16/04/15

Fragmentos de 2015/04/16



Sayon's Bell (1943) de Hiroshi Shimizu: **
Hoje, os kokusaku eiga (filmes de "política nacional" que abundavam nos primeiros quatro anos da década de 40 japonesa) são o caso mais evidente do quão datado se encontra o filme nacionalista, principalmente se nos concentrarmos nas filmografias dos países perdedores da guerra. Todo o fervor patriótico e colonial, por mais bem filmado que esteja, aponta para um género de estupidez ou sonho anacrónico que, nos dias que correm, é impossível de compreender senão pela instalação de um ponto de vista estrita e distanciadamente histórico. Outro facto que nos dá calafrios na espinha é o de grandes realizadores - como Hiroshi Shimizu que em 43 tinha a obra mais do que consagrada - se terem curvado às exigências do Império e, ou realmente acreditavam no que estavam a filmar, ou simplesmente encaravam toda a verborreia direitista como um mero ofício e forma de permanecer assalariado no estúdio. Sayon's Bell pretende recriar uma histórica verídica que aconteceu numa das colónias japonesas em Taiwan no final dos anos 30: uma jovem nativa, ao mostrar a sua devoção pelos polícias e colonos japoneses carregando as bagagens dos soldados e do seu professor no meio de uma enorme tempestade, caiu da ponte de lenha e afogou-se, sendo encontrada sem vida um dia depois. De acidente a necessidade, o acontecimento adquiriu uma simbologia patriótica desmesurada, como se a pequena Sayon estivesse pronta para sacrificar a sua vida para um Império que nem era o dela originalmente, e na versão exótica de Shimizu também todos os lugares comuns do nacionalismo colonialista estão cá: por exemplo, a ideia, logo no início, que os colonizados, gente boa e inocente, devem tudo aos colonizadores ou igualmente, a correspondência de identidade entre os nativos e os japoneses, figurada em muitas cenas de cânticos, no hastear da bandeira nipónica ou até mesmo na presença do hino nacional. Apesar de todos estes factores propagandísticos que parecem a cada momento insultar a sensibilidade do espectador moderno, Sayon's Bell é, na verdade, uma óptima oportunidade para vermos a lendária actriz sino-japonesa Shirley Yamaguchi no papel de Sayon. Há também qualquer coisa de datado nos trejeitos, na voz, no olhar da jovem actriz mas os (raros) momentos em que não nos enfiam o barrete da propaganda e em que vemos Yamaguchi simplesmente a fazer travessuras com os animais e outras crianças (um filme de Shimizu sem crianças não é um filme de Shimizu) relembram-nos que há datado bom e há datado mau.



Shinsengumi's Devil Commander (1954) de Toshikazu Kono: **
Produzido pela recém-fundada Toei, Shinsengumi's Devil Commander pertence a um conjunto de obras que têm como pano de fundo histórico o período Bakumatsu (os últimos anos do shogunato Tokugawa) com destaque principal para aquela que foi a milícia mais assustadora dessa era, a saber, o shinsengumi. Ao longo da história do cinema japonês muitos foram os realizadores que forneceram várias interpretações e releituras dessa força especial do Governo que não refreava a brutalidade dos seus métodos, a começar por um rigorosíssimo código de honra cujo único resultado em caso de transgressão era a morte, auto-infligida ou provocada. Para além da maioria das películas focarem a organização como uma entidade colectiva, alguns realizadores também optaram por dedicar biopics aos membros mais conhecidos (relembro, por exemplo, o extraordinário The Blazing Sword sobre a vida de Toshizo Hijikata ou até mesmo Okita Soji sobre o jovem espadachim homónimo). O mais estranho é que nessas adaptações, o comandante e líder máximo Isami Kondo quase sempre era relegado para segundo plano ou então esgotava-se no papel de mentor, havendo tradicionalmente uma preferência pelas figuras menos oficiais, e talvez por causa disso mais fascinantes do esquadrão. Ora, se Devil Commander não é uma biografia completa de Kondo - a cena inicial recria logo o sangrento incidente Ikedaya, uma grande vitória do shinsengumi -, ainda assim ela retrata o comandante de forma respeitosa mesmo quando o seu carácter inabalável e demoniacamente frio se manifesta ao aplicar as rígidas regras da milícia e enviar companheiros seus para a morte. Rapidamente apercebemo-nos que Toshikazu Kono nesta sua primeira obra não sabe muito bem para onde se virar: começa por pintar o cenário do terror e acaba por humanizar o capitão através de uma quantidade de cenas frouxas (com o interesse amoroso ou com a relação paternal com Okita Soji) que tentam, ao máximo, conferir uma afectividade que nunca esperaríamos encontrar em tão glacial estratega. É também caso para dizer que Kono, ao retratar os últimos dias do shinsengumi e de Isami Kondo, acaba por elevá-lo a estatuto de mártir aquando da sua rendição na Guerra, uma leitura que se não é exageradamente fictícia pelo menos deixa transparecer uma idolatração sempre perigosa de fazer e, neste caso, indevida.



The Temple of the Wild Geese (1962) de Yuzo Kawashima: ****
Pelo que sabemos das mais sonantes adaptações cinematográficas, a obra literária de Tsutomu Minakami parece conter duas obsessões primordiais: de um lado, o crime como corolário da condição social mas também afectiva, e do outro, a crítica da aspereza das entidades monásticas que, devido à sua hipocrisia prática e ao seu constrangedor e castrador poder teórico, favorecem chocantes actos de destruição ou rebeldia por parte dos oprimidos. Se na primeira categoria podíamos, de maneira exclusiva, incluir filmes como A Story from Ichigo de Tadashi Imai ou ainda Straights of Hunger de Tomu Uchida, as obras que contêm a presença ou degenerescência budista acabam por confundir as duas dimensões acima discriminadas, misturando crítica e compaixão de maneira assaz particular. Já em A House in the Quarter do ignorado Tomotaka Tasaka tínhamos essa presença do amor impossibilitado pelas regras sociais e religiosas que desencadeavam, como resultado desse desespero solitário, o famoso incêndio do Pavilhão Dourado. Porém, quem abriu as hostes no que a críticas monásticas dizem respeito foi o genial Yuzo Kawashima, antes de todas as outras adaptações, com este The Temple of the Wild Geese, uma portentosa obra que contradiz tanto o tom vagaroso, como a moral, a passos leve e até permissiva, com uma cinematografia apuradíssima que concentra toda a acidez do realizador, todo o seu desprezo (como dizia Shohei Imamura a respeito das marcas do seu mestre) pela autoridade e, sobretudo, pela hipocrisia que reside em todo o exercício de poder. No limite, poderia até excluir as interpretações rigorosas de Masao Mishima como Jikai, o odioso abade sacrílego, ou até mesmo Ayako Wakao como sua amante (a musa masumuriana com um papel, de facto, masumuriano) para vangloriar um só e determinante aspecto deste conto negro e claustrofóbico: a cinematografia. Basta olhar, com olhos de ver, para a maior parte dos enquadramentos (e são tantos!) e descobriremos inscrito na imagem e nos espaços um poder simbólico que os transcendem e aponta para as virulentas relações entre senhor (os monges, eles que deviam estar preocupados com a iluminação) e os "escravos", ao mesmo tempo criticando, através da imagem e não do texto, a hipocrisia reinante da castidade e as relações deterioradas com a espiritualidade. Porém, Minakami ao introduzir o aspirante a monge Jinen retoma a sua obsessão dos "crimes por condição social", juntando a essa dimensão a asfixia militar e o poder desmesurado que o abade adúltero constantemente pratica, aproveitando a sua condição social para, nas barbas do seu discípulo, se entregar à lascívia com a sua amante, enquanto Buda e as pinturas paralisadas dos gansos selvagens os observam. Jinen, tal como o espectador, usa a resignação e o silêncio como armas até ao fatídico dia em que o seu passado é revelado e o crime é desencadeado. Nesse momento, Kawashima, como tantos outros realizadores sérios, podia muito bem ter permanecido na reacção embriagada e conclusiva de Wakao ao descobrir que a "mãe ganso" tinha desaparecido do shoji e que o abade estava, afinal, debaixo da terra - a despeito de todas as evidências pragmáticas, os monges que confiam mais no mundo do que na espiritualidade, ironicamente põem-se agora com conjecturas em vez de se fiarem, como sempre fizeram até aí, nos dados físicos. Todavia, não é por acaso que a obra de Kawashima complementa e precede a obra de Imamura e, portanto, sempre se entregou à distância satírica que levanta o véu da seriedade, mesmo quando foi, ao limite, trabalhada: a cores, um conjunto de turistas visitam o painel restaurado, outrora roto pelo criminoso como se tudo o que tivéssemos visto fosse mera trivialidade do passado, ainda por cima ignorada pelos habitantes coloridos do presente. O falhanço da História residirá no falhanço da estória?



The Iron Crown (1972) de Kaneto Shindo: ****
Adaptando uma peça clássica cuja autoria se atribuí - embora haja dúvidas - a Zeami Motokiyo (1363-1443), The Iron Crown pretende rebuscar a estética cerimonial e etérea do teatro Noh para dissolvê-la no tempo presente, custe o que custar. É caso para dizer que a chancela Art Theatre Guild (apenas distribuiu o filme e não o produziu) não está presente por mero acaso, pois por esta altura  deve ser clara a extrema afinidade experimental que a geração ATG nutria pelos dispositivos teatrais e, principalmente, com a sua inclusão surreal na imagem cinematográfica: teremos mesmo de relembrar o chikamatsuano Double Suicide, o brechtiano Death by Hanging ou o idiossincrático Pastoral - To Die in the Country para provarmos o nosso ponto? Mais do que serem películas inspiradas em produções teatrais, todas comungam da mesma tentativa de imprimir um certo cunho intermundano, utilizando de forma deliberada uma linguagem teatral que conduz, por sua vez, a uma ambiguidade inquietante. Não nos equivoquemos quanto a esta última palavra. Por ambiguidade queremos dizer esta circunstância de, com iguais recursos e a mesma intensidade, coexistirem os contrários (sonho/vigília, passado/presente, seriedade/paródia) sem que nenhum deles se sagre vencedor no final, o que é o mesmo que dizer que a ambiguidade é parte integrante da estrutura e é um fim em si mesmo. Portanto, o teatral em Iron Crown não serve para desempenhar uma função determinada no fluxo do filme, mas corresponde a uma mundividência: não serão os cânticos Noh e todo o vai e vem dramático dessa esposa fatal que se vê forçada a demonizar para punir o marido adúltero e a sua amante, uma leitura mais profunda da fatalidade de uma traição, de todas as traições, e dos sentimentos nefastos associados a elas? Corresponderão os planos do palco, da orquestra e do narrador ao rio abstracto que subjaz e condiciona a descrição contemporânea, aparentemente mais real, dos personagens? Será o sonho parteiro do real, ou serão ambos forças inseparáveis que se complementam como numa dialética? O que dizer desta claustrofobia entrópica que imagina novamente conceitos tão antigos como fatalismo sobrenatural de uma vingança (maldito telefone!), ou até mesmo a acepção que a tragédia (grega e não só), sempre se debruçou sobre a tensão dos rituais corrompidos (neste caso, o casamento)? Kaneto Shindo empurra-nos para o delírio avant-garde (eu até diria psicadélico) e o mundo distorcido, temível e retorcido que nos apresenta corresponde à revitalização última do teatro como olhar sobre o mundo e as suas relações. Transformando essa mundividência através da mais recente sensibilidade, Shindo actualiza o mundo do fantástico como se fosse uma ocorrência palpável.



Tsugaru Folksong (1973) de Koichi Saito: ****
Tsugaru Folksong, primeira e única produção de Koichi Saito para o catálogo da Art Theatre Guild, vem no prolongamento da obra que vinha sendo desenvolvida desde o princípio da década de 70 com outros três filmes anteriores. Talvez condicionado pela sua aprendizagem como fotógrafo na Nikkatsu, Saito demonstrou uma paixão considerável pela captura da luz natural e pela filmagem em exteriores, sempre munidos de uma fotogenia espontânea sem qualquer mão artificiosa. Era uma estética que pretendia englobar o humano no décor natural (como no primeiro plano em que o mar, no background mas no primeiro plano em termos de presença, furiosamente se dobra em ondas enquanto uma goze aconselha a jovem cega a deixar para trás os amores), como se o último fosse sempre mais vigoroso do que o primeiro e como se o primeiro, o humano, sempre estivesse sujeito a modificar-se e a procurar-se tendo em conta essa verdadeira magia da paisagem. De facto, é essa dimensão transfiguradora da paisagem, por mais rude e inacessível que ela seja, que está em causa em Tsugaru Folksong, filme que joga com uma certa noção de primitivismo para, por um lado, renovar as ligações místicas que um casal escapulido da cidade pode ter com tal cenário e, por outro, chamar à atenção, nas entrelinhas e não só, para o facto das sociedades modernas simplesmente terem virado as costas ao valor da terra e do mar. Nesse contraste entre a solidão de uma terra fantasma e a redescoberta de uma pureza a que se quer dedicar a vida (a paixão pela rapariga cega personifica a própria relação que o protagonista terá com Tsugaru), o filme de Koichi Saito poderá ser visto também como uma canção lamentosa sobre os amores destinados a perecer. Ajudam a este fatalismo, os sons do shamisen, o som do vento, a cor escura do mar e os céus carregados de Tsugaru.
 


Preparation for the Festival (1975) de Kazuo Kuroki: ****
Baseado num romance auto-biográfico de Takehiro Nakajima, o argumento de Preparation for the Festival ficou dividido nas mãos de Toshiya Fujita e Kazuo Kuroki. Ambos os realizadores mais o escritor tentaram perceber qual dos dois seria a pessoa mais indicada para levar a adaptação cinematográfica avante e visto que a Art Theatre Guild conseguia financiar o projecto mais rapidamente do que a Nikkatsu de Fujita (que andava metida em delírios eróticos por esta altura), Kuroki assumiu as rédeas do projecto e pôs-se a filmar estas crónicas rendilhadas de uma aldeia perturbadoramente disfuncional. Se, ao que parece, a obra literária (quiçá influenciada pelo controverso "Guia para fugir de casa" de Shuji Terayama) focava a luta interior do protagonista, Takeo, mais concretamente o seu dilema de abandonar ou não a aldeia tão opressiva e claustrofóbica, na adaptação cinematográfica, Kuroki, ainda que conservando o mesmo espírito do romance de Nakajima, está bastante mais interessado em desviar-se e "perder-se" na multiplicidade dos outros habitantes, sendo que o jovem Takeo acaba por desempenhar a função de um agente passivo em vez de centralizar em si todos os desenvolvimentos da narrativa. Título que não deixa de conservar algum mistério, Preparation for the Festival descreve o tumultuoso clima rural japonês, pondo em prática um certo primitivismo comportamental que coloca todos os personagens - sem excepção! - a cometer acções em tudo aberrantes principalmente se fossem analisadas pelo olhar de um moderno citadino. Veja-se, portanto, o rol de personagens estranhos que vivem como se nada fosse: a família de dois irmãos criminosos, uma ninfomaníaca louca que regressa à aldeia depois de ser explorada sexualmente por mafiosos, o avô de Takeo que engravida a louca e pretende criar a criança, o seu filho e as suas duas amantes, enfim, como podemos sequer esquecer a mãe de Takeo que proporciona uma assustadora tensão edipiana, sobreprotegendo obsessivamente o filho e cuidando dele como se fosse a mais preciosa das posses? Se a esta atmosfera bizarra adicionarmos a passagem de uma idade a outra (e se o "festival" presente no título representa a idade adulta, então definitivamente aqui permanecemos nessas "preparações" ou "iniciações"), conseguimos vislumbrar de que maneira a película de Kuroki recria a particular atmosfera de crescimento num local onde todas as referências estão trocadas e onde a anormalidade é, de facto, normal.



Shiki Natsuko (1980) de Yoichi Higashi: ***
Ao assistir Shiki Natsuko a seguinte questão surgia-me frequentemente: será que na continuidade de No More Easy Life, o seu anterior filme rodado em 1979, Shiki Natsuko era a prova de que Yoichi Higashi no virar dos anos 80 desenvolvia uma obsessão temática pela angústia que toda a liberdade (ou libertação) acarreta? Não, substitua-se angústia (que é um termo demasiado carregado para atmosferas demasiado soltas), por placidez ou, se quisermos ainda ir mais longe, lassitude. Na verdade, é difícil não encarar as mulheres destes dois filmes como representações femininas que pretendem encontrar-se mas andam constantemente à deriva, ora sob o jugo de amantes (e mesmo essas relações são descomprometidas) ora seguindo os impulsos que permeiam ou possibilitam uma liberdade sexual, mas não só. Não é certo (como nunca é) que as intenções de Higashi sejam as de condenar certo egoísmo, certas escolhas ou então louvá-las como fervoroso arauto feminista. Como dissemos antes, são dois filmes com ritmos mornos, desapegados, lassos, que apontam para um processo descritivo que observa, mas abstem-se de tecer comentários. Existe mesmo uma espécie de voyeurismo (não só corpóreo, mas também), interessado em fixar em celuloide as respirações, os movimentos, os erros e as descobertas de mulheres que, no limitem, aprendem - como Natsuko dirá no final - que "a sua alma reside no corpo" e que esse corpo lhe pertence e a mais ninguém (será essa a simbologia que está por detrás da troca das fotografias despidas pelo trabalho, mais auto-determinado, de actriz?). Descrição desses anos 80 libertadores, que mais não fizeram do que passar o projecto de libertação da sociedade para o indivíduo, Shiki Natsuko pretende ser uma janela para entendermos melhor a história do feminino, do individualismo e da solidão descomprometida que sempre está associada a ele.



Mysterious Story - The Living Koheiji (1982) de Nobuo Nakagawa: ****
Duas velas ritualísticas abrem para uma cena de uma famosa peça de Kabuki. Um actor, Koheiji, interpretando o famoso líder Taira no Kiyomori crucificado de pernas para o ar recita o seu monólogo introspectivo enquanto o seu amigo Takuro acompanha musicalmente com o taiko e os sons místicos fundem-se com o olhar sedutor de Ochika que não só observa a performance da estrela, como muito delicada e maternalmente segura o seu marido tocador de tambor e quase ameaça espetar o gancho do cabelo no seu pescoço para gáudio do perturbado Koheiji. Esta ambivalência fatal e adúltera, esta troca de olhares ambígua que concentra sequencialmente a sedução, o amor, a dúvida e a morte percorre todos os setenta e tal minutos deste opus final de Nobuo Nakagawa, obra que poderia muito bem ser apelidada de - e não dizemos nada que, numa crítica na estreia do filme, Takuya Mori não tivesse já dito - experimento estoicista. Na verdade, a contenção formal deste terror abstracto pouco ou nada difere do espírito da produtora Art Theatre Guild, caracterizado por fazer muito com muito pouco e por transfigurar as limitações e o minimalismo em interioridade (cénica e, através dela, disposicional). Mas, voltemos à primeira cena completamente lapidar: o que vemos serão os bastidores cruéis de uma cena apresentada para um público que não nos é revelado? Será que a ausência desse público traduz um ensaio ou será a solidão deste triângulo (des)amoroso (solidão jamais abalada por outro personagem ou presença) uma fantasia de Koheiji que se perpetua num desejo distorcido e eterno pelo coração da maltratada Ochika: a mulher que divide e coloca a dúvida no mundo? Nos sonhos não há certezas. Multiplicando, então, as suspeitas até ao expoente do delírio (Quem é o pai da criança? Será Koheiji, de facto, imortal? etc), eis que Nakagawa encena - e encenar é mesmo a palavra de ordem - um inferno conjugal ditado pelo absoluto isolamento dos seus personagens em espaços que se desviam, a cada passo, da concretude  material, sendo por isso mesmo, esboços de purgatórios ou painéis fixos onde os personagens se confrontam e desvelam os medos interiores (e não terá sido essa concentração interior a razão pela qual não se mexeu uma só vez na câmara?). Mais incrível ainda do que todas estas descrições que roçam apenas a superfície seria contextualizar esta libertação dos cânones estritos do terror numa obra que sempre foi subserviente a regras. No seu testamento cinematográfico, Nakagawa, estimulado pelas desconstruções da ATG, depurou o terror, retirando o seu carácter sobrenatural e substituindo-o pelo onirismo à la Monzaemon Chikamatsu (ou se quisermos um equivalente ocidental, Caldéron de la Barca) que escrevia na sua famosíssima peça "Love Suicides at Sonezaki": "é triste o sonho do sonho". Esse onirismo - que como disse Luís Mendonça, "revela mão de mestre" - estende-se para lá da dicotomia entre vigília e sonho e também está bem presente nas canções e nos coros (completamente kabukianos), especialmente nos últimos minutos onde a canção do destino da presumível mulher adúltera se confunde com a da mãe que perdeu um filho e os dois pretendentes. Basta escutar tão estranha polifonia para estremecermos perante o mundo das sombras de que nunca saímos. E o que é mais horrível do que isto?



Nastasya (1994) de Andrzej Wajda: **
Decidido em casar fontes e relações tão heterógeneas, o polaco Andrzej Wajda levou para o grande ecrã uma versão teatral do Idiota de Dostoyevsky (aqui num longo diálogo rememorativo entre o Príncipe Myshkin e Rogozhin perante o cadáver da misteriosa Nastasya) utilizando dois actores famosos de kabuki que interpretam as três personagens. Estando o nome de Tsumasaburo Bando associado ao projecto, não será nada estranha a inclusão desse famoso onnagata no papel de Myshkin e de Nastasya, ele que é conhecido por dar vida ao eterno espírito feminino através de um minucioso trabalho de interpretação e transformação que, nas palavras do próprio realizador, provêm de uma franca admiração masculina e não de um mimetismo vazio. Estas duas realidades díspares, estes personagens tão diferentes carnalizados por um só actor são, de longe, a componente mais interessante de um filme passado no breu de uma sala, infelizmente um espaço demasiado cénico e limitado para fornecer uma verdadeira dimensão e sentimento cinematográfico. Claro que caracterizar a realização de Wajda como "teatro filmado" parece ser excessivo, porém é óbvio que as interpretações contam bastante mais do que tudo o resto. O problema é que também o modo como o romance foi compilado (numa espécie de longo flashback sem tempo nem espaço preciso - outra vez, adoptando a linguagem abstracta do teatro) parece, mais uma vez, tornar-nos demasiado conscientes do trabalho do actor (o que significa, distantes do personagem) e, impossibilitados por uma câmara que não nos dá a mesma presentificação corpórea quando frente a um palco, somos forçados a resfriar os ânimos e a cerebralizar algo que não devia ser assim tão cerebral.

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