Devotion to Railway (1960) de Hideo Sekigawa: ***
Hideo Sekigawa tinha já realizado aquele que considero ser um dos mais agudos e visionários filmes sobre a queda de uma nação, Listen to the Voices of the Sea. Em Devotion to Railway o caminho traçado era exactamente o oposto: como descrever, sem grandes galvanizações, a força do colectivo e o sentido de missão dos trabalhadores de um comboio? Como fazer justiça aos heróis invisíveis do quotidiano? O argumento lúcido de Kaneto Shindo, recheado de personagens memoráveis (a começar pelos dois cobradores de bilhetes que, juntos, quase fazem todo o trabalho existente no comboio), auxilia em muito a realização feliz de Sekigawa que parece aproveitar todos os benefícios do espaço fechado (mas em movimento) para aperfeiçoar a iluminação e os enquadramentos. Devotion to Railway, para além de ser uma história simples mas bem contada, surpreende-nos pelo domínio dos espaços e por um sentido visual que não seria esperado num filme rotineiro de estúdio.
Ogin-sama (1962) de Kinuyo Tanaka: ***
Apelidei Love and Faith, o remake de Kei Kumai desta Ogin-sama, um "retrato mizoguchiano sem Mizoguchi". E se na altura desconhecia que a última película de Kinuyo Tanaka como realizadora narrava exactamente a mesma tragédia da filha de Sen to Rikyu, nunca deixei de sublinhar as aproximações temáticas à obra do grande mestre por parte da sua musa, aproximações segundo as quais o sofrimento feminino alcançava uma dimensão cosmicamente compassiva. Sem dúvida, a componente mais fascinante de Ogin-sama é essa condensação da imagem da mulher, esse ser que só compreende o amor terreno e desafia a ordem sagrada do homem que ama, mas que não a pode amar de volta. Há nos encontros de Ogin e Ukon, esse cristão temente a Deus (usam precisamente essa palavra introduzida pelos portugueses), uma atmosfera transgressiva que corresponde ao encontro entre a castidade e o desejo inquietante provocado, justamente, por ela. Só esses momentos de extrema tensão erótica são realmente brilhantes, sendo que toda a intriga política, inclusive a tímida presença de Rikyu, empalidece perante os gestos contidos, as palavras subentendidas e os sentimentos reprimidos dos dois amantes "crucificados". Nesse sentido, por enaltecer a subversão feminina acima de qualquer retrato histórico, Tanaka é aqui ainda mais mizoguchiana do que Kumai: não é o caso do coração da mulher ser "baixo e volúvel" (como escrevia Saikaku Ihara em Oharu), mas o sacrifício que ela pratica por amor faz que as pulsões mundanas reencontrem o Deus vago das palavras do seu homem na morte, mais apaziguadora do que contestatária.
Yokosuka Navy Prison (1973) de Kosaku Yamashita: *
A ideia de reunir Shintaro Katsu e Bunta Sugawara numa prisão da marinha como soldados insurgentes parecia ser bem entretida, até porque Katsu já tinha uma longa experiência em dar vida a personagens, que pela sua atitude selvagem, questionavam ou viravam de pantanas a ordem estabelecida e o espírito militar inquestionável dos japoneses na Segunda Guerra Mundial (ver a saga rodada para a Daiei, The Hoodlum Soldier). Eis a minha estranheza quando constato o notável tom desinspirado dos dois actores e de todos os envolvidos, a começar por Kosaku Yamashita que desperdiça o talento e a oportunidade que tinha em mãos. Optando por um slapstick rígido e sem construção de personagem, as peripécias de Yokosuka Navy Prison facilmente caem na banalidade e nunca nos preocupamos nem nos rimos com o que se passa. Shintaro Katsu parece mesmo fatigado e o rasgo de brilhantismo que associamos sempre às suas interpretações parece ter desvanecido. Claro que a crítica anti-estabelecimento continua viva através da rebelião dos prisioneiros e da subversão de toda a autoridade, mas a forma (inclusive o final algo surreal, apressado e provocatório) não salva o conteúdo.
Hiroshima Honor - Hostage Rescue Tactics (1976) de Yuji Makiguchi: **
Yuji Makiguchi, que seguiu competentemente as pisadas ero-guro de Teruo Ishii durante os meados da década de 70 na Toei, virou-se em Hiroshima Honor para a estética jitsuroku, isto é, os filmes desencantados dos yakuza. A narrativa genealógica iniciada por Kinji Fukasaku com os dois primeiros capítulos de Battles Without Honor and Humanity é substituída pela descrição muito contemporânea dos novos modos de sobrevivência dos mafiosos. Em Hiroshima Honor, eles são mesmo forçados a deixar as apostas, os jogos ilegais, o mercado negro para se voltarem a misturar com a plebe em negócios de colarinho branco. Com certeza que Makiguchi não ia perder oportunidade para denunciar a contradição entre os dois mundos, ou melhor, a sucessiva contaminação de um pelo o outro, pois o trato e a maneira dos negócios ficarem "fechados", eliminando a concorrência e abrindo uma guerra entre famílias, em nada difere das velhas técnicas de outrora. Neste sentido, o filme navega em águas muito familiares se conhecermos o típico filme yakuza de Kinji Fukasaku: inexistência de pólos morais, a banda-sonora, uma guerra que ceifa caoticamente os dois clãs e traições e dissidências dentro da mesma família. Yuji Makiguchi não deixa de ser obediente aos regulamentos do género e ao seu mestre principal, mas nunca é brilhante, a não ser no duelo final na sucata e na sua conclusão que confirma todo o pessimismo desta estética.
The Young Animals (1978) de Yasuharu Hasebe: ****
Perdoem-me aqueles que ficarem boquiabertos com a elevada avaliação de um filme que é uma espécie de reimaginação japonesa de Saturday Night Fever. Não deixo grande margem de manobra para desculpas. The Young Animals não me o permite, é quase uma obra-prima pela radical despretensão, por não ter medo de se entregar ao comércio e fintá-lo inesperadamente. Porque se o extremo kitsch das danças e da febre da disco music datam deliciosamente as peripécias de Shinji, um lone rider carrancudo interpretado por um Hiroshi Tachi irrepetível e no auge dos seus poderes, tudo aquilo que passa despercebido ao olho mais desatento e demasiado picuinhas tem de ser chamado à coacção. Não pretendo, todavia, desvendar a complexidade temática de um filme que é pura série-B e que quer simplesmente jogar com referências e rastejar certas convenções. The Young Animals faz-se valer pela forma como encara um mundo sem aspirações onde o groove, a entrega ao presente, apenas pactua com esse estilo de vida. As personalidades finas como papel dos intervenientes em redor de Shinji são ressuscitadas pela banda-sonora inacreditável que não diferencia melodrama de comédia, insights de personalidade e puras cenas de género cuja comparência seria inevitável. A frustração é evidente para quem não conseguir seguir as inconstâncias do beat: quem espera um musical romântico encontrará uma história episódica que desemboca na tragédia mais inesperada, a tragédia de Shinji. Mas quem é Shinji? Um rebelde sem causas ou um causador sem rebeldia? O dançarino solitário que arrebata o coração das pequenas na pista multicolor? O praticante destemido de one night stands à chuva? O macho que defronta sem armas as lâminas perigosas dos seus adversários? Será tudo isso mais a misteriosa luva de cabedal que tactea por entre o molho de flores e encontra a flor branca mais imaculada. O rapaz desinteressado que, descobrindo o amor, nega a carnalidade pedida por uma mulher explorada, mas mais inocente do que culpada. É a solidão de Shinji uma condição de rebeldia ou um medo em comunicar, tocar no coração dos outros e ser, por consequência tocado? Talvez Hasebe esteja a negar duplamente a figura do bad-boy, compactuando com o lado dócil que não revela a ninguém, mas matando-o no final como se de uma punição cármica se tratasse. The Young Animals representa tudo aquilo que acontece entre os freeze-frames que abrem e fecham a vida mascarada de Shinji. A rosa que era branca acaba vermelha de sangue.
White Snake Enchantment (1983) de Shunya Ito: ***
A curiosidade era muita para conhecer a desconhecidíssima fase de Shunya Ito pós-anos 70, não que seja elogiada por alguém em especial, mas porque a sua falta de exposição e tratamento crítico alimentava as minhas ilusões. Na verdade, nunca esperaria um filme tão erótico na medida em que constantemente se recorre a castidades frustradas (a do jovem monge cujo padrasto está acamado e a da rapariguinha nova aceite como empregada) para potenciar a descarga sedutora de um anjo caído, uma mulher que, sem intenções, se vê envolvida numa rede complexa de amantes. No cinema japonês, são raras as paixões que não são fatais e talvez por isso mesmo, apesar da sexualização perturbadora e perturbante (antes que não seja porque acontece dentro das paredes de um templo budista e com dois monges encantados com a "cobra branca") o tema do "amour fou" surge aqui com um classicismo saliente. Desde os momentos da perda de discernimento total (o monge aprendiz que destrói o papel do shoji com a sua erecção) à máxima consumação do acto, através da morte e do incêndio (o fogo, sempre), tudo parece provir de uma intenção em transmutar velhos ensinamentos numa obra que apenas explora os caminhos da auto-destruição, mas suspende qualquer conclusão ou lição moral. Um cinema livre desses constrangimentos deve muito à tradição surrealista e Shunya Ito não será nada alheio a esse movimento artístico.
Meet Me in a Dream - Wonderland (1996) de Hisayasu Sato: ***
É difícil perscrutar as intenções satianas e, no entanto, mesmo os seus filmes mais desequilibrados comportam um não sei quê fascinante que resiste a todas as inconsistências, delírios e simplificações. Hisayasu Sato, sempre arrojado, ou é maligno e exterminador ou prefere encher-se de cenas e símbolos vedados para nos enredar no enigma. A sua filmografia funciona como um puzzle de obsessões visuais e temáticas que transcende completamente as fantasias do público do cinema erótico. O que se passa efectivamente em Meet Me in a Dream? Uma família muda-se para junto de um complexo de apartamentos que em tempos foi um floresta sagrada. O pai e a mãe são dois japoneses banais, ele um trabalhador assalariado, ela uma dona de casa como deve ser. A filha comporta a inquietação patológica recorrente em todos os pesadelos satianos: é uma misófoba, isto é, tem medo de ser contaminada por germes. Poucas vezes saí à rua sem uma máscara, o contacto físico está fora de questão e o sangue do seu período surge como último rasgo de uma vitalidade perdida. Quem senão Sato seria capaz de filmar um conto erótico com uma misófoba? A família, como é apanágio em quase todos os seus filmes, desintegra-se, mas aqui não parece haver um acto decisivo que desencadeia a mudança. Tudo simplesmente fluí num determinado sentido como se de um encantamento se tratasse. O pai, seduzido com a ideia de uma possessão espírita, vagueia sem destino como um morto-vivo por entre os espaços de cimento que, na sua mente, ganham a realidade da floresta sagrada a que se retorna. A mãe reencontra a sua identidade quando conhece uma dominatrix que desde logo se torna sua confidente e amante. A filha, após conhecer dois rapazes que vivem numa torre e vigiam toda a vizinhança com câmaras instaladas em todo o lado, imagina a exploração do seu corpo na virtualidade da sua imaginação (auxiliada também pelas imagens gravadas e pelo white noise da video-vigilância). A ausência ou desaparecimento do pai alcança uma dimensão simbólica, pois é o colapso do sistema patriarcal que possibilita a libertação das mulheres no filme. Os homens em Wonderland só se encontram na medida em que desistem da sanidade dos seus papeis sociais. As três mulheres escapam-se do betão, das luzes pálidas e dos apartamentos estéreis porque são a floresta mágica irredutível, o convite à primitividade.
Kuro (2012) de Daisuke Shimote: ****
Cinquenta anos depois, a Nouvelle Vague francesa ainda ecoa nas mentes e nas objectivas dos novos cineastas japoneses. Keiichi Kobayashi e Daisuke Shimote são dois nomes a reter no que concerne a produção de contos escapistas onde a gratuidade da diegese, aliada a um humor muitas vezes meta-cinemático e descomprometido, fornece momentos de alegria cinematográfica em estado puro. Todos os críticos que escreveram sobre Kuro referiram que esse nome foi também o título escolhido para a estreia de Bande à Part no Japão durante os anos 60. Evocando a disposição godardiana da altura, mas mantendo-se sempre japonês no humor, aquilo que mais elogio aqui é o modo como os tempos mortos, que equivalem a três terços da duração, são reimaginados no plano imagético, conferindo à dormência do tédio uma estética de posicionamentos corporais, cores e danças. Desde Takeshi Kitano (Sonatine, Kikujiro) que não víamos no cinema japonês tanto talento para infantilizar os protagonistas, torná-los leves, livres, alucinadamente cinemáticos.
Midnight Diner (2015) de Joji Matsuoka: ***
Certamente, Midnight Diner não foi pensado como um objecto cinematográfico isolado. Primeiro, um manga, depois série de televisão de sucesso (com três temporadas e até um spin-off coreano), só muito depois do conceito estar provado é que as peripécias de um restaurante noturno no centro de Tóquio passaram para o grande ecrã. Joji Matsuoka, que também realizou alguns episódios da série, retoma caras conhecidas e conserva Kaoru Kobayashi como o dono impassível do estabelecimento, cujo ofício consiste em consolar as barrigas ansiosas dos clientes e ouvir, sem estorvar, as suas histórias. Sem enveredar necessariamente pelo espírito zen às vezes tão explorado neste género de premissas, o restaurante que só fica aberto durante a noite é um verdadeiro local onde queremos pousar e limpar a mente. Sem dúvida estas pérolas urbanas propiciam tipos de relacionamento muito especiais: por um lado familiar, por outro sempre atento aos limites e distâncias entre cliente e patrão. Reconheceremos no Japão todo o relaxamento e cordialidade se o visitarmos. Afinal, esse é o país onde uma dona de bar se chama "mama-san", como que substituindo uma presença afectiva tão importante como a materna... A qualidade e o defeito de Midnight Diner será a sua estrutura episódica, demasiado semelhante a uma colagem de três situações televisivas, porém charmosas o suficiente para nos entregarmos a elas, acompanhados por um copo de saké gelado ou uma massa napolitana acabada de cozinhar.
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