25/10/14

Fragmentos de 2014/10/25



Okoto and Sasuke (1935) de Yasujiro Shimazu: ****
Shunkinsho ou A Portrait of Shunkin é um dos mais famosos contos de Junichiro Tanizaki e - como quase todas as suas obras - foi adaptada para cinema desde muito cedo. Depois desta versão clássica de Yasujiro Shimazu, que foi rodada apenas dois anos depois do original ser publicado, também Teinosuke Kinugasa, Daisuke Ito, Katsumi Nishikawa ou até mesmo Kaneto Shindo levaram o popular conto ao grande ecrã. À bravura formal e ambiguidade de Tanizaki, os realizadores, porque tinham de representar por imagens aquilo que no original pertencia ao reino da imaginação e da conjectura, sempre descreveram a relação entre a mestra Okoto e o tímido discípulo Sasuke como o expoente máximo da auto-abnegação e do amor puro. Shimazu foi, no cinema, o primeiro a fornecer essa interpretação romântica (o título dá conta dessa intimidade a dois), mas que não é mais do que uma interpretação, mantendo intactos alguns mistérios e ambiguidades que resolvemos enquanto espectadores somente pelo tom romântico geral da película (por exemplo, quem é o pai da filha de Okoto?). Temos de relembrar as discussões acesas que A Portrait of Shunkin desencadeou quando, a propósito da sua narratividade esquiva e do seu narrador distante, misterioso e pouco ou nada definitivo, o escritor Akiyuki Nosaka argumentou, mais tarde, ser Sasuke o culpado pelo desfiguramento da sua mestra, caracterizando toda a história e inclusive o sacrifício aparentemente tocante de Sasuke como "a descrição exaustiva da obstinação e egocentrismo de um homem". Yasujiro Shimazu está nos antípodas da mordacidade caústica de Nosaka e em Okoto and Sasuke opta pelas boas intenções do protagonista face à belíssima e cega mestra (interpretada pela não menos bela Kinuyo Tanaka) enquanto que aproveita para construir algumas situações humorísticas, mais próximas do seu registo habitual dos shomin-gekis da Shochiku. Para além da simbologia da gaiola estar aqui presente (quando o pássaro se escapa, Okoto apercebe-se da exclusividade de Sasuke na sua vida e decide isolar-se dos olhares públicos) há que destacar os prodigiosos dez minutos finais. A cena do sacrifício de Sasuke, quer se ache ou não descabida perante as intenções dúbias de Tanizaki, é um momento poderosíssimo de cinema que prova a sofisticação formal de Shimazu. Aquela sobreposição dos punhos de Sasuke no espelho preparando-se para cegar a sua própria vista e a última visão (possível e projectada) de Okoto prova bastante bem o que se diz nos intertítulos poéticos que fecham o filme: "Sasuke fechou os seus olhos para a realidade: saltou para um mundo conceptual. Os olhos do seu coração vêem o mundo das memórias." E só nele é capaz de se encontrar.



The Battle for the Liberation of Japan - Summer in Sanrizuka (1968) de Shinsuke Ogawa: ****
No trailer de Death by Hanging (que em si mesmo é uma obra de arte e um avant-propos), Nagisa Oshima, tornado narrador da sua própria proposta, aconselhava aos espectadores o seguinte: "Por favor, vejam este filme da mesma maneira que brincam, trabalham, lutam, odeiam e amam. Fizemos este filme com o mesmo espírito do protesto nas ruas." Haverá, porém, algum filme (ou série de filmes) que tenha melhor capturado o espírito de protesto do que a incansável e exaustiva saga Sanrizuka de Shinsuke Ogawa? Primeiro capítulo de quatro, Summer in Sanrizuka, à primeira vista, documenta os esforços dos camponeses que vêem a sua terra ser-lhes retirada, sem qualquer aviso ou consulta prévia, para dar lugar à construção de um novo aeroporto. Logo nos planos iniciais está sintetizada toda a violência desse "recolher obrigatório" injusto: um polícia, ao repreender os protestantes, esmaga com as suas botas uma melancia. Esse acto simbólico (um zoom em cima dos destroços do fruto), assim introduzido para dar o mote ao resto, sem qualquer necessidade de explicitar as condicionantes e as razões mais lógicas do protesto, será a primeira imersão no ambiente - que Noel Burch pejorativamente chamou indigestível - de guerrilha e luta armada dos camponeses face às forças da autoridade. Repetidamente, os motins e os confrontos tomam uma dimensão denunciadora já que o ponto-de-vista do espectador acompanha sempre os protestantes e dirige-se aos repressores com o mesmo grau de revolta, contestação e confiança (valha-nos o Hino da Alegria a musicar os esforços). É aqui que Ogawa e a sua equipa transcendem o estatuto neutral da linguagem que abraçam: a câmara não documenta os camponeses como se fosse uma entidade invisível, mas apoia-os e vai à guerra com eles como se a câmara fosse uma arma de arremesso (tal e qual as pedras vãs que eles atiram aos escudos da polícia) e tivesse, também ela, de ser apreendida e reprimida pelas forças do poder (como aliás chega a acontecer quando um cameraman é preso e a sua câmara confiscada). Apesar de Summer in Sanrizuka encarar de frente os confrontos com a polícia, fixando e participando da  revolta dos mais fracos, Ogawa concede algum tempo aos testemunhos dos camponeses que, ultimamente, defendem a violência para fazer valer os seus direitos. Nessas cenas, tenta-se passar um certo intimismo dos guerrilheiros e o mais importante são as suas palavras de força e coragem (com o som técnica e poeticamente desfasado da imagem como se o primeiro fosse mais importante do que o segundo) quando a vitória se revela praticamente impossível. Outro factor de destaque (que se aplica não só aos camponeses, mas também ao próprio modo de filmar) é a importância do colectivismo e da organização grupal. Nada parece mais digno,  belo e defensável para Ogawa do que um conjunto de pessoas unidas pelo combate e reivindicação dos mesmos direitos. Em breve, fascinado pelo pragmatismo e bravura dos camponeses (que se opõem às teorias vazias dos estudantes, como ouvimos num testemunho) ele próprio iria dedicar-se, durante longos anos e quase toda a sua vida, a documentar activamente os avanços e recuos, os sonhos e os pesadelos, a vida e a morte destes pequenos e rurais heróis.



Osaka Violence (2012) de Takahiro Ishihara: 0
Snake of Violence (2013) de Takahiro Ishihara: **
Assim como aconteceu com o chanbara, o cinema yakuza se ainda não morreu, está há muito tempo a dar as últimas. Longe estão os tempos em que fervilhavam no grande ecrã os durões (honrosos ou desonrosos) e, se nos abstrairmos das últimas tentativas de salvação do género que se deram com o advento da geração V-Cinema (Takashi Miike, Rokuro Mochizuki, Kiyoshi Kurosawa) e com algumas reinvenções isoladas (Takeshi Kitano, Takashi Ishii, etc.), praticamente nada se fez nos anos 2000 e em diante para revitalizar esse universo tão peculiar. Foi isso que captivou o meu interesse em Takahiro Ishihara, um cineasta que parece dedicar a sua atenção aos gangsters forasteiros, descrevendo violentamente toda a amargura e brutalidade dessas vidas sem honra nem humanidade. Com budgets apertados (onde estão hoje os yakuza eiga de grande orçamento?) e apesar das óbvias limitações técnicas, deixou-nos duas películas que provam o interesse (mesmo que marginal) em ressuscitar o género. Osaka Violence, exercício falhado, demonstra um cineasta ainda muito amador com algumas dúvidas acerca de editing e colocação de câmara, dando muitas vezes a impressão de que não importa como se filma, importa antes que se filme. Em contrapartida, Snake of Violence já tem algum brilho e algumas decisões estéticas que desculpam o amadorismo do digital (por exemplo, um certo plano-sequência à la Goodfellas, que introduz o personagem principal em adulto, e dura uns invejáveis seis minutos), sendo também mais coeso na narrativa e na capacidade delirante e magnética dos seus personagens. Os dois filmes partilham obsessões: uma delas é o confronto entre a inocência das crianças e o mundo adulto da violência e outra poderia ser a inclusão de um gangster maníaco que ameaça pôr de pantanas a organização desse mundo, composto não pela honra mas pela capacidade de coagir. A esse respeito, cite-se Tak Sakaguchi em Snake of Violence, presença explosiva e caótica que, por momentos, relembra a libertinagem de tantos (anti)heróis do cinema yakuza.



The Mole Song - Undercover Agent Reiji (2013) de Takashi Miike: **
Os primeiros 20 minutos de The Mole Song são das coisas mais hilariantes que temos visto  no cinema japonês ultimamente. Dei por mim a rir à bandeira despregada com o agente Reiji e a sua passagem de polícia a yakuza para desmantelar uma rede de narcotráfico. Todo o delírio miikiano volta a mostrar a sua competência para a insanidade, já que cada piada resulta da aglomeração de vários tipos de humor (desde o físico ao meta, dos trocadilhos de palavras até ao exagero regozijante) e de um sentido de paródia que estava a fazer lembrar felizmente os Naked Gun de David Zucker mas com toques de bizarria manga (donde, aliás, provêm o material original). Quando, portanto, o nosso agente disfarçado entra no mundo dos mafiosos e prossegue com a sua missão no terreno, a irreverência e animação começam a perder o seu brilho e as piadas começam a ficar cada vez mais escassas e cada vez mais intervaladas. Deixam de ser o foco principal. Com o tempo, The Mole Song vira as coordenadas, torna-se outro filme (mais sério mas bastante menos interessante) e chega a ir mesmo contra a promessa dada nos primeiros minutos, a de ter sido uma nova referência no cinema de humor japonês. Miike volta a cometer um erro típico dos seus projectos mais recentes, isto é, não sabe fixar e estabelecer convenientemente o mood do que quer transmitir, parecendo muitas vezes ter dois ou mais filmes dentro do mesmo. Durante muito tempo este defeito era uma qualidade e Miike não teria sido quem é se não fosse por esta capacidade de fragmentar o género e chegar a sítios nunca antes idos (teremos de relembrar o desfasamento histórico do final de Dead or Alive?). O problema em The Mole Song é precisamente o inverso: durante a esmagadora maioria do tempo saímos da criatividade para entrar em lugares e situações por nós conhecidas e, esperávamos, evitáveis. Neste processo decepcionante, só os personagens nos podem salvar e conservar o interesse - e Reiji, o seu irmão yakuza, os polícias são todos personagens engraçados - mas não podemos deixar de ficar tristes com o desperdício de potencial.



Judge! (2014) de Akira Nagai: **
A estreia de Akira Nagai na realização trouxe-nos uma comédia simpática, mas finalmente inofensiva, sobre publicidade televisiva, a capacidade de julgar com (in)justiça um trabalho artístico e uma sátira aos meandros cínicos e deturpados dos painéis de júri dos festivais de cinema. Não se espere nada de arrojado, portanto. Judge! cede bastante aos lugares-comuns das comédias ligeiras: o desenlace é previsível, o antagonista demasiado unidimensional e o interesse amoroso do protagonista completamente desnecessário. Como comédia e enquanto narrativa, confia demasiado no exagero dos comportamentos e das situações, o que torna os personagens afáveis e engraçados até certo ponto mas completamente estereotipados e planos noutro. Não podemos afirmar, porém, que o filme falhe no seu entretenimento. Apesar dos clichés e da simplicidade da mensagem, Judge! nunca chega a ser entediante e consegue (mais no princípio do que no fim) arrancar alguns sorrisos e até uma ou outra gargalhada. Confesso que aqui o uso e recriação de certos anúncios é um dos pontos altos mas também se revelou bastante certeira a chacota com a veneração do "exotismo nipónico" feita pelos artistas e críticos ocidentais e aproveitada pelos próprios japoneses.



One Third (2014) de Hiroshi Shinagawa: **
Repleto de referências tarantinescas bem como piscadelas de olho a outros exercícios de culto, a terceira incursão do actor e cómico Hiroshi Shinagawa na cadeira de realizador pretende ser ao máximo um filme de acção despretensioso, formalmente aprumado e com variadas reviravoltas na intriga. Se, no seu melhor, One Third é acelerado e excitante, com personagens relacionáveis por quem nutrimos interesse, no seu pior, apresenta uma realização por vezes excessivamente saturada e com demasiados twists, não conseguindo escapar à maneira hipertrofiada e artificial como avança a história: por exemplo, precisávamos mesmo de regressar no tempo sempre que se pretende justificar uma nova etapa na narrativa? Alguns planos são bastante criativos, outros são demasiado histriónicos e fica-se com a impressão que Shinagawa quis a todo o custo imitar os lugares comuns imagéticos dos blockbusters americanos (slow-motions nas cenas de acção, planos enjoativos à volta dos personagens em 360 graus, etc.) sem parar para pensar no seu real cabimento. Este festival de enganos e traições têm também o seu lado humorístico e damos por nós a sorrir com os "enganos encenados" do trio de zés-ninguéns que assalta um banco e tenta passar a perna ao patrão psicótico e à velha cruel e mafiosa. O final abre a possibilidade de uma sequela, mas honestamente, se ela vier não será algo por nós muito aguardado.

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