultos voltam a ser confrontados com a sua infância numa terra de ninguém abstracta (a terra das memórias) onde é possível voltar a replicar o processo de crescimento. Talvez o plano mais marcante seja aquele em que Sakeko, a prima cobiçada que rememora o tempo mágico e leve das brincadeiras, diz a umas crianças (as impressões vagas de si própria enquanto menina) que já não pode brincar mais com elas.
Rock'n'Roll Mishin (2002) de Isao Yukisada: ***
Sexta longa-metragem de Isao Yukisada, Rock'n'Roll Mishin foi durante muito tempo o filme indisponível que mais ansiava ver do realizador de Go. A história de um salaryman desencantado (Ryo Kase num dos seus primeiros papeis principais) que volta a encontrar um amigo de infância que leva uma vida nas margens, completamente alternativa da sua, soava àquele tipo de desconstruções inteligentes da vida padronizada japonesa que têm eco até no cinema extremo de um Shinya Tsukamoto. Com efeito, Yukisada retrata este estilo de viver vadio com um fascínio que acaba por minar a organização aborrecida de um trabalhador de escritório, Kenji, que descobrirá por sua vez a falência do seu mundo e a descoberta de um novo, aliciante. Especial atenção para o tratamento da cor, para a atmosfera dormente que prevalece quando os horários deixam de existir e, finalmente, para a maneira algo humorística destes personagens se relacionarem. Com isto não quero dizer que Rock'n'Roll Mishin carece de tensão dramática. Ela existe, sobretudo na segunda metade, quando observamos esta utopia discreta de jovens descomprometidos e diletantes afundar-se por causa, claro está, dos afectos. Portanto, a dimensão mais curiosa deste filme circular, porque à primeira vista termina onde começa, é a que atribui à experiência de corte um carácter efémero que pode alterar o modo como vemos o nosso lugar no mundo, mas não a vivência radical. Sendo honesto consigo mesmo e com os seus personagens, Yukisada não esquece que o sítio de onde viemos pode acabar por ser o sítio para onde vamos. E o resto, aquilo que é possível, pertence à "desangulação" da perspectiva.
Osaka Hamlet (2008) de Fujiro Mitsuishi: **
De maneira leve e despretensiosa, Osaka Hamlet fala-nos sobre aceitação de uma maneira bem mais sentimental (por vezes até sentimentaloide) do que a que encontramos na tradição ozuniana. O realizador "mais japonês de todos os japoneses" mostrava-nos a profundidade da abnegação e da positividade da desistência, criando uma maneira poética de nos sintonizarmos com os contrastes e até mesmo com a tristeza e imperfeição do mundo. Fujiro Mitsuishi, mais contemporâneo não apenas no tempo mas sobretudo na atitude, compreende esse fenómeno como aceitação da diferença. Baseado num manga de Hiromi Morishita, o filme compreende três pequenas narrativas que têm uma relação com os três irmãos que assistem logo no início ao falecimento do pai que acontece curiosamente fora de campo, como se fosse um prolongamento de uma ausência já existente. Yukio, o irmão mais rufia, tem de aguentar a vergonha de ser chamado Hamlet pelos seus colegas (a sua mãe, tal como Gertrude na tragédia shakespeareana, volta a casar com o irmão do falecido marido), Masashi mente acerca da sua idade para poder amar uma mulher mais velha do que ele e que virá a ser sua professora e, finalmente, o pequeno Hiroki identifica-se mais com o outro sexo do que o seu e pretende interpretar a Cinderella no teatro da escola. Estes episódios desenvolvem-se em simultâneo e fornecem um tema comum. Os três irmãos lutam contra o preconceito de modo a salvar a sua "honra", não forçando-a (como aliás, Hamlet faria, destruindo-se a si mesmo no processo), mas abrindo as consciências dos outros. Vale a pena conferir a prestação de "Gertrude" e "Claudius" aqui. Keiko Matsuzaka e Ittoku Kishibe, mais inspirados e sabedores do que o elenco mais jovem, são um prazer de ver e conseguem equilibrar os momentos mais defeituosos onde o sentimentalismo irrompe, algo irritantemente.
Riding the Breeze (2014) de Koji Hagiuda: *
Como alguém disse certa vez, os road-movie tradicionalmente colocam um desafio a todos os realizadores: sem estúdios e locais fechados para aparar os golpes de planificação e produção, todo o filme que se situa no exterior dele mesmo necessita do acidente para aproveitar a beleza daquilo que não se espera. Neste sentido, quando se encena uma viagem na sétima arte, os resultados finais dependem muito das paisagens encontradas e transformadas pela câmara, mas mais decisivamente pela maneira como personagem e meio interagem. O novo filme de Koji Hagiuda, que quebra um silêncio criativo de seis anos talvez por dificuldades de financiamento, escolheu Taiwan como local de errância, chamando para a viagem de bicicleta uma japonesa em férias e uma teenager nativa que mente acerca da sua idade afim de fugir de casa. Riding the Breeze é, pois, um filme feito por um estrangeiro numa terra algumas vezes distinguida pelo seu exotismo (basta lembrar o esplêndido Stray Dog: Kerberos Panzer Cops, filmado por outro japonês, Mamoru Oshii, que documentava a estranheza dos cenários e as tradições de Taiwan, deixando o "plot" completamente para segundo plano). Infelizmente, tirando um ou outro momento, a maior parte do que nos é dado a ver incide numa espécie de atitude turística que nunca nos deixa verdadeiramente respirar os ares da viagem. No departamento narrativo, encena-se um triângulo (quadrado?) amoroso pouco perspicaz que carece desenvolvimento e mesma a relação complicada entre as duas protagonistas é tão fina e simples como tudo o resto.
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