08/11/13

Fragmentos de 2013/11/08




A Chivalrous Spirit (1958) de Sadatsugu Matsuda: **
A força das program-picture sempre residiu na variação da repetição, isto é, quanto mais transfigurador e original fosse a modificação na estrutura, mais único e original, mais "artístico" até, seria o produto final. Sadatsugu Matsuda no seio da Toei filmava a um ritmo frenético, muitas vezes adaptando a mesma história duas ou três vezes em curtos espaços de tempo: isso passou-se, por exemplo, com o lendário conto Chushingura (os 47 Ronin) , rodado por Matsuda em 1958 e 1961. Portanto, A Chivalrous Spirit conta as peripécias clássicas de Shimizu no Jirocho e os seus 28 yakuza, o que não é nada estranho já que a mesma história seria recorrente nos jidai-geki futuros da Toei (Masahiro Makino filmaria Kingdom of Jirocho em 1963) e da Daiei (o díptico Jirocho Fuji, realizada por Kazuo Mori em 59 e 60). Pormenores históricos à parte, este é um filme razoável de estúdio, contido e focado nas prestações (já que se trata de um cast all-star) com pouco a destacar a não ser o final trágico e incompleto, que prometia mas não deu sequela.



A Scoundrel (1965) de Kaneto Shindo: ****
Situado a meio caminho entre os aclamados Onibaba e Kuroneko, A Scoundrel é uma obra-prima esquecida do mestre Kaneto Shindo. Em primeiro lugar, este é um filme que simultaneamente se aproxima e distancia dessas obras não menos nem mais marcantes do realizador. Distancia-se porque prescinde qualquer componente esotérica: Onibaba era uma fábula ética construída a partir da maldição sobrenatural, Kuroneko, por sua vez, era uma história de vingança baseada no folklore fantasmagórico. Diferentemente, neste A Scoundrel apenas há espaço para a intriga, sempre com os pés bem assentes na terra, e a demonstração nefasta e crítica de uma sede de poder sem limites e travões. Isto é material digno de Shakespeare, se lhe tirarmos (e perdoarmos) os fantasmas. É nesta descrição malévola da ganância e da anarquia do poder que reencontramos as suas duas outras obras. De facto, Shindo nos anos 60 estava interessado em descrever as relações de poder e influência entre os humanos, especialmente nas sociedades feudais, e raramente as suas conclusões eram optimistas. Em Onibaba, por exemplo, a ganância de um bando de forasteiros surgia através do desejo de obter mais dinheiro, riquezas e destroços dos guerreiros que morriam. Já aqui, a ambição, se bem que também transcende as regras sociais nomeadamente as maritais, vêm das suas esferas mais altas e constituintes. O braço direito do shogun, Ko No Moronao nutre uma obsessão por uma mulher casada. Instigado pela sua serva (que grande papelão de Nobuko Otowa), o general não dá término à sua busca enquanto não conseguir roubar a sua paixão do marido. Isto dá o mote para uma quantidade de cenas que, diacronicamente, vão da comédia à tragédia. Shindo pode até finalizar a sua narrativa no pessimismo, porém, não deixa de subverter esse sentimento negativo (o de que os poderosos são intocáveis e estão acima de todas as regras) com um desafio poderoso e inquietante: não existe poder desmesurado que conserve o que quer que seja. A ambição corrompe até os lucros secretos que julgávamos retirar dela. Mais uma fantástica fábula moral assinada por Shindo.



Hoodlum Priest and the Gold Mint (1968) de Kazuo Ikehiro: **
O que fazia Shintaro Katsu, um dos actores definitivos da sua geração, nos últimos anos antes da falência da Daiei? Alternava entre o massagista cego Zatoichi (o papel da sua carreira, 26 filmes), Asakichi, o yakuza de bom coração da saga Akumyo (conta exactamente 16 filmes), o soldado insolente e boçal de The Hoodlum Soldier (8 filmes) e ainda tinha disponibilidade para participar em produções semi-independentes como Hitokiri de Hideo Gosha ou The Man Without a Map de Hiroshi Teshigahara. No final dos anos 60, Katsu era, certamente, um homem ocupado e a juntar aos trabalhos a Daiei apostava em dois filmes (este é o segundo) em que o carácter rebelde e imprevisto do seu personagem era, mais uma vez, um pré-requisito. A isto não se pode esquecer a tentativa de querer aproximar a irascibilidade e o atrevimento naturais de Katsu a linguagens na veia do exploitation que fazia furor na Europa e nos Estados Unidos e chegava com pés de lã aos estúdios japoneses. Por isso, neste Hoodlum Priest o personagem é um monge budista atípico que se apaixona facilmente por mulheres, um mestre no roubo e na extorsão que não olvida um sentido de justiça algo bizarro. Kazuo Ikehiro - que, na nossa opinião, era um dos mestres ignorados da Daiei - não consegue demonstrar a sua excepcionalidade característica e o filme não é mais do que uma coleção de vinhetas engraçadas e entretidas com o sempre festivo Katsu a não perdoar. Coincidência ou não, Tomisaburo Wakayama, o irmão mais velho de Shintaro Katsu, também interpretou no mesmo ano, em 68, um monge semelhante numa saga assinada pela Toei que começou com Wicked Priest de Kiyoshi Saeki e teve mais quatro sequelas até 1971. Uma coisa é certa: se queres ser provocante, usa monges!



The Dancer (1989) de Masahiro Shinoda: **
Adaptação do célebre conto homónimo de Mori Ogai, que por sua vez, era baseado nas suas experiências em 1884 aquando de uma estadia em solo germânico por motivos académicos, The Dancer, como todas as histórias de amor impossível, tem como pressuposto o confronto entre os outros e aquilo que poderíamos chamar de egoísmo a dois. A particularidade do conto de Mori é que, em rigor, não eram os outros que tornavam impossível a concretização do projecto amoroso, mas sim, o próprio amante, um estrangeiro (e como poderia não se ser estrangeiro, sendo um japonês na Alemanha do século XIX?) que abandona a sua amada alemã, grávida e com um ataque de nervos. Nesta versão cinematográfica, Masahiro Shinoda quis retomar a instância clássica que aponta as culpas e responsabilidade derradeira para os outros (para um colectivo outro), desta feita, limpando um pouco os sentimentos dúbios e negros do nosso protagonista ao desistir da sua relação e voltar para o seu país natal. Porém, algo que sempre se realça aqui é a descoberta da palavra amor, completamente contrária quer ao dever militar, quer ao interesse mais lato pela nação japonesa. Assim que esse fino segredo é revelado, nada mais faz sentido a não ser a pessoa amada, o objecto do desejo. Talvez por isso, Shinoda esteja mais interessado em diferenciar culturas do que desenvolver a psicologia dos seus personagens (essa apenas dada em longos e, por vezes, desnecessários monólogos em voz-off): dificilmente um japonês pode amar à ocidental, pois sempre se suplanta no seu interior a realidade colectiva que apaga e castra a liberdade individual. Infelizmente, este tipo de paralelos identitários frequentemente esteriliza a vitalidade e profundidade dos envolvidos. E este caso não é excepção.



Graduation Journey: I Came from Japan (1994) de Shusuke Kaneko: 0
Poucas pessoas sabem que o famigerado realizador que revitalizou Godzilla e Gamera e também levou o manga Death Note para o grande ecrã foi, em tempos, especialista em comédias ligeiras. Prova disso é o seu All Quiet on the Employment Front de 1991 (referência satírica ao filme e livro de guerra, All Quiet on the Western Front), comédia juvenil que reunia um grupo de recém-licenciados à procura de emprego numa sociedade altamente competitiva sem lugar para todos. Muito do humor resultava de uma visão cínica do Japão pós quebra da bolha económica, mas o tom era quase sempre leve e descomplexado. Este Graduation Journey é ainda mais - e infelizmente - um produto do seu tempo. Supostamente um filme sobre o sucesso instantâneo que qualquer japonês pode ter na Ásia (nomeadamente na Tailândia, onde qualquer japonês pode ser ídolo pop), Kaneko não deixa de ecoar um sentimento desgostoso ao ridicularizar a carência cultural dos povos asiáticos e a reverência absurda que nutrem pelo Japão. Claro que a ideia seria a dos japoneses se rirem deles próprios no processo, mas, finalmente, Graduation não consegue ser engraçado e situa-se apenas entre o politicamente incorrecto, o sentimental e o parvinho.



Hello, My Dolly Girlfriend (2013) de Takashi Ishii: 0
Nunca questionámos a importância e o papel de Takashi Ishii na redefinição do cinema erótico quando o seu trabalho como argumentista (e, posteriormente, realizador) começou no final dos anos 70. Os seus mangas polémicos eram fonte de inspiração para realizadores tão marcantes como Chusei Sone, Noboru Tanaka, Toshiharu Ikeda e até mesmo Shinji Somai (que fez do seu Love Hotel um filmalhão sem precedentes). Por isso mesmo, vê-lo nestas figuras tristes e a dispor de um erotismo tão depravado, gratuito e explorador é confrangedor. Ishii continua a usar certas imagens de marca, nomeadamente a sua fotografia expressiva e equilibrada entre cores quentes febris e frias virulentas. Mas, tirando essa orientação da cinematografia, a verdade é que este Hello, My Dolly Girlfriend mais não é do que um filme de fetiches (no pior sentido do termo), auto-indulgente e interessado irritantemente em filmar por entre as pernas das actrizes. Pouco aqui há de psicológico (era essa uma das suas assinaturas no passado), a não ser os sonhos molhados e as projeções infantis de um otaku. Incrível desperdício de tempo e talento.



Shield of Straw (2013) de Takashi Miike: *
Takashi Miike sempre foi o campeão da "suspensão de juízo" e as obras que firmaram a sua carreira (Visitor Q, Ichi the Killer, Gozu, a trilogia Dead or Alive, Audition, entre dezenas de outros casos) podem, certamente ser vistas como novas maneiras do espectador ser espantado se ele jurou não se interrogar sobre a plausibilidade da coisa filmada. Não é novidade, portanto, que a postura camaleónica de Miike se apoiasse no género para agitar a consciência ou abalar o estômago e as sensibilidades dos espectadores à deriva nos seus devaneios, mas confiantes. Shield of Straw, no entanto, comercializou a sua, em tempos, tão expressiva suspensão do juízo, transformando-a num espectáculo alvoraçado onde só os calafrios contam. Neste caso, certas inverossimilhanças assim como o próprio pressuposto da narrativa (um milionário publicamente põe a cabeça a prémio do violador e assassino da sua neta) remam contra a maré de um certo realismo nos dilemas e nos sentimentos ulteriores dos personagens: um grupo de polícias que têm de assegurar, contra todos os civis e até mesmo traidores no seio policial, que o psicopata chega são e salvo ao quartel general. Miike, quando estava na sua melhor forma, deitava pela janela qualquer apego, à nossa escala, com os sujeitos filmados e quando isso acontecia a subversão cómica, até mesmo um sentimento de fraude absurda, era uma consequência natural. Aqui, Miike executa um dramalhão frágil, com pés de barro, disposto apenas a criar situações de ansiedade, aparentemente abertas quanto ao seu desfecho, que vão alimentando uma e outra vez a experiência que apenas vai vivendo do sentimento instável de dúvida radical da segurança da escolta policial e do assassino. Lá para o fim tenta-se encenar o diálogo clássico do mal puro (o mal sem arrependimento ou possibilidade de redenção) o que cria, por sua vez, um sentimento de impotência no esforço para cumprir a missão. Mas, por esta altura, já estamos cansados de tanta forma e pouca substância. Começamos, inevitavelmente, a queixar-nos desta mal amanhada e fatídica suspensão de juízo que está lá para servir propósitos narrativos e não forma, por si só, uma linguagem surreal e fantasiosa, digna de cinema, digna de Takashi Miike.



Tokyo Family (2013) de Yoji Yamada: **
Uma das coisas mais belas e certeiras que Audie Bock disse sobre Ozu foi o seguinte: «os (seus) filmes não são para aqueles que procuram soluções utópicas. Ozu nunca se comprometeu em anunciar a possibilidade do amor romântico, do sucesso terreno ou até mesmo da comunicação humana. Apenas a aceitação, e jamais a felicidade, estava aberta para os seus personagens, independentemente da classe social a que pertencessem. Evitando técnicas virtuosas, assim como estruturas dramáticas ele mergulhou directamente na irracionalidade do carácter e naquela verdade terrível: "a vida é decepcionante, não é?"» Esta conhecida sentença de Noriko no Tokyo Story original - que podia ser repetidamente aplicada a toda a obra ozuniana como se de um mantra se tratasse - era a maior demonstração de que o seu filme mais melodramático era também o mais desencantado, o mais severo ao ponto de se instalar uma tristeza comovente e silenciosa, uma dor impotente de mundo. Estava visto que um remake dessa obra cimeira não era tarefa fácil, mesmo tratando-se de Yoji Yamada na cadeira de realizador, o máximo seguidor da estética Shochiku firmada pelos mestres Ozu e Kinoshita. Na verdade, Yamada esforça-se para replicar cada cena, simultaneamente reverenciando o original com tiques de museólogo  e alterando alguns pormenores para informar aos espectadores que sessenta anos passaram. O casal de idosos agora tem problemas com as novas tecnologias e Noriko, que no original de 1953 era uma viúva de um filho morto na segunda guerra, agora é meramente a namorada desse filho mais novo, aqui vivo. Por muito que Yamada entre num esforço mimético (esforço esse que inclusivamente é formal), a única coisa que não consegue captar é, precisamente, a tragédia que reside nos sorrisos vagos, melhor dizendo, o desencanto ozuniano, discreto e secreto como tudo. Por isso mesmo, de todos os momentos chave colhidos por este Tokyo Family, prescindiu-se apenas de um: o momento em que "a vida é decepcionante, não é?" é proferida, como se não houvesse espaço para o lado mais negro, porém mais fascinante e comovente do mestre japonês. Yamada é apenas um Ozu de museu sem essa verdade terrível.

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