30/03/15

Fragmentos de 2015/03/30



Okayo's Preparedness (1939) de Yasujiro Shimazu: ****
A cada nova descoberta cine-arqueológica, começa a ser criminosa a ignorância ocidental acerca do cinema japonês dos anos 30, principalmente a de um punhado de cineastas relevantíssimos que ainda hoje é como se não tivessem existido e exercido influência em toda a indústria, sobretudo, nos mestres do costume que tanta e demasiada reverência concentram. O que podemos esperar da massa crítica que só há pouquíssimo tempo descobriu a obra de um Mikio Naruse (que sempre esteve , como as Américas do Cristovão Colombo) e parece já estar satisfeita com a epifania tardia, agora que em vez da triple entente (Mizoguchi, Ozu, Kurosawa), afinal tínhamos um quarteto? Considerações críticas à parte, Okayo's Preparedness prova que a criatividade e o arrojo de Yasujiro Shimazu vão muito para lá do simples trabalho de estúdio e que a exploração dos sofrimentos femininos não é uma temática exclusiva nem de Mizoguchi, nem de Naruse. Habituado a um registo mais ligeiro de comédias quotidianas, Shimazu em pouco menos de uma hora esculpe a desilusão amorosa da professora de dança Okayo (sublime Kinuyo Tanaka!), que nem sequer chega a esse estatuto por responsabilidade do sujeito amado (o passivo Ken Uehara), mas pela sociedade que premeia os casamentos rápidos por encomenda, não dando tempo nem para os sentimentos maturarem, nem para os confessar devidamente. Através da resignação silenciosa de Okayo - e se bem que a situação narrada está confinada ao mais banal dos desencontros - Shimazu introduz uma segunda dimensão nos últimos quinze minutos que transfigura por completo a concretude, a actualidade e a contemporaneidade estética dos shomin-geki. Enquanto decorre o casamento do homem que ela ama, Okayo põe-se a dançar solitária no seu próprio mundo, enquanto somos transportados para um espaço abstracto kabukiano num tempo indeterminado. Bastavam-nos esses quinze minutos de expressão corporal dançada em que os décors e a presença dos pequenos diabretes ditam toda a simbologia, para conseguirmos extrair a densidade emocional de um primeiro amor obliterado pelo real (ou pelo destino que puxa a corda para trás a cada nova tentativa de aproximação). Será esta rêverie onírica uma demonstração de que o quotidiano esconde a profundidade de um mundo oposto, poético, ou simplesmente enuncia a transformação artística de um estado de alma que permite o consolo? Definitivamente, Shimazu segreda-nos: "a tristeza torna-nos sensíveis para o belo."



The Adventures of Kosuke Kindaichi (1979) de Nobuhiko Obayashi: ***
Uma nova incarnação do famosíssimo detective Kosuke Kindaichi e do seu fiel companheiro e rival, Inspector Todoroki, passa o tempo todo à procura de uma cabeça de estátua roubada, como se estivesse a querer recuperar essa parte do corpo humano que representa a sanidade, a racionalidade e bom senso. Ora, Nobuhiko Obayashi e os seus companheiros - dois anos volvidos daquela estreia abrasadora que foi House - parecem ter novamente prescindido qualquer atributo ou parte anatómica que metaforicamente representasse a ordem e a regularidade. O estilo radicalmente pop do realizador, tão pop que é mais experimental do que os experimentais, pode até não ter pés, nem cabeça mas é nessa ausência de fio condutor único e nessa negação entretida da coerência ficcionada (perdemos facilmente a conta de todos os momentos meta-cinemáticos) que encontramos um universo colorido, fragmentado e que pertence, sem tirar nem pôr, ao sonho acordado que a canção final, tão catchy como aliás é toda a banda-sonora funk e progressiva, faz alusão quando chama Kindaichi de "Mr. Dream". Na verdade, a incoerência propositada de Obayashi e a sua incrível capacidade auto-referencial poderá ser vista como desrespeitosa em relação ao legado clássico do detective, o equivalente japonês, tanto em termos literários como culturais, de Sherlock Holmes. Durante os anos 70, as aventuras de Kindaichi foram ressuscitadas no cinema por personalidades como Kon Ichikawa, que fez delas autênticos sucessos comerciais, ou até mesmo Yoichi Takabayashi, que assegurou a sobrevivência da, por essa altura, moribunda, Art Theatre Guild. Portanto, contrariamente às adaptações polidas dos seus predecessores (que eram muitas em 79) Obayashi não desejou filmar a típica narrativa whodunit associada à obra literária de Seishi Yokomizo, nem mesmo adaptar a dita obra mas antes criar de raiz um mito anacrónico (ou melhor deslocadamente seventies) onde todas a referências aos vários produtos culturais relativos a Kindaichi, e não só, inundassem o ecrã e fornecessem um insano e descontrolado sentimento kitsch de tributo: tributo cinéfilo (por exemplo, os Kindaichis interpretados por Chiezo Kataoka nos anos 40, projectados na tela diante o novo Kindaichi ou ainda a referência hilariante de Proof of the Man com Mariko Okada a fazer uma breve aparição), tributo autoral (a leitura e análise dos livros originais pelos personagens e pelo próprio Kindaichi, e aquela cena conclusiva em que vemos o próprio Seishi Yokomizo receber uma mala de dinheiro pelos direitos de autor da sua obra e claramente confessar para a câmara: "Eu não quis aparecer neste filme") e, finalmente, tributo do próprio ou obayashiano (com o realizador a lançar referências constantes à sua carreira publicitária - Mandom no fim de uma escadaria: lembram-se do anúncio com Charles Bronson?  - e cinematográfica, citando dois dos seus filmes anteriores: House num poster e If She Looks Back, It's Love num diálogo). O tsunami Obayashi (chamo-o assim pela incrível capacidade de condensação no plano, como uma onda gigante que nem o céu deixa ver) não se apraz em fazer um tributo asseado, com todas as coisinhas no seu devido lugar. Na acepção obayashiana, as despedidas têm de ser feitas precisamente por tudo se tentar e tudo se esgotar ao mesmo tempo (e como seria certeiro se o título fosse "para acabar de uma vez com Kosuke Kindaichi"). A estética irreal da referência e do questionamento induzem ao maravilhamento do fantástico e do sonho.



Disciples of Hippocrates (1980) de Kazuki Ohmori: ****
Durante dois anos consecutivos, Kazuki Ohmori (ou Omori, dependendo das transliterações) filmou para a Art Theatre Guild. O resultado foram dois seishun-eiga, filmes de juventude altamente apreciados pela mítica produtora que apostava também em novos realizadores: Disciples of Hippocrates em 1980 e, no ano seguinte, Hear the Wind Sing, este último baseado no primeiro romance do hoje célebre Haruki Murakami. Por esta altura, a estilística de Ohmori, cineasta que começou a carreira a rodar pequenos filmes em 8mm como Nobuhiko Obayashi, Yoichi Takabayashi, Sogo Ishii, etc, caracterizava-se por misturar algumas formas heterogéneas e estar sempre aberto para experimentalismos no que à imagem e à arte de narrar dizem respeito. O caso mais radical desta construção livre e deste gosto experimental comprova-se em Hear the Wind Sing, onde o realizador aproveitava o carácter disperso do romance homónimo para disparar em todas as direcções e renegar a ordem tradicional da narrativa, ecoando finalmente as palavras do mestre Godard (e posters da obra nouvelle vague de Godard aparecem nos décors de ambos os filmes): "uma história deve ter um começo, um meio e um fim, mas não necessariamente nessa ordem." Em Disciples of Hippocrates, já pressentimos esse gosto pela ordem da desordem (que aqui, felizmente para a experiência, ainda é só um presságio) mas o que ressalta mais é a atenção dada aos detalhes e aos personagens pequenos e secundários, que podem até aparecer durante meros segundos mas acabam por preencher a narrativa de segmentos coloridos (percorre os tons mais claros aos mais negros) e momentos que tornam rica e diversa a atmosfera juvenil de um dormitório de estudantes do último ano de medicina. Ohmori descreve a idade intermediária e problemática (não se é ignorante nem conhecedor, mas apenas discípulo) que se situa entre o fim da adolescência e a entrada no mundo adulto sendo que o hospital simboliza, acima de tudo, o local onde se reverencia, a contra gosto, a ordem estabelecida e se assume constantemente a ignorância e simultaneamente a habituação a esse mundo gélido e distante para finalmente integrá-lo (quando, porventura, se passar o exame final, esse monstro que desencadeia instabilidade emocional, todo o tipo de psicoses e a certeza que ninguém é muito diferente daqueles que estão na ala psiquiátrica). Entretanto, alguns dos estudantes sonham ser o protótipo do médico ideal (um poster de Red Beard de Akira Kurosawa está colado na porta do quarto de um estudante particularmente cinéfilo), outros ouvem cegamente os seus superiores (um deles, interpretado pelo genial Yoshio Harada, prega um ralhete dizendo que na medicina o essencial é a resistência visto que isso é a única coisa que resta a um estudante de medicina) e o nosso protagonista - mais apagado, como que perdido nos jogos de responsabilidade e expectativa - acaba por secretamente cometer o erro da sua vida para não cair nas más graças dos seus colegas e superiores. Disciples of Hippocrates fixa, melhor do que qualquer outro filme que conheça, as amarguras, a ansiedade e o medo de nos confrontarmos ou sermos aceites por uma instituição, que permanece muda e de bata branca, à nossa espera. Tendo em conta a invisibilidade latente desta agressão, Ohmori quer abraçar de braços bem abertos os agredidos, ou seja, os caminhos e as histórias desta geração à beira de um ataque de nervos. Filmando-a com grande afectividade pretende a partir daí construir um sentimento múltiplo de compaixão. Portanto, quando chegamos ao final, é evidente que o que observámos, sem nos termos apercebido, foi a luta nauseante de um processo de crescimento e como sucede em todas as lutas, uns sobrevivem e outros ficam no campo de batalha.



Kaisha Monogatari - Memories of You (1988) de Jun Ichikawa: ****
Uma das grandes revelações do final dos anos 80, uma época particularmente triste para o cinema japonês que via os grandes estúdios definharem pouco a pouco, foi a obra solar de Jun Ichikawa. Para os entendidos mas também para os mais leigos, é possível ver nas entrelinhas dos gendai-geki de Ichikawa uma revitalização de uma estética que remonta a Ozu e que com Ozu tinha ficado por explorar. Não tanto pelo género escolhido (os filmes sobre o tempo presente, sobre as famílias e sobre as rotinas diárias são uma constante nas cinematografias orientais, principalmente na japonesa: por isso muitas vezes é um exagero comparar tudo o que seja mais rotineiro a Ozu), mas muito mais pela abordagem que, a despeito das diferenças formais (e o formalismo ozuniano não pode, nem deve ser replicado sob pena de o parodiarmos ou travestirmos), encontra o mesmo núcleo comum, o mesmo terreno de aceitação ataráxica face às mudanças sociais, face ao fim das gerações e dos ciclos de vida, em suma, face àquele conceito tão difícil de apurar, no caso japonês: o conceito de modernidade. Na sua segunda longa-metragem, Kaisha Monogatari (literalmente traduzido por História do Trabalho) Ichikawa várias vezes roça uma descrição profundamente absurda e melancólica de um velho trabalhador assalariado que está prestes a reformar-se e olha para o seu passado de 30 anos na mesma empresa como um grande dia que rapidamente passou e nada mais permitiu fazer. Agora que a reforma está próxima, os sonhos pálidos e esmagados de liberdade (simbolizados pela presença do jazz, essa música da livre improvisação tocada por gente impertinente, como diz um dos colegas) e juventude (representada pela paixão platónica por uma nova trabalhadora) tornam-se mais vívidos numa mistura confusa de quem já vai muito tarde para desejar seja o que for. Esta tensão e mal estar silenciosos raramente são libertados, quer positiva quer negativamente, e muito menos de um só rasgo. Não há momentos estritamente determinantes que mudem o panorama aflitivo do nosso personagem: não há amores que o salvem, não há uma doença terminal, como acontecia em Ikiru, que acordava o sentido da morte e, por conseguinte, a necessidade de vida de um sonâmbulo funcionário público, um personagem porventura numa situação muito semelhante à do nosso salaryman em Kaisha Monogatari. A causalidade diegética, que fornece sempre grandes desenlaces e soluções, é interrompida por um fluxo que mantêm constante a tensão resolvendo-a progressiva e lentamente apenas numa aceitação silenciosa das pequenas e ínfimas coisas, que - muito importante - nunca são grandes coisas (isso seria um truque minimalista), mas que se mantêm sempre fragmentárias e sujeitas a interpretação. Isto é o traço ozuniano, o traço dos pequenos momentos enquanto pequenos momentos, que Ichikawa conseguiu transpor, não sem adoptar uma atmosfera mais opressiva, sinistra e mais moderna para convir melhor ao seu próprio tempo. Kaisha Monogatari é o retrato do Japão que Ozu temia e, porventura, vaticinava. Um lugar onde os sorrisos estão mais apagados e as famílias já se encontram completamente desintegradas e à deriva, um lugar mais solitário onde as relações no trabalho são mais proeminentes do que quaisquer outras. Na senda dessa representação nacional, que sentido dar aos momentos em que a câmara de Ichikawa se desvia dos seus personagens e filma as ruas da cidade e todo o tipo de locais ou multidões de pessoas, completos estranhos ao drama mas que parecem ter uma vida própria, apenas induzida e imaginada, fora dos limites da narrativa? São elementos centrífugos, tão centrífugos como a estética dos pequenos indícios que filma, apesar de tudo, nas alturas de um ponto-de-vista omnisciente, que concede a mesma dignidade a tudo e todos, exactamente como acontece no plano aéreo dos créditos, o plano divino que observa a cidade e todas as vidas em simultâneo por mais rotineiras e insignificantes que possam parecer. Ichikawa filma a vida como uma sucessão de momentos e movimentos. Sem a causalidade totalitária, que parece resolver por si só os problemas, resta-nos uma imagem viva do que é a vida para os que a vivem realmente: uma aceitação das pequenas tragédias e das contingências.



Okaeri (1995) de Makoto Shinozaki: ****
O sempre atento Donald Richie, um dos maiores entusiastas de Okaeri (traduzido no mercado inglês por Welcome Home, aquilo que se diz quando alguém chega a casa), escreveu assim: "O fantasma de Une Femme Douce paira na superfície deste filme e o espírito de Bresson está sempre por perto. Mas neste trabalho igualmente lúcido, a mulher doce vive e diz-nos que a vida estruturada não é a real." A comparação com o estilo bressoniano não é um mero capricho do respeitado autor: a austeridade, o laconismo e a ausência de pontos divergentes possibilita uma concentração rigorosa dos esforços e das intensidades, nesse momento onde através da máxima densidade formal é expectável que se atinja a maior libertação espiritual. E tal e qual como em Une Femme Douce, Makoto Shinozaki pinta os desenvolvimentos de uma relação conjugal, mas em vez de bordar pessimismo em toda a passagem de tempo que anula o projecto a dois (como fazia Bresson e Dostoievski no original), opta por revelar intimamente o lento e doloroso processo de uma devoção que não é obrigatoriamente produzida a priori por um sentimento amoroso, mas que se descobre, de etapa em etapa, de lágrima a lágrima, de necessidade em necessidade. Na esteira da geração dos cineastas de Moe no Suzaku, Maboroshi ou, depois, Eureka, Okaeri é um filme que esculpe o silêncio e dedica-se quase em exclusivo à presença corpórea dos dois amantes, pois as palavras são mera extensão da imagem: acompanham-na mas nunca substituem o seu poder fascinante. A câmara de Shinozaki - tal como a de Tsai Ming Liang num Vive L'Amour - também não se coíbe em ficar parada, pacientemente, à espera de um milagre comovente ou de uma epifania sentimental. Fique isso provado num dos planos mais comoventes, que dura cerca de cinco minutos - embora o tempo interior não possa ser contabilizado desta maneira -, onde Kitazawa cuida da alucinada Yuriko e juntos abraçam-se enquanto ela chora sem quaisquer defesas perante uma câmara que persistentemente tenta deduzir a interioridade a partir da mais exposta exterioridade. A descida psicótica de Yuriko poderia até ser mal-interpretada (e foi por Tony Rayns que falou de necessidades afectivas cruéis) como um dispositivo que reabilitasse a ideia velha e gasta do cavalheiro que salva sempre a mulher fraca, porém, Richie parece acertar quando descreve a narrativa nestes modos: "um casal jovem típico que volta à sanidade através da loucura da esposa". Na verdade, Okaeri deixa entrever uma representação de amor mútuo e de uma exclusividade e cuidado absoluto que subverte a lógica racional do típico casamento japonês. E sabendo que não haverá "depois da loucura", o que fica para ver? Uma pietà incrível e cheia de ternura, os dois amantes ao longe, uma árvore de esperança na areia negra, o mar inaudível e o "bem-vindo a casa" mudo, mas que finalmente ganhou todo o seu sentido.



Kizuna (1998) de Kichitaro Negishi: **
Kizuna (a tradução não oficial dá pelo nome de Bonds, vínculos) é um filme de gangsters atípico. Em primeiro lugar porque se serve dos denominadores comuns do yakuza eiga para desenvolver um drama intimo que pouco ou nada tem a ver com as questões primordiais desse género tão específico. Quando logo na primeira cena, assistimos a um rufia ser punido por outro yakuza quando o primeiro intimidava um casal numa zona que não era da responsabilidade do seu clã, não seria muito descabido esperar pelos típicos cenários de guerra entre gangues e todo o tipo de jogos de poder com um clímax sangrento. No entanto, ao ver o protagonista Tetsuro (Koji Yakusho) num estado meio letárgico (a vaguear pela cidade, a recolher as mensalidades de alugueres, e a ouvir insistentemente um disco de música clássica) podemos depreender o ritmo e o mood que Kichitaro Negishi escolheu deliberadamente para esta pseudo-descontrução. Isto prende-se com o segundo motivo da anormalidade de Kizuna enquanto filme yakuza: o seu vagar apático promete-nos uma revelação qualquer que não se chega a concretizar na totalidade. Não será necessário relembrar Sonatine e Ryuji, dois yakuza eiga atípicos que conseguiam, através da negação ou variação dos lugares comuns, criar autênticas representações livres de constrangimentos e dissimulações onde "o outro lado" do género surgia com uma força comovente, poética e real. Mas em Kizuna, o ritmo pausado dá lugar a uma problematização do passado, um protagonista que encara o papel de mártir e uma investigação policial que decorre ao mesmo tempo e que, infelizmente, parece pertencer a outro filme. Mesmo a inconsistência das interpretações reforça a mesma ideia de desfasamento entre ideias e intenções: por exemplo, Koji Yakusho balança entre a monotonia e a comoção e Ken Watanabe, como polícia, é um pouco mal aproveitado. Os últimos quinze, vinte minutos são bastante emocionais (e Yakusho prova que, a despeito da confusão, é um excelente actor), mas não deixam de estar um pouco perdidos num todo que é mais desconexo do que parece.



Genpin (2010) de Naomi Kawase: **
Naomi Kawase filma sobretudo documentários pessoais onde, não só os temas abordados são preocupações que lhe dizem respeito (a maternidade, a relação originária com o mundo natural, o poético no prosaico: preocupações autorias, poderíamos dizer) como a própria câmara, como aliás afirma Arnaud Héé no vídeo introdutório no DVD de Genpin, assume uma extensão da própria realizadora, flutuando sempre uma presença de um "eu" que não se esvaí, mas observa, regista e participa nos temas filmados. Após o intimismo polémico de Tarachime, onde Kawase filmava o parto do seu próprio filho de maneira despojada e, alguns diriam, exploratória, Genpin retoma a temática da maternidade à flor da pele, documentando o ofício desgastante de Tadashi Yoshimura, um velho obstetra que utiliza métodos naturais para acompanhamento da gravidez e defende um parto sem qualquer intervenção hospitalar, o mais natural possível. O documentário dedica muito do seu tempo a ouvir os depoimentos das mulheres que procuram este método alternativo, quase sempre confessando más experiências passadas com a medicina moderna e criticando principalmente as cesarianas. Valorizam as lágrimas, a entrega primariamente simbólica à natureza do parto e fazem-no em pequenas reuniões e encontros, expressando-se (perante a câmara ou perante Yoshimura) em grupo. Se por vezes os relatos perante a câmara podem assumir uma dimensão de reportagem que poderia ser mais contida, a verdadeira intensidade reside nas cenas de parto em que vemos surgir, diante da câmara, esse aparelho de superfícies, uma transfiguração mística dos rostos, dos corpos e das vozes como se as mães fossem só uma mãe e se desligassem da sua individualidade, morressem e depois renascessem com um bébé nos braços. Genpin representa, finalmente, a busca de Kawase em fixar a intimidade e especificidade feminina, talvez pretendendo recuperar o processo pessoal da mãe que mal conheceu.



My Man (2014) de Kazuyoshi Kumakiri: ***
Kazuyoshi Kumakiri tem um dos percursos mais interessantes do cinema japonês contemporâneo, onde faltam não só vozes distintas que rumem contra a estandardização mas também a coragem que marcava as cinematografias de outrora. O polémico My Man continua o trilho autoral obsessivo da representação de locais e pessoas inconsoláveis, usando uma situação em tudo sensível para abrir bem o espectro do desconforto e quiçá abordar a questão de um ângulo bastante diferente e chocantemente (tendo em conta os nossos códigos sociais) mais desafectado. Começamos nos destroços: Hana (Nikaido Fumi), uma menina de dez anos sobrevive a um sismo violento e descobre num abrigo de refugiados que toda a sua família foi dizimada. Lá encontra um homem nos seus vinte e muitos anos que a decide estranhamente adoptar e preencher a função do pai ausente. Jungo (Tadanobu Asano) não é um homem qualquer e também ele não tem raízes nem laços que o apeguem a esta terra. A sua presença dir-se-ia sinistra se não fosse a réstia de dúvida que nos faz acreditar na sua humanidade. E, em rigor, Kumakiri acirra as dúvidas quando às questões humanas mesmo quando as acções desta paternidade encenada e improvisada rompem pelas costuras e se instala uma perturbadora tensão sexual, apenas consumada naquela tenebrosa cena onde metaforicamente sangue jorra e enche toda a casa, como se o acto sexual entre pai e filha marcasse o início do pecado e o fim literal da inocência. A partir daqui, My Man enegrece cada vez mais e cada vez mais vai apontando para o rasto de dor e destruição que uma relação destas (mesmo consentida por ambos) suscita e sugere. Para um espectador comum, todavia, Jungo será o abusador e Hana, a abusada, mas uma leitura mais atenciosa da cena final (e de outras que já nos vinham preparando para tal desfecho) diz-nos que nada é assim tão preto no branco. Os últimos minutos até relembram as palavras de João Bénard da Costa sobre o final refinadamente ambíguo de Él de Luis Buñuel: "Aos ziguezagues, é talvez a súmula e a soma desta obra (...), que nos impede qualquer certeza: quem são os "normais" e quem são os "anormais"; o que é deformar a realidade ou o que é conformar-se a ela? Que valores (psicológicos, morais ou estéticos) presidem a este universo?" De forma pertinente, suspendem-se os julgamentos de valor mais imediatos e corrosivos e ficam as seguintes questões no ar: "quem exerce o poder na relação? Quem é o abusador e o abusado: serão os dois ou não será ninguém? Será o poder provocante do sorriso de Hana uma ilusão de um psicótico decadente ou é precisamente essa a razão da degenerescência e da queda de Jungo? "Invertendo-os todos," Kumakiri "conduz-nos à negação da negação", diria Bénard e subscreveríamos nós logo a seguir.

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