A Hero of Tokyo (1935) de Hiroshi Shimizu: ***
Duas dimensões recorrentes surgem ao longo da cinematografia de Hiroshi Shimizu - e tornam-se cada vez mais evidentes quanto mais filmes dele assistimos: o mundo adulto interpretado pelos olhos das crianças, com todas a ridicularização alheia que isso acarreta, e a própria topografia axiológica desse mundo, composto maioritariamente por rígidos julgamentos sociais, isto é, o peso do colectivo contrapondo aos sacrifícios individuais. Hero of Tokyo é um haha-mono que se inicia, justamente, com crianças numa cena tipicamente shimizuana (veja-se o uso do fade dentro do plano como passagem temporal e prenúncio de angústia) onde um grupo de meninos esperam os pais ao pé da linha de comboio e comparam-nos entre eles de acordo com a hora a que eles chegam. Mais tarde, o filme esboçará uma situação de extremo sacrifício maternal enquanto que, ao mesmo tempo, o lado paterno (o responsável pelo abandono do filho) sofre severas críticas numa altura em que tanto se patrocinava uma sociedade patriarcal inspirada na figura do Imperador. O que é certo é que Shimizu não desenvolve muito a personagem da mãe santa que, ao acolher um filho que não era dela e ao vender o seu corpo para sustentar os seus outros dois filhos, acaba por ganhar exclusivamente a simpatia e o respeito do rapaz adoptado. Os outros dois descendentes, um rapariga com um casamento frustrado e um estudante universitário que se dedica à delinquência por descobrir as actividades secretas da mãe, não correspondem ao sacrifício incondicional desta que sempre desejara uma vida moralmente acertada para todos. Talvez o desfecho, como também é apanágio dos mudos de Shimizu (e este foi o seu último) seja a parte mais marcante e a mais subtil de toda a empreitada. Numa cena digna de iconoclastia, filho e pai confrontam-se e o primeiro decide finalmente expor o segundo, derrubando a ordem implícita e a autoridade inquestionável do patriarca que nunca chegou a ser isso. De seguida, planos verdadeiramente silenciosos (num filme já de si mudo) induzem à crítica dos ídolos através da verdade jornalística. Um desenho preso à parede, uma janela das memórias debruçadas, um ardina ao fundo do plano espalhando as notícias, como se a imprensa pudesse proporcionar uma crítica justa das instituições governadas por mafiosos. O herói de Tóquio era o herói do futuro, aquele que escolhia a verdade acima das instituições, aquele que finalmente não chegou ao Japão.
Dos quatro filmes que Hiroshi Shimizu realizou no ano de 1937, Forget Love For Now pode não ser o mais surpreendente, nem o mais marcante (Children in the Wind e Mr. Thank You costumam ser obras mais consideradas por não estarem tão presas a géneros nem convenções), porém demonstra todo o talento de mise en scène que o realizador nunca prescindiu, mesmo quando em causa estava um melodrama de tonalidades pessimistas, um exercício mais rotineiro e menos pessoal. Yuki, mãe solteira, trabalha num hotel perto de um porto de navios para sustentar o seu único filho, Haru. A criança (figura essencial no cinema de Shimizu - e não conheço realizador que melhor dirigiu crianças!) começa a sofrer represálias cruéis dos seus colegas devido ao trabalho duvidoso da sua mãe: entreter marinheiros e estrangeiros parece pôr em causa a pureza da figura materna. Há planos muito tocantes que reflectem a duplicidade do sentimento do menino perante a rejeição primariamente social dos seus amigos. As reacções são simples, porém convincentes e o mesmo podíamos dizer das emoções sentidas da mãe que assiste silenciosamente à ostracização do seu filho. Um outro misterioso personagem (Shuji Sano) interessa-se por Yuki e pela sua devoção materna e, por momentos, parece ser a porta de saída para os problemas. Não o é, portanto. A conclusão, ao apagar a hipótese de um final feliz ou regular, podia contradizer o estilo minimal e rígido de Shimizu mas estranhamente a tristeza declarada e excessiva é paralisada pela distância não exploratória da câmara. Há outros planos de destaque (por exemplo, quando Shuji Sano esmurra um cliente abusador e o salão enche-se fora do plano quando Yuki se afasta da cena ou o traveling genial que acompanha Yuki e Haru quando este visita a sua nova escola, embaraçado com a presença da sua mãe) nesta obra cheia de surpresas.
The Graceful Brute (1962) de Yuzo Kawashima: *****
The Graceful Brute (1962) de Yuzo Kawashima: *****
O primeiro plano de The Graceful Brute abre para uma varanda que, por sua vez, deixa percepcionar, através das portas envidraçadas e das cortinas puxadas para trás, uma casa normal da média burguesia. Sons furiosos de uma orquestra noh irrompem nos nossos ouvidos enquanto um casal adulto arruma rápida mas minuciosamente alguns objectos domésticos e o homem muda de roupa, como se ambos estivessem a preparar uma grande cena de teatro no palco das suas vidas. Este raccord sonoro, esta referência musical à teatralidade folclórica que pontuará o drama e permanecerá a única banda-sonora possível, estabelece mais do que uma ligação às imagens rigorosamente circunscritas de Yuzo Kawashima, já que a sua câmara nunca sai do prédio onde começa e se há filmagens do exterior, é porque elas correspondem a pontos-de-vista subjectivos do prédio e nunca o contrário. O Noh faz referência ao fingimento, ao gosto e ao cuidado cerebral da impostura (e como será claro mais tarde: pai, mãe, filho e filha são, cada um à sua maneira, burlões e, por conseguinte, actores do mais alto calibre), mas também não pode deixar de fazer menção aos poderes abstractos do espaço teatral. Não nos enganemos, o décor principal de The Graceful Brute - a casa comprada às custas das fraudes e dos desvios de dinheiro - corresponde à imagem complexa e operática do palco dramático onde o material e o mental se fundem, aquele lugar onde tudo se passa e o resto é interditado, mas alimenta fatalmente a imaginação de quem observa. O T1 como espaço psicológico, como ágora dos problemas e dos diálogos acesos (e quase sempre os personagens estão em diálogo e em confronto uns com os outros, não só quando vítima e ofensor se encontram, mas principalmente quando os patifes se reúnem em família) mas também dos solilóquios mais silenciosos onde, mais uma vez à semelhança do teatro, acedemos ao mundo interior quase sempre inacessível e representado (no sentido de actuado) pelos nossos heróis do pós-guerra. Efectivamente, Kawashima nesta miscelânea crítica da modernidade, crítica executada através da tradição estética, aponta o dedo ao cinismo, egoísmo e desumanização do pós-guerra. Filma, com o rigor crítico do seu enquadramento (uma escadaria transforma-se num corredor claustrofóbico, uma varanda em grades de prisão), uma família cujos valores se distanciam em absoluto dos cânones habituais, onde, por exemplo, o pai, reformado do exército, concede a filha a um escritor famoso em troca de favores monetários, onde o filho, como uma besta indomável, extorque dinheiro de uma companhia para esbanjar em saídas noturnas, e onde a mãe (talvez a mais misteriosa das personagens) colmata, no final, a ansiedade e angústia de assistir ao último sacrifício da humanidade com uma postura assustadoramente ataráxica. Neste filme de muitos confrontos, mas pouquíssimas conclusões ou desfechos, podemos notar provavelmente a força tremenda e o fascínio daqueles que substituíram a cara com que nasceram por máscaras, representações, enganos que valem verdade. E, nesses planos derradeiros, o Japão negro, cinzento, urbanizado está à chuva...
Main Theme (1984) de Yoshimitsu Morita: ***
Após uma breve carreira como realizador pink na Nikkatsu e uma comédia independente financiada pela lendária Art Theatre Guild (falamos, é certo, de Family Game), Yoshimitsu Morita preparava-se para embarcar num estilo de cinema, muito em voga nos anos 80, que servia de veículo de promoção para a carreira de jovens actrizes/ cantoras. "Muitos", diz-nos Chris MaGee, "iriam criticar esta decisão de Morita em prosseguir com uma carreira de realizador assalariado, rodando filmes dispensáveis com ídolos pop", mas a verdade é que se nos abstrairmos da ligeireza patética do enredo e olharmos com atenção para a concentração estilística dessas produções (e Main Theme será o caso mais sintomático do filme por encomenda) descobriremos um artista no apogeu da sua sensibilidade estética. Um artista que não precisa sequer de coerência ou qualidade narrativa para fazer explodir no grande ecrã o fulgor das cores, a jovialidade experimental e a obsessão por estranhas escolhas de enquadramento. Uma actriz, presa entre o amor não correspondido de um homem mais velho e a rebeldia de um jovem mágico, acompanha todos estes devaneios estilísticos do realizador: Hiroko Yakushimaru, a personificação simultânea da inocência, presente nos papéis que interpreta, e o arrojo despreocupado dos que lançaram a sua carreira rumo à experimentação estética (Shinji Somai, Nobuhiko Obayashi, o próprio Morita, etc.). Longe de ser apenas um filme propagandístico, no sentido de uma venda da alma ao diabo, etc., Main Theme serve-se das reduzidas expectativas para desconstruir a componente formal da sua apresentação. Substitui a verossimilhança narrativa e psicológica pela atmosfera despreocupada, descomplicada, veranil e de primeiros amores. Leva ao paroxismo os clichés e satura-os com uma densidade surreal que transcende a expectativa primariamente oferecida por eles. Prova, em suma, aquilo que Bob Davis disse outrora sobre Morita: um realizador que assume uma importância vital na organização da imagem no interior do plano e na relação da imagem com o seu tom.
Rinco's Restaurant (2010) de Mai Tominaga: **
Após o surrealismo fantasista de Wool 100%, a segunda criação mais relaxada mas não menos campestre de Mai Tominaga vem no seguimento de um Kamome Diner ou de um Nonchan Noriben, isto é, filmes que reflectem o papel da culinária na vida de jovens mulheres que solitariamente decidem abrir um negócio de restauração para poder exorcizar maus relacionamentos do passado. Essa substituição afectiva e esse poder de dedicação gastronómica encenam exercícios de uma tranquilidade inabalável, onde o desenvolvimento da narrativa conta pouco (a fragmentação por sketches é o seu forte) e o poder das imagens (a confecção dos pratos, o paladar que se descobre a cada garfada, a procura pela receita ideal) é absolutamente determinante. Ko Shibasaki interpreta Rinco, filha de pai desconhecido, fugida de casa, cozinheira sonhadora, jovem singela esborrachada pela realidade ao ponto de ficar muda por trauma, enfim, uma personagem parca em palavras mas amável o suficiente para a partir das suas mãos e dos ingredientes caseiros fazer magia. De longe, as cenas mais satisfatórias são aquelas em que vemos Rinco cuidar dos paladares dos diversos clientes que passam pelo Restaurante Caracol, cujo lema é cozinhar lento e bem, sendo que quase todas as cenas acabam com uma espécie de epifania provocada pela comida cuidadosamente confeccionada. Há talvez outras cenas que se estendem demasiado (por exemplo, a relação de Rinco com a sua mãe, por vezes demasiado descritiva para ser realmente emocionante, como se pretendia) e diria até que o mais agradável de ver aqui são aqueles pequenos momentos não-narrativos onde o amor à culinária nos enche os olhos e deixa-nos de barriga vazia a desejar por mais.
Rinco's Restaurant (2010) de Mai Tominaga: **
Após o surrealismo fantasista de Wool 100%, a segunda criação mais relaxada mas não menos campestre de Mai Tominaga vem no seguimento de um Kamome Diner ou de um Nonchan Noriben, isto é, filmes que reflectem o papel da culinária na vida de jovens mulheres que solitariamente decidem abrir um negócio de restauração para poder exorcizar maus relacionamentos do passado. Essa substituição afectiva e esse poder de dedicação gastronómica encenam exercícios de uma tranquilidade inabalável, onde o desenvolvimento da narrativa conta pouco (a fragmentação por sketches é o seu forte) e o poder das imagens (a confecção dos pratos, o paladar que se descobre a cada garfada, a procura pela receita ideal) é absolutamente determinante. Ko Shibasaki interpreta Rinco, filha de pai desconhecido, fugida de casa, cozinheira sonhadora, jovem singela esborrachada pela realidade ao ponto de ficar muda por trauma, enfim, uma personagem parca em palavras mas amável o suficiente para a partir das suas mãos e dos ingredientes caseiros fazer magia. De longe, as cenas mais satisfatórias são aquelas em que vemos Rinco cuidar dos paladares dos diversos clientes que passam pelo Restaurante Caracol, cujo lema é cozinhar lento e bem, sendo que quase todas as cenas acabam com uma espécie de epifania provocada pela comida cuidadosamente confeccionada. Há talvez outras cenas que se estendem demasiado (por exemplo, a relação de Rinco com a sua mãe, por vezes demasiado descritiva para ser realmente emocionante, como se pretendia) e diria até que o mais agradável de ver aqui são aqueles pequenos momentos não-narrativos onde o amor à culinária nos enche os olhos e deixa-nos de barriga vazia a desejar por mais.
Bushido Sixteen (2010) de Tomoyuki Furumaya: ***
Já com Robokon era bastante perceptível a posição de Tomoyuki Furumaya em relação ao sucesso oficial dos seus personagens. Demasiados são os filmes que acabam com aquela cena estrondosa e apoteótica, mas sem dúvida previsível, de vitória face à adversidade. Furumaya, por sua vez, esconde ou reprime esse desenlace recompensatório já que o foco é completamente outro. Em Bushido Sixteen (outra produção com jovens e o tal campeonato que se resguarda para os minutos finais) também os troféus são o que menos interessa, se bem que nunca são esquecidas a paixão para lá chegar e as relações de amizade que se estabelecem dentro da própria competitividade. Kaori e Sanae, duas estudantes do secundário, voltam a encontrar-se após uma competição de kendo onde, anos antes, a mais inexperiente ganhou à outra. A gentil e distraída Kaori nem se recorda da colega, mas Sanae, que apresenta um personalidade anacronicamente estóica, digna de um samurai, guarda rancor e pretende superá-la, inscrevendo-se na mesma escola e no mesmo clube de esgrima. Uma sonha ganhar o campeonato juvenil (por pressões paternas) , a outra deseja apenas ser amiga dela. Podemos afirmar que Furumaya pretende explorar a relação destas adolescentes tão diferentes, pegando pelas características mais imediatas que as definem para, ao longo da sua relação, as revirar e colocar nos polos quase opostos de onde começaram. Uma relação significativa corresponde a isso mesmo: aproximar duas identidades, torná-las semelhantes, mantendo misteriosamente um núcleo de distância idêntico. No limite, esse processo pode ser violento (e a verdadeira compreensão das duas amigas dá-se quando lutam sem máscaras ou protecções e a dor é real) mas cria uma intimidade próxima do amor. Não devo ter sido o primeiro a ver em certos tipos de amizade uma espécie de erotismo não reconhecido que é extremamente belo de se contemplar. Bushido Sixteen, com a sua simplicidade adolescente, concede-nos muitas oportunidades de enxergar essa beleza esguia e difícil de fixar limites. Com certeza, a ânsia de ganhar é o que menos importa aqui: para esse efeito de recusa, Furumaya resume toda a intensidade do campeonato com um grito de Kaori chamando Sanae e um plano negro. Os combates em off, as emoções em in.
The Liar and His Lover (2013) de Norihiro Koizumi: 0
Tantas coisas aqui eriçam os meus nervos que não sou capaz de guardar a frieza da primeira pessoa do plural. Este é cinema falsário ao mais alto calibre. Com uma atmosfera shoujo aberrante, pretende impressionar jovens raparigas que não conseguem diferenciar integridade artística de cultura popular. Com os dilemas postiços e os mundos "interiores, oh, tão profundos, dos personagens (uma cambada de modelos a passear estilo e frases tiradas de um manga foleiro) pretende-se tornar credível o romance entre um compositor "fantasma" desgostoso e uma rapariga de dezasseis anos (ignoro porque nunca se refere a diferença de idades talvez chocante para alguns espectadores), pronta a conhecer também os dilemas dos meandros (a busca pela artisticidade, mas qual artisticidade?), as historietas de imprensa, os romancezinhos de famosos. Tudo isto a condizer com uma fotografia pretensamente sensível no meio de tanto exagero "kawaii" e tanta pose irreal de cordel. Este é mais um filme melindroso que esconde a imaturidade fantasista e escapista através de um romantismo meloso e pseudo maduro que realmente me fez corar de embaraço a certa altura. The Liar and His Lover é cinema para raparigas no pior e mais injusto sentido do termo. Vade retro!
The Road Less Travelled (2013) de Tomoyuki Furumaya: *
Road-movie nada malicioso, porém bastante inconsequente, The Road Less Travelled (a tradução literal do título japonês é Everyone Told, Let's Definitely Meet Again) conta a história de Katsuki, um rapaz provinciano que, após ter comentado com os seus amigos o cheiro putrefacto da cidade de Tóquio como se já lá estivesse estado, decide viajar para comprovar se a sua própria mentira era verdade. Ali chegado, repara que as coisas não eram bem assim e a grande metrópole até tem os seus encantos, mas com tanto entusiasmo perde o avião de regresso, ficando impossibilitado de voltar para a distante terra natal de Kumamoto. É ocasião para dizer que Katsuki vai à boleia, saltando de encontro em encontro até chegar ao seu destino: trava conhecimento com uma recepcionista, um cabeleireiro extravagante (cameo do realizador Shinya Tsukamoto), um camionista castiço com uma doença terminal, um miúdo reguila... Mas, nada leva a grande coisa e nenhum dos personagens/momentos se destaca grandemente, quer pela cinematografia (que é televisiva no pior sentido do termo), quer pelo significado e apego que poderíamos retirar dos encontros, por mais desconjuntados e isolados que eles fossem. Infelizmente, Furumaya - que sabemos ser um realizador que aproveita os benefícios do minimalismo a seu favor - não consegue fazer mais do que um compacto de encontros desconexos, sem brilho e o charme dos seus filmes mais celebrados.
Tokyo Tribe (2014) de Sion Sono: *
Confesso que no início estava rendido. O primeiro plano é na verdade um plano-sequência bastante bem coreografado (dura uns invejáveis quatro minutos) e corresponde a uma imersão num beco néonizado de uma Tóquio futurista irreconhecível, onde a delinquência, o tráfico e a prostituição são susceptíveis de serem narrados epicamente por um rapper (Shota Sometani) mais ou menos desinteressado que se dirige ao próprio espectador. Verdade que, com uma introdução destas, Tokyo Tribe podia ser qualquer coisa: ou uma proposta visionária que conseguiria conter os excessos, mantendo uma estética única ou um aglomerado de ideias (maioritariamente visuais) que não colocaria nenhum travão a si mesmo. Conhecendo nós os vícios irreparáveis do senhor Sion Sono - um realizador no qual podemos criticar tudo menos a intensa originalidade de cada proposta - não é nada estranho que as qualidades evidentes dos minutos iniciais caíssem rapidamente na degenerescência, na repetição e na falta de gosto. O desafio era criar um filme quase rappado na integralidade ou então um musical futurista e urbano que compensasse o maniqueísmo e a ausência de complexidade ao nível da psicologia dos personagens com a mistura de referências (filmícas mas não só) e um sentimento de loucura exploitation que podíamos reportar ao seu último filme, Why Don't You Play In Hell? Aqui temos de tudo: violência num CGI atroz, artes marciais e kung fu (muito kung-fu!), guerras divisórias de gangues, humor absurdo e sexual e até alguns piscares de olho a um tal de Shuji Terayama (em particular numa cena com relógios e mobílias humanas). Tudo unido (des)harmonicamente por "beatbox" avulso, muitas rappadas fora de tempo e ocasião e uma banda-sonora que raramente soa a música. É preciso, claro, muita suspensão de juízo para aceitarmos todas as soluções infantis desta opereta barroca: veja-se, por exemplo, o dessincronismo entre cenas na batalha final, onde os personagens estão num local numa cena, noutro noutra sem qualquer ponte ou ponto de ligação. Não menos desgastante são os planos-sequência com câmara de mão que rapidamente revelam a sua inutilidade e aleatoriedade (de movimento, dentro e fora do plano) e a iluminação, a princípio curiosa, mas a longo prazo demasiado artificial com infinitos flares a cansar a vista e a paciência. Sem desprimorar a óbvia originalidade, Tokyo Tribe falha principalmente pelo extremismo da sua aparência.
Sem comentários:
Enviar um comentário