29/04/14

Fragmentos de 2014/04/29



The Deep Blue Sea (1957) de Tsuneo Kobayashi: *
Este musical discreto e quotidiano jamais consegue superar o estatuto de produção rotineira de estúdio. A diva Hibari Misora, mais uma vez, contracena com um cast de jovem promessas (de destacar a aparição de Ken Takakura, somente um ano depois da sua estreia no grande ecrã) e canta como não poderia deixar de ser. Se outros filmes com ela acabariam por funcionar melhor devido aos seus dotes cómicos e algo trapalhões (o seu trabalho no jidai-geki acaba por ser um pouco mais interessante - aí o musical alinha somente na pieguice mas é kitsch), neste The Deep Blue Sea a intriga é telenovelesca e de inferior qualidade, tentando sempre ter dignidade dramática mas falhando de todas as vezes que tenta conferir qualquer tipo de seriedade. A trama por si só é desinteressante e aborrecida: por exemplo, vejam-se os antagonistas claramente artificiais, o triângulo amoroso sacado à pressão ou até até mesmo a revelação desnecessária da adopção da protagonista. Todos estas passagens não têm outro significado que não o de preencher o tempo da película e forçar conflitos inócuos que lá vão justificando a presença e o estrelato dos actores. É caso para dizer que este mar pode até ser azul mas não é, de todo, profundo.



The Shogun's Vault (1964) de Teruo Ishii: ****
Importantíssimo filme para Teruo Ishii. Dá a impressão que esta incursão prematura nos reinos do jidai-geki - e a primeira que conheço do realizador em que alguns tiques ero-guro já se podem ver em formação - condicionaria toda a estética rocambolesca subsequente do estúdio no final dos anos 60, inclusive as primeiras obras libertinas de um Kinji Fukasaku. Comparar este Shogun's Vault (veja-se como o título já reenvia para a primeira obra ero-guro de Ishii, Shogun's Joy of Torture) a qualquer uma das obras académicas dos artesãos da Toei reenvia-nos, por assim dizer, os méritos e a importância histórica do anti-herói contraposta à fleumática pose do justiceiro leal e honroso, o maior lugar-comum da altura. O filme abre com uma sequência de prisioneiros dançando numa cela colectiva apinhada. A música terrífica e os freeze-frames que paralisam as expressões dessas figuras dão logo a impressão disforme e buçal deste mundo ladrilhado por esquemas, trapaças, mentiras e violência. Eis que dois desses presidiários voltam a encontrar-se, desta vez em liberdade, e decidem assaltar o cofre forte do Shogun. Para atingir esse objectivo, elaboram um plano matreiro e cruzam-se com yakuza, uma das amantes do Shogun e o inspector desejoso de os apanhar novamente em flagrante delito. Quando chegamos à cena do assalto, é caso para dizer que os dados tinham sido todos lançados previamente. Ishii consegue ser bastante eficaz no uso do suspense e com o pormenor cénico dos fogos de artifício eleva essa cena a outro nível. The Shogun's Vault é relevante, muito entretido e inteligente o suficiente para, no final, semear a desilusão da ganância (o plano cómico do polvo agarrado às moedas de ouro no fundo do mar).



Journey Into Solitude (1972) de Koichi Saito: ***
O título original desta película, Tabi no Omosa, literalmente traduz-se por "O peso da viagem", mas a tradução inglesa, "Viagem para a solidão" assenta-lhe ainda melhor. De facto, Koichi Saito sempre esteve interessado em mapear os sentimentos e as conexões emocionais das suas mulheres (não fez senão isso no amor criminoso de Shadow of Deception e no amor impossível de The Rendezvous) porém, evidencia aqui todas essas tentativas de relacionamento com um contrabalanço: o peso da solidão, o peso da viagem. Uma jovem de dezasseis anos decide fugir de casa da mãe e trilhar sozinha os caminhos dos peregrinos religiosos por tempo indefinido e sem pretensões de regressar a casa. Nesse périplo que poderíamos caracterizar como distraidamente interior (relatado por ela em voz-off nas cartas que escreve à mãe), a rapariga travará conhecimento com várias pessoas, e nem todas elas são o ideal da hospitalidade. Curiosamente, é-se até bastante sensato para não se embelezar os encontros da jovem com as existências crepusculares da estrada: uma monja, uma trupe de teatro ambulante rija e habituada às dificuldades e um pescador misterioso. Na verdade, a errância paga-se com a solidão e o desejo da máxima liberdade custa a inocência. Está sempre presente neste relato onde as paisagens avassaladores se fundem com a presença corpórea da nossa protagonista um processo de crescimento e descoberta. Ela conhecerá os primeiros amores, descobrirá a necessidade (talvez até física) dos outros e sentirá, no final, a urgência de permanecer num só único lugar. Saito alinha com muita da tradição japonesa quando declara não ser possível crescer sem uma violência, tristeza e tensão sexual subjacentes a quase todos os encontros com o mundo adulto. No meio dessa adversidade, as lágrimas e os sorrisos bravos da nossa protagonista comovem-nos pois sabemos que a viagem da vida não é para parar a despeito dos pedregulhos no caminho.



Super Gun Lady - Police Branch 82 (1979) de Chusei Sone: ***
Parece ofensivo classificar tão alto um filme de polícias (femininos) praticamente sem estudo de personagens, com uma narrativa fina como papel e a puxar para o sexploitation. De onde vem a sedução que subtraí a fragilidade deliberada deste visionamento? "Form over substance" diria se fosse americano mas como não sou, digo que a realização compensa grande parte das falhas, tais como a superficialidade da intriga e a ausência psicológica de todos os personagens. Perante a câmara de Chusei Sone lutamos sempre contra o nosso próprio gosto, isto é, não há dúvida que algumas opções não se integram bem na globalidade (por exemplo, a cena das drogas e da violação, demasiado negra para se digerir como entretenimento ou até mesmo o sumptuoso assalto ao banco) mas não é por isso que não reconhecemos um talento qualquer para contar a história através de imagens mais arriscadas, quer sejam desconexas, politicamente incorrectas ou até mesmo excessivas. Filmes como estes são difíceis de avaliar porque já sabemos que na sua totalidade são experiências falhadas. A magia reside, pois, em encontrar a surpresa nos vários pormenores e abstrair-nos das falhas (por exemplo antes de acabar, encontramos outra mudança de tom horrível já que seria melhor e mais digno um final aberto e pessimista do que um "ajuste de contas" nos dois minutos finais) e aqui conseguimos fazer isso. Para além do mais, ainda que rendendo-se aos lugares-comuns, Chusei Sone é um especialista em ordenar cenas caoticamente violentas como aquela do banco (tremenda montagem e planificação), por momentos suspendendo a previsibilidade mais preguiçosa e fácil das fórmulas do género.



Deathquake (1980) de Kanjiro Ohmori: 0
A diferença entre filme desastre e filme-desastre é só um hífen, não obstante, um hífen pode fazer muita diferença. Género perneta e coxo, o filme catástrofe tende a ser um pretexto para abusar dos efeitos especiais, assim descuidando o interesse narrativo e mesmo o desenvolvimento dos personagens, perdidos e aflitos na vontade de sobreviver no meio das estrondosas dificuldades semi-apocalípticas, na megalomania dos efeitos e na sede de atrair as massas com orçamentos chorudos. A premissa de Deathquake não deixa de ser curiosa: não esquecendo que o último grande sismo da cidade ocorreu em 1923, o que aconteceria na contemporaneidade se um terramoto atingisse o centro de Tóquio? Em traços gerais, um sismólogo tenta alertar o governo e as instituições públicas dessa situação capaz de ocorrer num futuro muito próximo. Os seus pedidos vão sendo ignorados, chega mesmo a ser censurado e ainda é forçado a divorciar-se da sua esposa. É caso para dizer que a figura do mártir incompreendido está sempre em causa nesta história frágil e bocejante (note-se o final lamechas e deslocado), desculpa para chegarmos à catástrofe e que ainda assim dura mais de metade da duração do filme! Não há nada de relevante aqui, nada que nos prenda ou nos faça sentir investidos. Películas assim, baseadas unicamente em premissas técnicas e de marketing instantâneo, envelhecem, pois, muito mal. Todas as fragilidades ficam à vista e nenhuma virtude ou pormenor compensam alguma coisa.



Child by Children (2008) de Koji Hagiuda: ***
Koji Hagiuda é um cineasta bastante desconhecido e algo desvalorizado até mesmo pelos especialistas e críticos de cinema japonês. Normalmente, os seus filmes optam por uma cadência discreta (seguindo o legado de muitos realizadores independentes do seu país) mas jamais esse ritmo se devora a ele próprio e, até hoje, Hagiuda sempre reconheceu que os conflitos e os personagens vêm sempre primeiro do que essas determinações estéticas mais contemplativas. Child by Children, a sua quinta longa metragem, tem uma premissa no mínimo controversa: uma menina do quinto ano, depois de inocentemente explorar a sua sexualidade com um colega, fica grávida deste e, quer por desconhecimento, quer porque os adultos não acreditam nos seus tímidos pedidos de ajuda, acaba por passar por essa experiência apenas com o frágil, mas sentido apoio dos colegas de classe. Apesar da seriedade do tema, Hagiuda não demoniza nada nem ninguém: o tratamento que dá a todos os personagens - até aos adultos, completamente alheios aos problemas da nossa castiça protagonista - demonstra uma compreensão que eu diria quase ozuniana (tenho óbvios problemas com este termo, pois o seu uso pode ser aplicado a quase tudo o que seja anti-dramático e japonês). Há uma clara forma de abordar este "problema": eu diria que a situação inicial que se descreve no filme faz um bom raccord com a disposição geral deste. A professora quer instaurar aulas de educação sexual para os meninos do quinto ano. Segundo ela, as crianças, por falta de informação e porque copiam o secretismo dos adultos em relação a esse tema, olham para a sexualidade como uma coisa estranha, suja e repugnante. O que ela propõe, em primeiro lugar, é chamar os orgãos sexuais pelo seu nome. No fundo, trata-se de falar abertamente sobre aquilo que é normal mesmo quando todos não o vêm como tal. Portanto, a cena do parto assistido somente pelas crianças - uma cena que teria potencialidades quase grotescas e chocantes - é filmada aqui na óptica do companheirismo das crianças e jamais pelo julgamento de quem quer que seja. Hagiuda teria a tragédia a crepitar por todo o lado mas ignora-a quase sempre e filma sentimentos muito mais difíceis de apreender, justamente porque nunca larga a discrição que caracteriza todo o seu cinema.



Teacher and Three Children (2008) de Kaneto Shindo: ** 
À medida que a carreira de Kaneto Shindo prosseguia no tempo, podiam encontrar-se senão temas comuns, pelo menos pistas de disposições semelhantes. Com os incríveis A Last Note (1995) e Will To Live (1999) - as suas últimas obras primas - , o tema do envelhecimento e da morte parecia preocupar um cineasta cada vez mais perto desse fim inevitável. Esses dois filmes eram densamente poéticos, serenos apesar dos temas e conseguiam apelar a preocupações que julgamos serem acima de tudo pessoais: como lidar com o desaparecimento dos nossos, como encarar o lento apagamento das capacidades, em suma, como preparar dignamente a morte? Ao longo dos anos 2000 e dos seus últimos quatro filmes, Shindo serviu-se de histórias sempre vistas em retrospectiva (By Player, Owl, este Teacher and Three Children ou mesmo Postcard tratam todos da relação do passado com o presente quer seja por memória intra-narrativa ou extra-narrativa) para conseguir dar seguimento à complexidade temática das outras duas obras anteriores. É caso para dizer que este quarteto final não é cinematicamente brilhante: falta a argúcia e a ousadia de antes, falta concentração. No entanto, conseguimos notar tendências inegáveis e especiais de comunhão e aceitação das contradições: tal como o velho professor reformado deste filme tem de estar perto das crianças para ouvir os seus cânticos, também Shindo olha novamente para o mundo com um olhar cada vez mais destilado e descomplexo (que não é necessariamente mais simples), mais próximo daquilo que é primordial e primitivo. O velho olha para o novo com a mesma proximidade circular. Vale aqui o que disse uma vez acerca do cinema tardio de Imamura (para facilitar, relembro): "A inquestionabilidade deste cinema tardio, reside numa convicção, quiçá motivada pela velhice, de que o cinema pode representar a realidade sem realidade, isto é, que o cinema é uma espécie de milagre incontestável e insolúvel." E é precisamente esta inquestionabilidade que faz deste Teacher and Three Children uma obra desequilibrada (com duas histórias: uma de amor e outra de veneração, muito mais interessante a da veneração do que a do amor), fortemente retrospectiva com leves contornos biográficos (o personagem que mais se aproxima do modelo do protagonista é um argumentista, tal como Shindo tinha sido) e, finalmente, com uma disposição humoristicamente exagerada, a roçar a caricatura. Sorrir até ao fim é a prova última de sabedoria e é caso para dizer que na sua obra cinematográfica, Kaneto Shindo nunca fez o contrário disso.



There is Light (2013) de Yukihiro Toda: **
Perguntem a Yukihiro Toda qual o segredo para, na sua primeira longa-metragem, retratar com dignidade os problemas de indivíduos com deficiência, partindo de um pressuposto polémico e original, ou seja, a sua satisfação carnal. Se começamos por aceder à perspectiva de Saori, uma acompanhante no seu primeiro dia de trabalho especializada em atender deficientes, rapidamente se vê descentrado esse protagonismo do negócio da prostituição e assistimos às carências, ostracizações e dificuldades de um grupo de pessoas que se escondem da sociedade porque ela fatalmente os rejeita e os confina ao quadrado de um quarto. Como qualquer primeira obra, There is Light não deixa de ter os seus problemas: por vezes sentimos alguma artificialidade nos diálogos (porque há uma preocupação excessiva em passar a mensagem destas vidas solitárias e incapazes de existirem sem excentricidade) e um acontecimento em especial pareceu-me algo forçado para criar desenvolvimento psicológico a Saori. No entanto, a maneira rara como a humanidade transparece mesmo no mais injusto e desumano dos trabalhos faz-nos reconsiderar em que medida é possível distanciar os sentimentos de apego (e não compaixão, como se poderia antever) da frieza da indústria sexual. Mais um jovem cineasta a seguir no futuro.



Oshin (2013) de Shin Togashi: ***
Não sei até que ponto é fiel esta adaptação homónima da célebre série dos anos 80 rodada para televisão. Muitas coisas e muitos pormenores devem ter ficado de parte já que a série original chegou quase aos 300 episódios (cada um tinha quinze minutos) e conquistou o grande público ao contar as peripécias de uma pobre criança, no princípio do século XX, obrigada a sair de casa e trabalhar para ajudar a sua família. No entanto, Oshin de Shin Togashi aguenta-se muito bem como obra isolada e não sofre daqueles estigmas típicos das adaptações, ou seja, não opta por uma colagem desconexa e apressada dos pontos altos da obra adaptada (para dar uma falsa impressão de fidelidade) nem tão pouco parece demonstrar total desrespeito pelo material original partindo do pressuposto de que há anacronismos que devem ser revistos com olhos mais modernos e sabedores. Ora, esta versão vive das interpretações: fixarei o nome de Kokone Hamada, a criança que dá vida a Oshin e que demonstra uma profundidade estonteante para a idade que tem - um aparte: espero que não acabe como muitos actores-crianças e saiba continuar a sua carreira com papeis fortes e complexos como este. Hamada personifica tão bem a resistência e a rijeza de Oshin e as suas tristezas e maus tratos são ainda mais comoventes quando somos confrontados com a sua força de resposta. Por outro lado, a amabilidade e simplicidade de Oshin (que à primeira vista traduz a esquematização fácil, pobre-bom, rico-mau) reforçam a ideia de que nenhuma pessoa merece conhecer a servidão e o trabalho numa idade tão tenra. Togashi - que já nos tinha surpreendido com Gomen, mas desiludido com outras palermices românticas - consegue muito bem filmar a desolação das paisagens e tempestades de neve e os interiores aconchegantes, mas bastante escuros e sombrios, desprovidos de luminosidade. Conseguimos notar ao longo da película várias mudanças de luz, que são na verdade mudanças de espaços fechados para espaços abertos, e é nesses degradês que a pequena Oshin se movimenta, sempre com um sorriso corajoso, contra qualquer adversidade.

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