13/05/14

Fragmentos de 2014/05/13



Duel at Yagyu Valley (1945) de Eizuke Takisawa: *
Conto sobre a espiritualidade na guerra, Duel at Yagyu Valley do pouco falado Eizuke Takisawa embora não tão agressivo como alguns dos seus predecessores ou contemporâneos continua sendo um produto do seu tempo. Pela sua reduzida duração (um pouco mais de 50 minutos) e pelas questionáveis (mas não menos presentes) tendências pacifistas - veja-se a última cena onde o aperfeiçoamento da arte marcial de Hozoin permite vencer o duelo sem deixar escorrer uma gota de sangue - podemos adivinhar que o ano de produção (1945) não é mera contingência. Do retrato ardente, bélico e competitivo de Date Masamune do filme de Hiroshi Inagaki em 42 à caracterização do espiritual Hozoin Kakuzenbo deste Duel at Yagyu Valley vão três anos completamente significativos para a história mundial. Em 45, a dúvida que recaía sobre a vitória japonesa no Pacífico era mascarada no cinema com um maior equilíbrio mental dos seus heróis (o regresso da batalha não exterior e expansionista, mas interior, esta última tão bem personificada na figura de Miyamoto Musashi), como se conseguíssemos antever nos jidai-gekis da altura a inconstância e as flutuações das projecções e mentalidade nacional. Estritamente falando, Duel é robótico, apressado e sem tempo para dar conteúdo aos seus personagens. É uma obra esquecida, com algum interesse histórico mas que decididamente não resistiu ao teste do tempo.



Big Shots Die at Dawn (1961) de Kihachi Okamoto: **
Sobre os seus primeiros filmes rodados na Toho, Kihachi Okamoto diria numa entrevista com Chris D.: "Eu estava muito contente porque sempre tinha querido realizar filmes de acção. Mas com esses primeiros filmes, eu senti que estava apenas a fazer o meu trabalho e não os apreciava assim tanto." Embora Big Shots Die at Dawn seja posterior a Desperado Outpost, o primeiro trabalho em que Okamoto, pelas suas próprias palavras, se sentiu Okamoto, a verdade é que ainda há aqui muitas semelhanças com as películas de gangsters que dirigiu industrialmente para o estúdio. Este sentimento de filme por encomenda nota-se na ligeireza do enredo e, principalmente, na maneira fácil e artificiosa como fica tudo resolvido no final. Como na maior parte dos noirs a que a Toho chamou Tales from the Underworld, Big Shots Die at Dawn inicia-se com um assassinato e todo o filme resume-se a um vai-e-vem entre dois gangues de mafiosos, a polícia e um protagonista perspicaz mas gozão (como quase todos os heróis de Okamoto). A trivialidade narrativa é compensada com a realização. Apesar dos defeitos e dos lugares comuns irritantes, cada plano encerra um festival de cores e nunca sentimos que qualquer enquadramento (por mais fugaz que surja) seja aleatório. Este é um caso paradigmático de como o estilo se suplanta a qualquer outra determinação e é muita a variedade de truques imagéticos e pantominas que se usam para jamais aborrecer a plateia. O ritmo apressado, néons a fazer sombra nos personagens, enquadramentos mais arriscados (destaca-se o plano aproximado como efeito cómico), ligação de espaços heterogéneos com o foque-desfoque, etc. Ou seja, percebemos, por um lado, a componente de ofício ligada ao desinteresse pela arte narrativa, mas não deixamos de notar a alegria quase infantil de criar ilusões e jogar com as convenções da imagem.



Bride of White Castle (1961) de Tadashi Sawashima: **
Com Bride of White Castle, Sawashima corrobora a assinatura que algures nestes escritos tinha já preconizado. Ao contar as desventuras de um bandido mascarado de senhor feudal e uma jovem demasiado cândida e pouco perspicaz que acredita na sua mentira, o realizador demonstra, mais uma vez, o gosto pela comédia dos enganos e por contos feudais que levemente parodiavam as diferenças da hierarquia social da altura. Talvez a única coisa que se destaca das fórmulas do costume são os cenários detalhados e alguns travelings mais arriscados para o tipo de produção em causa. Tirando esses detalhes, Bride of White Castle não é muito brilhante nos números musicais nem tão pouco consegue ser bem sucedido, lá para o final, na mistura entre comédia ligeira e dramalhão.



Seventeen Ninja 2 - The Great Battle (1966) de Morohiro Tori: *
Bastante mais desajeitado do que o primeiro capítulo realizado por Toshikazu Kono, The Great Battle tenta misturar o niilismo e uma certa aura de desencanto presente nos filmes de ninjas (daí o uso recorrente do preto-e-branco nestas produções) com uma série de lugares-comuns ou escolhas diegéticas que prejudicam a sobriedade e a negritude que tanto apreciamos neste género (e que chegou ao seu auge, por exemplo, num Ninja Hunt). Falo do romance shakesperiano de pacotilha (que opõe artificialmente dois ninjas apaixonados de dois clãs rivais), do desnecessário segmento onde o nosso herói (sempre com muito pouco carisma) mata o pai que nunca conheceu, entre outros momentos pouco consistentes e polidos. É este tipo de melodrama que faz de Seventeen Ninja 2 um filme menor mesmo com uma banda-sonora avant-garde muito satisfatória e um início poderosíssimo (aqule freeze-frame do começo).



The Orphan Gambler (1971) de Shigehiro Ozawa: *
Por volta de 1971 a fórmula ninkyo estava pela hora da morte. Se ao longo do anos 60, bastava explorar o mundo masculino (as irmandades desfeitas, o conflito permanente entre honra e humanidade)  para se fazerem bons filmes yakuzas, desde pelo menos a saga Red Peony Gambler, ou seja, desde 68, que os estúdios (principalmente a Toei) se encantaram pela personificação feminina da fragilidade dos dilemas desse mundo marginal mas com claras intenções de justiça popular. Na maior parte das vezes - e também neste Orphan Gambler - era Junko Fuji que ficava encarregue de interpretar essas mulheres yakuza com o mesmo equilíbrio de frieza e emoção que já encontrávamos nos heróis do género (Ken Takakura, Koji Tsuruta, etc.) . Contudo, a estrutura fíilmica nada diferia de um caso para o outro, ou seja, os ninkyos mais do que qualquer outro género são caracterizados pela repetição dos seus motivos narrativos e por uma declarada previsibilidade, quer sejam protagonizados por homens ou mulheres. Eram filmes que raramente prescindiam dos seus lugares comuns porque o seu público estava refém dessa familiaridade, num certo sentido desejava rever mais do que ver. Portanto, a repetibilidade não durou para sempre e teve o seu desgaste em 1972 com Red Cherry Blossom Family que reunia todas os actores que tinham contribuído para a popularidade do género e demonstrava a última celebração oficial de um estúdio, antes desse género cair no esquecimento. Até lá, uma série de filmes obviamente exaustos ainda conseguiam sobreviver, não obstante a sua falta de criatividade e uma capacidade para criar déjà vus incómodos. Com The Orphan Gambler passa-se exactamente isso. Por um lado, estão cá todos os ingredientes de um ninkyo: os conflitos de honra, a música enka, a propensão para o melodrama mais lacrimejante e uma cena final catártica onde o gangue maldoso é dizimado. Mas, por outro, jamais há qualquer factor de imprevisibilidade e todos os pontos determinantes do enredo são dados explicitamente de modo a sabermos sempre a direcção dramática de todo o filme. Sabemos que a personagem de Junko irá encontrar a sua mãe perdida, sabemos que o gangue rival não parará de atormentar os heróis até ser violentamente exterminado, sabemos que Koji Tsuruta - que parecia ter morrido no início - voltará para acompanhar o duelo final, etc, etc. Um filme cansativo de um género cansado.



Blue Christmas (1978) de Kihachi Okamoto: 0
Sejamos francos: a desmesurada ambição de Kihachi Okamoto é causadora maior da sua ruína. Não bastavam já os incontáveis personagens, cenas e situações completamente desnecessárias ao fio condutor narrativo - algumas dessas cenas tão mal filmadas que custa a crer ter sido Okamoto quem as dirigiu - e tínhamos ainda de engolir pretensões alegóricas, sem a agudez e a cautela das melhores distopias, sobre o mau génio humano, a emergência de novas formas de totalitarismo e, principalmente, a discriminação racial. Perpassa por todo o visionamento um sentido agudo de épico, quer na escala, quer na extensão da mensagem, porém, no final do dia são tantas as perguntas que ficam por responder (e sublinho, tantas cenas claramente a mais: o ritmo está morto desde o início) que apenas permanecemos num pessimismo de trazer por casa (equivalente à sentença: humanidade é lixo), sem qualquer satisfação convincente à fábula que se construiu e sem a robustez dramática que claramente se pretendia passar e se exigia. Blue Christmas é, por isso, constrangedor a vários níveis: em primeiro lugar, porque associa o nome de Okamoto a toda esta trapalhada, em segundo, porque Tatsuya Nakadai, um dos actores principais e um dos mais aptos da sua geração, bem se esforça em tornar interessante o seu personagem mas o que lhe é oferecido é escasso e insuficiente, e em último lugar, mesmo sendo a ideia de um holocausto alienígena remotamente perspicaz (e até é louvável nunca se mostrarem os extra-terrestres), o modo como essa ideia é executada corta pela raiz qualquer boa intenção que poderia haver. Em suma, um filme datado, dolorosamente longo e enganador quanto às capacidades cinematográficas do seu realizador.



Dream Crimes (1985) de Naosuke Kurosawa: *
A assinatura de um argumentista pode ser preciosa mas também pode significar a morte do artista. Em 1985, Takashi Ishii escreveu três argumentos para três roman-porno da Nikkatsu: Love Hotel, obra prima conciliadora de visões e assombros, Scent of a Spell, interessante transgressão de Toshiharu Ikeda sobre uma jovem em apuros e finalmente este Dream Crimes, com um tema caracteristicamente ishiiano, a saber, uma mulher hitman com um passado negro numa estrutura rotineira onde as imagens deveriam falar mais do que o conteúdo escasso. Pois bem, as obsessões do argumentista vão sendo organizadas numa parada consecutiva sendo até difícil esquecer a sua marca  ao longo de todo o filme: note-se a sequência dramática e muda torrencialmente chuvosa, o pendor onírico de certas sequências e, claro, a mistura entre a sujidade noir e um erotismo agressivo (aquilo que muita gente classificou como neo-noir). É caso para dizer que Naosuke Kurosawa, completamente abafado pela melancolia de Ishii filma as suas obsessões sem grandes significados ou revelações. Já vimos coisas muito melhores e muito menos avulsas e vazias.



August Without Him (1994) de Hirokazu Koreeda: ***
O cinema de Hirokazu Koreeda foi sempre um cinema subtil e intimista. Contudo, os seus documentários inaugurais por vezes podem parecer demasiado perseguidores dos seus protagonistas. August Without Him a par com Without Memory tratam dois casos médicos limite na procura pela "realidade" do sofrimento das suas vítimas. Seja na radical perda de memória em Without Memory ou no demorado desfalecimento do Sr. Hirata, o primeiro paciente japonês que publicamente admitiu estar infectado com o vírus da SIDA em August Without Him, a câmara de Koreeda capta a rotina difícil destas existências encostadas a um canto da sociedade e sem quaisquer esperanças de se curarem das doenças que padecem. São filmes paliativos no sentido de apenas tentarem minorar e informar sofrimentos inultrapassáveis cujos testemunhos, por causa do seu peso privado, não deixam sequer santificar ninguém ou fabricar mártires. No caso de Hirata, o narrador não se priva a classificar a sua atitude por vezes de egoísta e aproveitadora quando obriga a equipa de filmagem a fazer as mais variadas tarefas ou mesmo quando usa o formato de documentário para promover o seu caso. No entanto, Koreeda jamais culpa estas tentativas desesperadas de alguém que vê chegar antecipadamente o seu fim e necessita desesperadamente da companhia dos outros, da presença dos outros. Por isso, tanto esta solidão triste como a degenerescência gradual das suas capacidades (para além da magreza, a visão é severamente afectada) torna-se difícil de assistir sem vincularmos sentimentos de compaixão. Uma cena em particular avisa Koreeda que a sua câmara não pode captar mais esse corpo doente e é a pedido do frágil Senhor Hirata que a imagem vai a negro e somos informados do seu falecimento. A habituação à ideia da morte é posta em causa num testemunho comovente em que Hirata diz ter ouvido morrer os doentes que partilhavam o quarto com ele. "Fiquei assustado", diz ele. E nós assustados por ele e por nós.



Tokyo Skin (1996) de Yukinari Hanawa: **
O primeiro filme de Yukinari Hanawa é também um obscuro exercício sobre minorias étnicas perdidas na grande metrópole de Tóquio. Semelhante a Swimming With Tears de Hirotaka Tashiro - outro visionamento recente - , o cast é quase exclusivamente não japonês e a noite na grande e anónima cidade serve de palco ao rol de personagens que nela vagueiam perdidas. A abertura lembra-me os filmes noctívagos de Takashi Miike (o primeiro Dead or Alive, o multi-cultural The City of Lost Souls, etc.) pela maneira directa como aborda os ambientes transgressores e sujos da urbe negra e despersonalizada e como põe no centro da intriga os forasteiros sociais. Para além disso, uma certa dispersão não ajuda à constância emocional da película. Dos vários personagens, contam-se um emigrante chinês ilegal que cita máximas de Confúcio, um paquistanês ludibriado, um artista de rua mendigo, uma japonesa maltratada pelas comunidades marginais, etc. Tokyo Skin perde-se neste esquema de mosaico e apenas ficamos com momentos quase documentais pertencentes a personagens e vidas que dificilmente têm tempo e espaço nas películas sobre a opressiva cidade. 

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