I Want to Be a Shellfish (1958) de Yoshihiko Okamoto: ***
I Want to Be a Shellfish (1959) de Shinobu Hashimoto: ****
Baseado nas memórias do prisioneiro de guerra Tetsutaro Kato, em 1958 era estreado um filme rodado exclusivamente para televisão que juntava um cast de luxo e causava sensação pela crítica explícita, ou se quisermos, pela paródia trágica feita aos tribunais de guerra. Com um argumento de Shinobu Hashimoto, um dos mais talentosos argumentistas do pós-guerra, I Want to Be a Shellfish narrava no pequeno ecrã o triste destino de um barbeiro de província, Toyomatsu Shimizu, que era alistado para a guerra e, devido à sua inaptidão para o cargo, era obrigado pelos seus superiores a matar um GI capturado pelo exército japonês. Sabemos mais tarde que nem essa ordem conseguiu cumprir na totalidade (rasgando toscamente o braço com a baioneta), no entanto, quando a nação vencida sucumbiu e quando os vencedores instauraram a justiça forçada aos perdedores, um conjunto de militares americanos reabre o processo e detêm o barbeiro no seu local de trabalho, diante da mulher e do filho, culpando-o de "crimes de guerra". De azar em azar, Shimizu, japonês o suficiente para nem contar a história toda em tribunal com medo da desonra, vai vendo a sua pena aumentar até chegar à morte por enforcamento. Entre outras coisas, o filme fala-nos de um inocente que estava no lugar errado na hora errada, mas também denuncia o próprio conceito de responsabilidade e de "crime de guerra", uma noção sempre denunciada à posteriori e que nunca se desliga de um ajuste de contas levado a cabo pelos vencedores (como é que um tribunal americano pode decidir com inteira justiça crimes contra americanos?) As amarguras kafkianas de Toyomatsu causaram tanto impacto e discussão que, no ano seguinte, o próprio argumentista levava ao grande ecrã a mesma história, estreando-se também na realização. Se os dois filmes partilham do mesmo argumento (por isso, existem muitas tiradas que permanecem iguais), há ligeiras modificações que permitem tonalidades dramáticas diferentes. A versão de Yoshihiko Okamoto é mais alarmista e imediata - confirma-se isso logo no uso da música e no genérico com imagens de arquivo do julgamento de Hideki Tojo e a comunicação da pena capital -, enquanto que Shinobu Hashimoto preferiu uma certa lentidão que, a vários passos, torna o destino do protagonista ainda mais desesperante, cozido a lume brando enquanto espera pela sentença. A primeira versão, talvez mais dramática, vitimizava mais Toyomatsu, pois descrevia-o como mais ingénuo e provinciano (e é muito curioso notar essas diferenças na prestação dupla de Frankie Sakai). Preferimos ligeiramente a versão cinematográfica que resolveu não criar uma empatia imediata com o espectador, mas tenta progressivamente aproximá-lo à medida que decorre o processo irrevogável e os sentimentos de desespero e impotência vêm à tona. Numa e noutra leitura, todavia, comovemo-nos com o testamento em off de Toyomatsu, momento poético que dá nome ao título e que discorre sobre os infortúnios de ser humano. "Se eu pudesse reencarnar, preferia ser um marisco perdido no oceano."
August Without the Emperor (1978) de Satsuo Yamamoto: **
Satsuo Yamamoto deveria ter ficado para a história como o realizador mais abertamente político que permaneceu toda a vida empregado nos grandes estúdios japoneses. Este seu épico de quase duas horas e meia reflecte as inclinações pessimistas, visíveis sobretudo no crepúsculo da sua carreira, onde não há espaço para virtudes e onde se nota especial deleite em denunciar os vícios e o cinismo daqueles que detém o poder. August Without the Emperor poderia até ser classificado de fantasia esquerdista, não porque aplica o mundo das ideias e das utopias a uma situação real, mas porque constantemente equivale o poder, qualquer tipo de poder, a um pecado, fazendo uso de uma ficção abstracta de tão inverossímil e retirando as suas conclusões circularmente: um conjunto de jovens militares conservadores decide organizar um Golpe de Estado à democracia japonesa, sequestrando, entre outras coisas, um comboio com destino a Tóquio. Tendo em conta o derrube do governo chileno pelo exército cinco anos antes (e que também encontra ecos na narrativa do filme e na insossa prestação do seu protagonista), fica por saber se Yamamoto temia uma insurreição semelhante no país que também há tão pouco tempo tinha assistido ao assalto e consequente suicídio de um Yukio Mishima vestido com o uniforme da milícia privada tatenokai. O que sabemos - e o que resulta irónico - é que o velho esquerdista acaba por encontrar mais empatia na ingenuidade dos conservadores revolucionários do que no fascismo mascarado que o combate. Essa democracia de amizades e interesses de auto-preservação duvidosos vai sendo revelada (progressivamente como num filme de vampiros) nas mais altas esferas da sociedade e que chega a incluir - surpresa! - o primeiro ministro. São essas mãos invisíveis que fazem a mais vil guerra nos bastidores mas em público defendem a paz e os valores democráticos que Yamamoto põe a nu, exprimindo, a partir daí, uma forte reprovação pelas elites, com passado obscuro ou sangrento, que governa(va)m o seu país. Apesar de todos os defeitos, de todos os maniqueísmos, de todas as limitações dramáticas do teórico da conspiração (estranho, pois trata-se de um filme de alto orçamento), o modo profundamente pessimista como August Without the Emperor termina é digno de antologia. Sem heróis vivos para contar a história, a visão transmitida acerca da paz podre democrática, que é afinal pax romana, não podia ser mais negra e perturbante.
August Without the Emperor (1978) de Satsuo Yamamoto: **
Satsuo Yamamoto deveria ter ficado para a história como o realizador mais abertamente político que permaneceu toda a vida empregado nos grandes estúdios japoneses. Este seu épico de quase duas horas e meia reflecte as inclinações pessimistas, visíveis sobretudo no crepúsculo da sua carreira, onde não há espaço para virtudes e onde se nota especial deleite em denunciar os vícios e o cinismo daqueles que detém o poder. August Without the Emperor poderia até ser classificado de fantasia esquerdista, não porque aplica o mundo das ideias e das utopias a uma situação real, mas porque constantemente equivale o poder, qualquer tipo de poder, a um pecado, fazendo uso de uma ficção abstracta de tão inverossímil e retirando as suas conclusões circularmente: um conjunto de jovens militares conservadores decide organizar um Golpe de Estado à democracia japonesa, sequestrando, entre outras coisas, um comboio com destino a Tóquio. Tendo em conta o derrube do governo chileno pelo exército cinco anos antes (e que também encontra ecos na narrativa do filme e na insossa prestação do seu protagonista), fica por saber se Yamamoto temia uma insurreição semelhante no país que também há tão pouco tempo tinha assistido ao assalto e consequente suicídio de um Yukio Mishima vestido com o uniforme da milícia privada tatenokai. O que sabemos - e o que resulta irónico - é que o velho esquerdista acaba por encontrar mais empatia na ingenuidade dos conservadores revolucionários do que no fascismo mascarado que o combate. Essa democracia de amizades e interesses de auto-preservação duvidosos vai sendo revelada (progressivamente como num filme de vampiros) nas mais altas esferas da sociedade e que chega a incluir - surpresa! - o primeiro ministro. São essas mãos invisíveis que fazem a mais vil guerra nos bastidores mas em público defendem a paz e os valores democráticos que Yamamoto põe a nu, exprimindo, a partir daí, uma forte reprovação pelas elites, com passado obscuro ou sangrento, que governa(va)m o seu país. Apesar de todos os defeitos, de todos os maniqueísmos, de todas as limitações dramáticas do teórico da conspiração (estranho, pois trata-se de um filme de alto orçamento), o modo profundamente pessimista como August Without the Emperor termina é digno de antologia. Sem heróis vivos para contar a história, a visão transmitida acerca da paz podre democrática, que é afinal pax romana, não podia ser mais negra e perturbante.
The Boy Made in Japan (1995) de Ataru Oikawa: ***
Lamentável que Ataru Oikawa tenha virado especialista em exercícios J-Horror e nunca mais tenha demonstrado a vitalidade criativa que esta primeira obra transpira. The Boy Made in Japan possui, de facto, todas as qualidades de uma carreira promissora. Ela traduz uma visão descomprometida sobre a juventude à deriva desses anos 90 perdidos que, de certa maneira, representa o lado negro das sociedades de abundância. Filme de travessias perigosas pelo submundo e de flaneries românticas pela cidade, The Boy Made in Japan junta duas almas sem lar que rumam em direcção ao abismo: Yamato, um rapaz traumatizado que pode ter um passado criminoso e Kaoru, uma jovem com problemas cardíacos que trabalha, com a inconsciência de uma criança, na indústria do sexo e da droga. Os dois vão até ao fim da noite, armados com uma pistola, fugindo não se sabe bem do quê. As mortes acumulam-se, as memórias vêm pedir os dividendos e no estilo sepulcral que tanto caracteriza as primeiras visões cinematográficas de Takeshi Kitano, dão-se os últimos suspiros junto ao mar, na praia simbólica, sacra e repousante a onde se regressa para nunca mais voltar.
Open House (1998) de Isao Yukisada: ***
A primeira longa-metragem de Isao Yukisada incide sobre as temáticas fundamentais da solidão, falta de comunicabilidade e da alienação urbana, temas muito caros a uma certa Nouvelle Vague taiwanesa e a dois cineastas em particular, Edward Yang e Tsai Ming Liang. Mostrando os bloqueios emocionais de duas vizinhas que, salvo erro, apenas se encontram uma vez ao longo da película, Yukisada filma os espaços urbanos com as mesmas cores exóticas e opressivas (a fotografia é, sem dúvida, o ponto alto) dos seus "irmãos" taiwaneses e tem também a mesma competência para transfigurar quartos e divisões privadas em tocas, extensões ou resguardos dessa mesma paisagem de confrontos. Por um lado, temos Mitsuwa, uma modelo desmotivada que trava conhecimento com Tomonori, um rapaz sem casa e destino, por outro, Yuiko, recém divorciada, enclausurada domiciliar que desenvolve uma estranha alergia e comichão (por falar de comichões, recordam-se de The River de Ming Liang ou The Bedroom de Hisayasu Sato?) causada pelo stress e pelo isolamento. Na fronteira da neurose, encontramos novamente estes personagens que deambulam pela cidade e rememoram, não raras vezes, as existências que o cinema elegeu para desempenhar o sôfrego papel de habitante urbano numa sociedade sufocante e fechada em si mesma.
Sunflower (2000) de Isao Yukisada: **
Teruaki mais um grupo de amigos recebe a notícia inesperada da morte de uma colega de escola. Todos vão ao velório na terra natal e relembram as coisas que fizeram juntos e a personalidade algo indecifrável da falecida Tomomi. Juntamente com outros convidados montam as peças do puzzle e perguntam-se se o incidente no mar que lhe ceifou a vida poderia ter sido suicídio. As questões ficam por responder na praia enquanto riem... Sunflower, a segunda longa-metragem de Isao Yukisada tenta enveredar mais pelo estudo de personagem do que a primeira, mas a estrutura flashback-elucidação rapidamente fica gasta, se bem que não podemos esquecer momentos mais inspirados onde a memória se presentifica diante de Teruaki, nesse momento onde ele recorda, como se nunca tivesse vivido, o seu primeiro amor à chuva com os sapatos de Tomomi na mão. Tirando um ou outro momento, Sunflower é somente mais uma razoável versão do filme onde amigos de infância se reúnem nos escombros da memória para resgatarem a nostalgia ou aperceberem-se dos erros do passado.
Open House (1998) de Isao Yukisada: ***
A primeira longa-metragem de Isao Yukisada incide sobre as temáticas fundamentais da solidão, falta de comunicabilidade e da alienação urbana, temas muito caros a uma certa Nouvelle Vague taiwanesa e a dois cineastas em particular, Edward Yang e Tsai Ming Liang. Mostrando os bloqueios emocionais de duas vizinhas que, salvo erro, apenas se encontram uma vez ao longo da película, Yukisada filma os espaços urbanos com as mesmas cores exóticas e opressivas (a fotografia é, sem dúvida, o ponto alto) dos seus "irmãos" taiwaneses e tem também a mesma competência para transfigurar quartos e divisões privadas em tocas, extensões ou resguardos dessa mesma paisagem de confrontos. Por um lado, temos Mitsuwa, uma modelo desmotivada que trava conhecimento com Tomonori, um rapaz sem casa e destino, por outro, Yuiko, recém divorciada, enclausurada domiciliar que desenvolve uma estranha alergia e comichão (por falar de comichões, recordam-se de The River de Ming Liang ou The Bedroom de Hisayasu Sato?) causada pelo stress e pelo isolamento. Na fronteira da neurose, encontramos novamente estes personagens que deambulam pela cidade e rememoram, não raras vezes, as existências que o cinema elegeu para desempenhar o sôfrego papel de habitante urbano numa sociedade sufocante e fechada em si mesma.
Sunflower (2000) de Isao Yukisada: **
Teruaki mais um grupo de amigos recebe a notícia inesperada da morte de uma colega de escola. Todos vão ao velório na terra natal e relembram as coisas que fizeram juntos e a personalidade algo indecifrável da falecida Tomomi. Juntamente com outros convidados montam as peças do puzzle e perguntam-se se o incidente no mar que lhe ceifou a vida poderia ter sido suicídio. As questões ficam por responder na praia enquanto riem... Sunflower, a segunda longa-metragem de Isao Yukisada tenta enveredar mais pelo estudo de personagem do que a primeira, mas a estrutura flashback-elucidação rapidamente fica gasta, se bem que não podemos esquecer momentos mais inspirados onde a memória se presentifica diante de Teruaki, nesse momento onde ele recorda, como se nunca tivesse vivido, o seu primeiro amor à chuva com os sapatos de Tomomi na mão. Tirando um ou outro momento, Sunflower é somente mais uma razoável versão do filme onde amigos de infância se reúnem nos escombros da memória para resgatarem a nostalgia ou aperceberem-se dos erros do passado.
The Terminal Trust (2012) de Masayuki Suo: **
Seis anos de silêncio separaram The Terminal Trust de Even So, I Didn't Do It, mas nos dois filmes, Masayuki Suo parece comungar da mesma perspectiva essencial ainda que acabe por filmar dois relatos bastante diferentes (o segundo era um drama de tribunal, o primeiro um drama hospitalar). Em ambos, todavia, pretende-se relembrar que a lei dos homens é somente isso, uma lei falível que pode esbarrar e condenar injustamente as acções inocentes ou inimputáveis dos personagens: se Even So, I Didn't Do It descrevia o exaustivo processo judicial de uma falsa acusação de assédio sexual, já neste Terminal Trust uma médica fica debaixo de fogo jurídico por apagar a vida de um paciente em estado terminal que lhe tinha confessado o desejo de morrer se alguma vez ficasse inconsciente. Claro que a eutanásia é um tema bastante delicado que não encontra consensos e, talvez por isso, Suo não o traz à coacção sem antes desenvolver o estado de espírito depressivo da médica Ayano Orii e insistentemente dar a conhecer não só a experiência traumática do paciente Shinzo Egi como a relação de mútua confiança que desenvolvem e ironicamente os salva dos abismos surdos da rotina. A sobriedade no tratamento desta relação extra-profissional pode ser chocante e desconfortável para os que concordam com a tese de que a morte medicamente assistida é sempre um assassinato, mas mesmo os que entendem toda a complexidade humana desta trama podem ficar resfriados pelo ritmo pausado e pela inclusão de algumas cenas que desviam a atenção principal. Definitivamente, o que resulta menos interessante é a confissão da médica após um interrogatório policial desnecessário de tão detalhado. Masayuki Suo desejava tanto confrontar a injustiça da lei rígida com a ética pessoal e profissional da médica que substitui a emoção das cenas com o paciente por uma forma predominantemente pregadora.
Fuku-chan of FukuFuku Flats (2014) de Yosuke Fujita: ***
Tanta comédia independente abundando no mercado que parece ter esquecido o poder galhofeiro das elipses torna a segunda-metragem de Yosuke Fujita um visionamento recomendável com prestações adoráveis e um sentido de humor, baseado nos silêncios e no não dito, de que já tínhamos saudades. Muito do charme da película deve-se também a Fuku-chan, um gordinho tímido que volta a encontrar, num contexto completamente diferente, a rapariga que o humilhara quando era um estudante. Fuku, sempre sorridente mas recluso das feridas antigas, é surpreendentemente interpretado por uma mulher, Miyuki Oshima. O seu trabalho de transformismo resulta muito bem, pois à virilidade física do nosso fabricante de papagaios de papel junta-se sempre uma fragilidade e uma inocência que tornam o personagem extremamente relacionável. Tal e qual como a metáfora do construtor civil que se revela um dotado cantor enka, a película de Fujita fala sobre as surpresas que as aparências resguardam e, embora possa parecer um lugar comum, é notório como a aparente estranheza (até fealdade) dos personagens que rodeiam Fuku acabe por tornar-se tão prazerosa, confortável e familiar para o espectador. Com um final talvez demasiado optimista, seria injusto classificar Fuku-chan of FukuFuku Flats uma película cínica ou enganadora, pois o seu poder reside não nas conclusões mas no caminho que levamos até elas. Levo daqui, portanto, um constante sorriso e personagens (os sorrisos contagiantes de Fuku, a fotógrafa Chiho, o seco Shimacchi, o genial mas sentimental Mabuchi, até o arrogante cozinheiro de caril!) que não cairão no esquecimento.
100 Yen Love (2014) de Masaharu Take: ***
O cinema japonês tem uma longa tradição de filmes sobre boxe ou nos quais o boxe desempenha uma função transfiguradora. Senão veja-se: em Kids Return, o boxe, juntamente com a delinquência yakuza, era a única via existencial possível para Masaru e Shinji, forasteiros da escola e da vida padronizada; em Tokyo Fist, o desporto surgia na sua dimensão mais primitiva, juntando-se ao erotismo masoquista e à celebração pagã da carne; em The Boxer, pugilista, treinador e personagens estranhos à la Terayama conviviam nos mesmos espaços e partilhavam o mesmo universo transgressivo... Em todos os filmes, o boxe representa o caminho alternativo para as almas inconsoladas e inconsoláveis, as almas que foram traídas pelo mundo e procuram uma lição em cada ferida, uma carícia em cada soco. Nessa senda, 100 Yen Love é o filme mais recente que se enquadra nesta visão contra-corrente do boxe, porém a ela não se reduzindo. Sakura Ando (outra vez ela!) interpreta brilhantemente uma hikikomori que sai da concha em que se enfiou, conhece um amor estranho por um pugilista enquanto trabalha numa loja de conveniência e é cortejado por um colega. O espectador é conduzido ao processo de desilusão e ofensas que deveria ter condicionado, em primeiro lugar, a fuga da realidade que Ichiko anteriormente adoptara, mas no meio da falência só agora o boxe resta, essa nação invisível a que se regressa. Nesse momento, Masaharu Take brinca com as regras do género (perfilhando até a sua linguagem cinematográfica: montages, slow-motions, etc.), fazendo-nos acreditar, ainda que por momentos, numa gloriosa carreira e numa vingança digna da nossa heroína incomum. Ela não prescinde, todavia, daquela ideia tocante segundo a qual no ringue se luta contra a própria vida independentemente do resultado, quer dizer, que a magia do boxe resume-se somente a esse vai-e-vem entre os socos infligidos e os abraços dados no meio dos hematomas e do sangue enquanto se exorcizam fantasmas. Lúcido, quer no argumento, quer nas interpretações (Sakura Ando é a reformuladora das protagonistas femininas), 100 Yen Love é, certamente, um dos melhores filmes do ano.
Attack on Titan (2015) de Shinji Higuchi: **
A transposição para o grande ecrã do manga fenómeno de Hajime Isayama não oferece mais do que já se esperava: um ambiente pós-apocalíptico, meio medieval, meio celta, em que temos o sentimento de que a humanidade não só está em constante perigo mas é fraca na sua essência e, como não podia deixar de ser, à impotência agigantam-se as paradas horrorosas e lentas de titãs famintos que caçam as suas presas com um automatismo e falta de inteligência assustadoras que só adiciona em desespero o estado extremo de indefesa das suas vítimas. O primeiro (de dois) capítulos faz um trabalho sério de adaptação, tendo apagado pormenores mais escabrosos (principalmente aquando da primeira "invasão") mas mantendo ainda assim uma aparência negra, nebulosa e disforme, imprópria para consumo dos mais novos e, ainda assim, fiel ao original em termos puramente imagéticos. Podemos elogiar os efeitos especiais (aprumados e nada embaraçosos, especialmente para um filme japonês), mas o que resta em termos estritamente narrativos, entre titãs e soldados aprendizes, é um sentimento algo incómodo de celeridade, como se a adaptação cinematográfica não passasse de um longo trailer sem tempo para desenvolver convenientemente os personagens e se entretesse apenas com a novidade dos gigantes acéfalos, cenas de acção longuíssimas e outros dramazinhos pouco expressivos entre humanos. Talvez possamos culpar o manga original neste departamento que sempre aliou a estética shonen a uma premissa infernal e misantropa, porém fazia-se valer do desespero que causava nos seus leitores por nem sempre obedecer às regras mais comuns de como construir uma história. Infelizmente, Attack on Titan para cinema e com actores de carne e osso, nunca consegue criar a experiência total do original, pois a parte humana (aquela que nos deveria suscitar mais reacções) é a menos interessante, a mais estereotipada, a mais devedora de uma estética que não pertence à realidade e resulta, por isso mesmo, forçada. Só através da mediação monstruosa (só através da tensão morte/vida) se recaptura o interesse, mas nenhuma grande obra se constrói apenas com essa dualidade.
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