11/03/15

Fragmentos de 2015/03/11



A Woman Crying in Spring (1933) de Hiroshi Shimizu: ****
"Este tempo suspenso, este espaço fora do mundo, ao mesmo tempo confinado e cheio de recantos, esta penumbra luminosa, as conversas de costas para a câmara (...) estas personagens com olhares intensos que pouco se entregam: tudo isto participa na epifania de um universo que se inscreve fortemente no ecrã e na memória do espectador." As palavras não são minhas. Retiro-as de uma crítica de Claude Rieffel que se esforça em replicar a atmosfera particular deste A Woman Crying in Spring, o primeiro filme sonoro de Hiroshi Shimizu e aquele que granjeara os maiores elogios de Yasujiro Ozu aquando da sua estreia. O lendário realizador estimava tanto o filme que via escrito nele, pela primeira vez (?), novas possibilidades da tecnologia sonora na construção narrativa, especialmente na forma como os silêncios, as canções e os barulhos distantes preenchem dramaticamente uma cena. Na verdade, A Woman Crying in Spring não contêm apenas ensinamentos sobre o uso  do som e as suas ramificações, mas é também um tratado sobre iluminação (ou os jogos de luz que existem na sua carência) e sobre filmagem em exteriores. Shimizu, portanto, colocou esta história de mulher(es) melancólicas na distante, glacial e invernosa (a Primavera, e tudo aquilo que metaforicamente representa, só existe mesmo no título) Hokkaido, um local onde mineiros e anjos caídos se encontram. A primeira cena num barco discrimina a disposição geral da película: homens que nada têm a perder preparam-se para aceitar um novo trabalho num local isolado, acompanhados por uma pequena criança e um conjunto de mulheres que, estando exactamente na mesma situação dos mineiros, vão para a terra de ninguém. Os sons de Hokkaido são sons de abandono (os sinos dos cavalos, um barco que apita lá ao fundo, nem se sabe onde), as paisagens ainda mais desoladas são (neve que caí, a que permanece no solo, a escuridão da mina) e os espaços privados quase sempre públicos (o dormitório colectivo dos trabalhadores e o bar onde homens e mulheres travam e aprofundam conhecimentos de si próprios). Nesta atmosfera gélida, Shimizu adapta a câmara aos seus locais, arranjando sempre novas maneiras de transfigurar as imagens e tornar sempre presente a componente natural e genuína dos seus cenários (por exemplo: impede parcialmente uma luta de ser vista por um barreira de neve). Mas talvez a cena mais pungente e a que muda completamente as coordenadas da narrativa seja a final: quando a dona do bar e mãe da única criança, uma personagem que não poderíamos dizer ser a principal até então, sacrifica a companhia do protagonista masculino e aconselha uma das suas empregadas, Ofuji (a rapariga que chorava no navio) a fugir com ele. Nessas últimas sequências de fuga, nem o mineiro nem Ofuji aparecem mais (e já antes tinham os dois ficado completamente na penumbra de um quarto, incapazes de se verem e serem vistos por nós). A câmara, na contramão da expectativa do espectador, insistentemente filma o rosto desencantado da dona do bar acompanhando o homem que procurava o mineiro e distraindo-o com canções e álcool. Aqui, a intensidade de Shimizu (que é a intensidade da contenção) atinge o seu paroxismo: a tonalidade das canções (primeiro a dela e depois as dos outros no background) é completamente esborrachada pelo contexto em que são cantadas. Da mesma maneira, o som do navio a partir (sem sabermos se a fuga dos dois amantes impostos foi realmente concretizada) funde-se melancolicamente com a luz sombria do quarto e o choro triste e resignado da mulher. Uma janela ao vento e à neve. Só assim poderia terminar este filme de almas sem dono.



The Adventure of Tobisuke (1949) de Nobuo Nakagawa: **
À primeira vista, The Adventure of Tobisuke poderá parecer um devaneio precoce na filmografia variada, mas com o horror a assumir género predilecto, de Nobuo Nakagawa (Nobuo e não "Nabuo" como António Rodrigues escreve, por duas vezes, na sua folha da Cinemateca). Uma história filmada por sketches, como se fosse um livro de ilustrações infantil, deixa Nakagawa explorar as potencialidades da linguagem e dos trejeitos caricaturados à Looney Tunes (veja-se logo o gag inicial do esconderijo fora de campo que por ser assim é-o também dentro de campo) mas com forte inspiração folclórica, encenando uma história que têm tanto de grotesco como de moral. O marionetista Tobisuke encontra uma menina que se perdeu da mãe. Após a salvar de um oni que a queria comer, Tobisuke perde a capacidade de contar números, o que impossibilita o seu trabalho itinerante como animador de crianças. A menina e o adulto abonecado (interpretado por Ken'ichi Enomoto, uma das grandes estrelas cómicas japonesas dos anos 30 e 40) viajam por várias terras na esperança de encontrarem a mãe perdida e um fruto com poderes mágicos (a magia da vontade, como diz a menina) que restituísse a memória ao marionetista. Narrado em off por um contador de histórias que se dirige abertamente ao público, The Adventures of Tobisuke aos poucos vai misturando, com alguma imaginação, o mundo infantil e naif de um road-movie feérico com o imaginário do terror mais subliminarmente adulto. Saltando de situação em situação e de perigo em perigo, os nossos dois heróis vão penetrando nos cenários mais tenebrosos e ominosos, quase sempre batizados com nomes sugestivos em que a palavra morte aparece mais do que uma vez e onde travam conhecimento com criaturas amaldiçoadas (a rainha das aranhas, uma mulher assassina, os onis) que inexplicavelmente procuram sempre a carnificina, a intimidação e a violência. Desde os décors surpreendentes (que assumem o traço forte e carregado de pinturas infantis com formas e vegetações que parecem ter saído de quadros surrealistas) a um ou outro efeito especial de destaque, eis que Nobuo Nakagawa encontrava, até na mais inocente das histórias, todos os ingredientes da estética do horror à japonesa que desenvolveria posteriormente na Shintoho durante os anos 50 e 60. O final feliz e simples (raramente os finais são a coisa mais interessante nos contos infantis) poderá ou não esconder uma segunda leitura. Relembre-se que apenas quatro anos tinham passado após a derrota japonesa na Segunda Guerra Mundial e as palavras do narrador ("Eles chegaram são e salvos porque nunca duvidaram deles próprios") assumem uma outra dimensão se as transportássemos para o próprio povo japonês que na altura ainda estava sob domínio e influência americana. Seriam os americanos os demónios que não deixam ver a mãe tão desejada e redentora debaixo do Monte Fuji, símbolo tão nacional como o sol nascente? Qualquer interpretação desta espécie é supérflua, no entanto, encontramos dificuldade em não cair em tentações simbólicas.



The Crowded Train (1957) de Kon Ichikawa: ****
Há muito que esperava pela oportunidade de verificar as comédias de Kon Ichikawa: autênticos marcos do género, pouquíssimo vistos, mas bastante reverenciados pelos especialistas. Graças à Cinemateca, que este ano resolveu apostar nas Comédias Japonesas (como se não houvesse decisões mais criativas de programação, tendo em conta a variedade esmagadora da cinematografia japonesa), tive o prazer de finalmente conferir The Crowded Train, uma vertiginosa descida ao mundo infernal da empregabilidade jovem com uma concepção bastante peculiar de humor negro. Resta saber se as outras comédias do realizador pertencem a este registo tão satisfatório (falo de Mr. Pu, A Billionaire, The Woman Who Touched the Legs, etc.) mas não deixa de ser estranha a quase total ausência deste filme do catálogo da Cinemateca de Ontario editado por James Quandt. Também no famoso texto de Donald Richie, "As muitas facetas de Kon Ichikawa", The Crowded Train não figura em nenhuma das duas listas de filmes (clareza/ escuridão) nas quais, segundo o próprio autor, se comporiam e definiriam as duas únicas tonalidades da sua obra. Com efeito, Train não é luminoso o suficiente para podermos rir, totalmente ausentes da crítica mordaz que se desenrola à frente do nosso nariz, nem tão pouco apresenta uma negritude forte o bastante para desesperarmos. O humor e a crítica hiperbolizada (e o hiperbólico é quase sempre desesperante, não é preciso ler Kafka para sabermos) balançam um no outro e criam tensões admiráveis, percursoras da obra de um Ko Nakahira, mas principalmente de um Yasuzo Masumura (que em 57 tinha acabado de iniciar a sua carreira como realizador no mesmo estúdio de Ichikawa, a Daiei). Raramente se atribuem sucessores à obra de Kon Ichikawa maioritariamente porque, tal como o próprio enunciou várias vezes, participou em todo o género de filmes, no entanto, não é arriscado considerar The Crowded Train uma inspiração confessa do cineasta Masumura que, ao longo da sua carreira, iria abordar o mesmo tipo de comentário social com a mesma agressividade simbólica e o mesmo horror pela massificação dos comportamentos numa sociedade sem travões à beira da caricatura e da psicose. Ele mesmo diria num texto deveras elogioso apelidado "O Método de Kon Ichikawa": "Os enquadramentos de Ichikawa habitualmente expressam ou apontam para algo mais. (...) Não será embaraçoso e patético apresentar o drama humano usando exclusivamente um realismo directo? Ichikawa não representa o humor, a ira, a tristeza e a alegria da humanidade com toda a sua crueza, mas pelo contrário, observa-a com um olhar irónico e distanciado, sublimando-o através do simbolismo, portanto conferindo a todo o trabalho uma beleza unificada. De que maneira podemos falar de simbolismo e ironia nesta paródia visceral? Vejam-se, por exemplo, os sucessivos discursos de encorajamento dos responsáveis pela formação daqueles que sairão de uma jaula para entrarem numa ainda maior. O discurso de graduação à chuva (incrível mau agouro para o que virá a seguir) faz um círculo perfeito e cáustico com o discurso final para as crianças incrédulas (ainda não susceptíveis de conformação ao mundo das mentiras adultas) que assistem às mesmas palavras esperançosas que não coadunam com a realidade selvagem e precária que circunda todo um país. Tamio Moroi, o jovem licenciado que inicia a sua viagem no mundo das obrigações adultas despedindo-se das suas amantes com uma terrível dor de dentes (que se arrasta, mas permite uma dolorosa adaptação), mistura-se com as multidões a perder de vista, no comboio lotado, nas ruas, na fábrica de cerveja (dois planos contrastam o magote com um conjunto empilhado de garrafas), até nos momentos de relativa descontração como uma visita às lojas da baixa, onde ninguém compra nada e toda a gente apenas se limita a ver o que poderiam ter através de um vidro. Os espaços privados são igualmente constrangedores e desolados. Ichikawa parece atribuir também um significado metafórico às doenças corpóreas e mentais. As sucessivas visitas ao médico simbolizam o mal estar geral que vai apoderando as forças inconsequentes dos trabalhadores, já a loucura dos pais de Tamio (acontecimento que muda radicalmente a narrativa para o delírio fantasista) parece apontar para a degenerescência das gerações mais velhas que acreditaram e fomentaram piamente este sistema não menos louco do que as suas ilusões. A extensão da crítica vai obviamente bem longe: o Japão é o verdadeiro comboio lotado, demasiado lotado para sonhos e aspirações individuais que não estejam profundamente inseridas numa lógica de empregabilidade fortemente demarcada, vitalícia e esclavagista. Trabalhar, trabalhar, para desaparecer sem deixar vestígios.



Did You See the Barefoot God? (1986) de Kim Soo-Gil: ****
Ao lado de nomes como Koichi Goto, Hojin Hashiura, Asai Shinpei ou ainda Juro Kara, Kim Soo-Gil pertence ao mesmo conjunto de cineastas que não conseguiu escapar (ou se alguns escaparam não foi sem francas dificuldades) ao circuito das primeiras obras financiadas pela Art Theatre Guild. Por motivos ignotos ou não, a carreira inusitada e quase one-hit wonder de Soo Gil coincidiu com os últimos dias da mítica produtora independente que só produziria apenas mais um filme, Bound for the Fields, the Mountains, and the Seacoast de Nobuhiko Obayashi e fechava as portas precisamente no mesmo ano de 1986, intervalando esse silêncio infeliz com algumas distribuições até 1992. Portanto, Did You See the Barefoot God? representa o último reduto do seishun-eiga (filme de jovens) produzido pela ATG, produtora que corajosamente sempre favoreceu novos talentos e novas visões cinematográficas, no fundo, colocando várias vezes e principalmente a partir dos anos 80, cineastas jovens a filmar a própria juventude com uma liberdade criativa quase total e sempre com uma acuidade pessimista jamais retomada pelos grandes estúdios. Barefoot God é um filme de fim de era sobre o fim tormentoso de uma idade, a adolescência. É um filme não só sobre as projecções que nos atormentam o presente impotente (o desejo de superação do estado intermediário entre o adulto e a criança pela via nobre, sendo pintor ou poeta quando ainda tão pouco se sabe sobre o chão que se pisa) mas é principalmente uma viagem pelas desilusões carnais cuja intensidade desvelam um mundo oculto de descontrolo e frenesim sensual. Confrontos latentes entre super-ego e id, se quisermos ser provocatórios e freudianos. Talvez pelas suas origens sul-coreanas, Kim Soo-Gil reveste o universo rural do filme (fortemente guiado pelas estações e a sua causalidade psicológica) com uma ambiência católica, presente quer nas idas à missa que entrecortam as discussões artísticas ou as actividades lúdicas dos dois amigos (Shigeru e Shinji), quer na fé infantil de Hitomi, de longe a presença do filme, que passa de devota inocente a explorada pela sua própria boa vontade e que renega o seu cristo quando se entrega ao amor, reencontrando-o psicoticamente quando enxerga as limitações perigosas da carnalidade. A pesada atmosfera católica não se faz sentir, todavia, nos décors sacros, mas antes na demonização conceptual do erotismo, ou se quisermos, na alegoria bíblica da expulsão do paraíso através da auto-consciência do corpo. Did You See the Barefoot God? fala-nos, mais uma vez, desse tempo crucial onde a descoberta da dimensão erótica significa a descoberta de uma transgressão que, ora enlouquece (veja-se a sifilítica tresloucada que convida os rapazes a ter relações sexuais num cemitério) ora brutaliza e profana as existências e as relações mais espontâneas, como são as da amizade. Neste sentido, Kim Soo-Gil, cineasta que só faria mais um filme para além deste, reivindica aqui uma herança mishimana quando mete na boca do jovem pintor, que venera uma modelo secreta sem jamais se confessar, as seguintes palavras dignas de um romance como O Templo do Pavilhão Dourado: "acredito que a beleza só existe para fazer o coração humano sofrer". Esta beleza, que é na verdade um irrestrito fascínio e desejo de posse para os que se acham feios, é o deus descalço do título que não sabemos ter estado em condições de realmente o ter observado. Pois, tal como as folhas das árvores que induzem o vento que nelas roça, dessa beleza só vemos as paixões que desencadeia e a energia invisível que desponta o caos. O olhar de artista embriagado, o rompimento do terço para descobrir a sexualidade, o suicídio herdado e a beleza que permanece muda perante isto tudo, mas que tudo isto causou. Sem haver nada de sagrado que redima, para Soo-Gil o único elo transcendente é o do mal.



Revolver (1988) de Toshiya Fujita: **
Após uma carreira como realizador assalariado maioritariamente na Nikkatsu decadente da década  de 70, Toshiya Fujita conseguiu continuar sempre a filmar mesmo quando o estúdio de modo sucessivo erotizava as suas películas para caminhos mais extremos. Mesmo assim, Fujita foi um dos primeiros a carnalizar o seu cinema juvenil no princípio dos anos 70 (na época em que a Roman Porno ainda era uma miragem) e continuou sempre a filmar as malaises da juventude com peculiar interesse e obsessão voyeurista. Revolver, que contêm jovens mas não é integralmente um filme sobre eles, acabou por ser a sua última obra, o seu testamento cinematográfico se quisermos. Sabemos que essa definição é sempre discutível, pois nem sempre um derradeiro filme exprime sem sinuosidades as imagens de marca e o cunho autoral de um realizador. Muitíssimo mal comparado - e salvaguardando as crassas diferenças formais - podíamos dizer que Revolver é o L'Argent de Toshiya Fujita. À semelhança da última tentativa de Robert Bresson, neste filme também podemos considerar que o personagem principal é um objecto (no caso um revólver como indicado no título), que unifica todos os outros personagens na mesma senda de infortúnios e maldições, passando de mão em mão e despertando aquilo que poderíamos chamar de mal adormecido no coração dos homens. Se em Bresson o desfecho é radicalmente pessimista (como se o mal, personificado no dinheiro, tivesse um poder causal, como se ele desencadeasse o caos necessariamente), em Fujita tal pressuposto serve para executar um thriller mais ou menos confuso quanto ao seu mood, com muitos personagens e nenhum deles muito marcante, com muitos actores talentosos e nenhum que sobressaia (neste sentido, Kenji Sawada desilude um pouco com uma interpretação demasiado rígida). Claro que seguir o paradeiro de um revólver roubado a um polícia é excitante para o espectador, assim como a acepção que um pequeno momento pode condicionar totalmente uma vingança, contudo, falta aqui algum brilhantismo no argumento, na construção de personalidades mais significativas e até na resolução final. Toshiya Fujita sabe filmar, mas cremos que infelizmente as vantagens de Revolver ficam decididas na parte técnica. Havia melhores maneiras de terminar uma carreira.



Deep River (1995) de Kei Kumai: ***
Um grupo de turistas japoneses viaja numa carrinha algures pelas paisagens rurais da Índia. Os passageiros, aparentemente partilhando a condição superficial de se ser turista com as fotografias do costume e os sorridos alheados, dirigem-se para Varanasi, a famosa cidade sagrada que é banhada pelo rio Ganges, o rio que ao mesmo tempo concede a purificação aos vivos e opera a libertação dos mortos. Somos informados do destino por uma voz-off de uma mulher misteriosa que permanece muda e com um olhar sorumbático, Mitsuko, que nada mais nos adianta dos motivos do tal périplo. Nesse seguimento, quando a noite cai, surge a primeira (de três) memórias que povoam a viagem e lançam os rastos de uma hipotética peregrinação colectiva, mesmo que os motivos de cada peregrino sejam, para cada caso, bastante diferentes. Isobe relembra as derradeiras palavras da sua esposa doente, nas quais era dito que com certeza iria reencarnar assim que morresse. Kiguchi, atormentado por memórias bélicas, recorda-se do falecimento de Tsukada (último papel de Toshiro Mifune), um ex-soldado alcoólico que nunca conseguiu superar um trauma particular de guerra. Finalmente, Mitsuko que desvela, pouco a pouco, os fragmentos de uma relação, ao princípio puramente carnal, com um estudante de filosofia devotadamente cristão, Otsu. Os três indivíduos são representações, mais ou menos conseguidas, de existências com um deficit e uma necessidade espiritual qualquer: Isobe pretende encontrar a reencarnação da esposa numa criança de três anos, Kiguchi espera poder velar pela arma do seu camarada e Mitsuko deseja reencontrar o devoto e idealista Otsu, não mais para criticar ou questionar sensualmente as suas crenças mas para eventualmente as seguir. Deep River, o rio profundo das vidas, foi o último romance de Shusaku Endo e nele está reflectido a essência universal das crenças religiosas, assim como dos anseios humanos para aderir e compreendê-las. Tanto para Endo como para Kei Kumai - que aqui filma com uma suavidade inabalável fortes tensões (a água sagrada, as flores, a cruz, a deusa Chamunda Devi) e faz-nos ouvir o cântico dos cânticos (a multiplicidade de orações hindus e budistas) - na essência de todas as religiões reside uma só inquietação. Prove-se este sincretismo religioso intradiegeticamente, mais uma vez, com Otsu, esse cristão libertado que diz haver sempre uma dose de mal no bem e de bem no mal, esse homem que religa emocionalmente as várias fés. Este ideal do asceta religioso que dissolve todas as diferenças e não castiga a vida mas progressivamente a vai apurando até tornar a morte num momento indiscriminado do fluxo interminável do grande Rio, parece ser a imagem mais permanente e demarcada de uma obra religiosa no mais profundo sentido do termo.



Lupin The Third (2014) de Ryuhei Kitamura: 0
Pressentimos na banda-sonora deste Lupin The Third referências ao estilo musical de Yuji Ohno, compositor que acompanha há quase 40 anos, com genialidade e identidade jazzística, todas as novas aventuras anime do neto japonês do mítico gentleman cambrioleur, Arsène Lupin. Se ouvirmos mesmo distraidamente, estão lá os ritmos funky no background, alguma bossa-nova sem vozes com swing, os instrumentos do costume a ocupar os silêncios, mas persiste, sem a menor dúvida, um sentimento de incompletude que não passa despercebida. Onde está a euforia do tema principal que aqui é completamente esquecido assim como qualquer composição de Ohno, esquecimento no mínimo ofensivo? Onde está a integração, diria mesmo colagem aventurosa e energética da música nas cenas de acção e comédia - de longe, a marca mais reconhecível das dezenas de filmes e centenas de episódios de Lupin The Third? Enfim, que é feito da autenticidade das melodias e da estética quando somos confrontados com uma pálida e decrépita imitação que apenas toca de leve na superfície? Pois bem, se transpusermos esta analogia musical a todos os outros departamentos artísticos que compõem uma película, temos uma ideia bem precisa daquilo que representa este falhanço com f grande de Ryuhei Kitamura. Quando, há dois anos, ouvimos a notícia que seria o realizador de Versus a ressuscitar o mítico franchise para o grande ecrã em imagem real, algo apenas tentado uma vez no bizarro Strange Psychokinetic Strategy de 1974, dirigido por Takashi Tsuboshima e que, na verdade, de Lupin apenas tinha o nome, três personagens, e uma ou outra referência visual da série, ficámos com alguma esperança que este poderia ser, se não um grande filme, uma visão diferente, arrojada, e autêntica do material original. Relembre-se que Kitamura depois de LoveDeath (filme que apesar dos seus defeitos possui dotes incrivelmente hilariantes), ou seja, depois de 2006 não mais filmou no Japão e virou-se para mercados mais ocidentais. Pela simbologia do regresso a casa e por agarrar num projecto tão doméstico e especial para os próprios japoneses, havia aqui a possibilidade de Kitamura se redimir e finalmente usar os seus talentos visuais, técnicos e humorísticos para tornar as aventuras de Lupin palpáveis, para além das duas dimensões. Infelizmente, o resultado final é mais do que decepcionante. Em termos de estética, Kitamura não percebeu que, se era para reciclar alguma coisa, deveria ter ido buscar referências aos filmes de acção série-B dos anos 70 e não dos sofríveis e foleiros filmes dos anos 90 com artes marciais e outro género de clichés futuristas que não pertencem ao universo já por si pastiche de Lupin. Por outro lado, porque razão se escolheu começar as relações entre personagens do zero (se já os conhecemos há quarenta anos!) e porque razão se inventaram péssimos vilões e uma organização de criminosos que nada têm a ver com o que habitualmente contamos de um filme destes? Qual é o motivo de aguentarmos penosamente, durante mais de duas horas, uma narrativa que não vai a lado nenhum e nem é remotamente interessante pela sua execução? Temos de sublinhar a completa falta de vida desta adaptação que de relativamente surpreendente tem a interpretação de Shun Oguri como Lupin, à primeira vista uma péssima escolha mas que nem é assim tão má. Tudo o resto, e mesmo Oguri que não faz milagres com aquilo que lhe deram, reveste-se de uma esterilidade preocupante que suga o entretenimento estiloso e divertido de Lupin e torna-o numa aborrecida lista de incumbências, com prestações demasiado razoáveis, uma dobragem péssima de actores estrangeiros (terá sido uma inside joke para o desfasamento das vozes no anime?) e os momentos dramáticos que são no mínimo embaraçosos de assistir e, de certeza, pertencem a outro filme. Apesar da bocejante experiência, o sucesso no box-office doméstico (porque qualquer mediocridade iria atrair os espectadores, inclusive eu), já meteu Kitamura a prometer sequelas. Mais valia terem deixado as coisas como estavam.

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