23/09/13

Fragmentos de 2013/09/23



Until We Meet Again (1950) de Tadashi Imai: ***
O pessimismo sempre passa pela admissão de um destino trágico (seja ele cósmico ou pessoal), à revelia dos sentimentos e esperanças dos personagens principais, desembocando, naturalmente, naquela maldição grega ao dia em que se nasceu. Em vários casos, Imai é um pessimista confesso. As suas histórias de amor ficam sempre pela não concretização, ficam-se unicamente pelas vontades jovens, intocáveis, puras. Eis o melodramatismo do pós-guerra que podia juntar na mesma encruzilhada impossível o amor por vir e a inexorável e constante violência dos bombardeamentos e de uma guerra sem fundamento. Neste sentido, Imai distancia-se ligeiramente da geração intitulada humanista, que via no pós-guerra uma oportunidade para o melhoramento individual (como Kurosawa muito ocidentalmente anunciava) ou colectivo (veja-se, por exemplo, a obra "vermelha" de Yamamoto). Aqui, a ocasião é nostálgica e não progressista. Não é que Imai não tenha feito os seus filmes felizes e esperançosos, balançados na estética do seu tempo, mas há nestas revisitações do tempo bélico uma enorme vontade de retratar o passado com contornos negros e fechados. Há aqui uma vontade de sofrer e fazer sofrer, provavelmente para poder superar a dor que ainda precisava de se cicatrizar.



An Inlet of Muddy Water (1953) de Tadashi Imai: ****
An Inlet of Muddy Water para muitos torna-se motivo de curiosidade ou ódio quando foi escolhido filme do ano pela conceituada revista Kinema Jumpo, ultrapassando Tokyo Story de Ozu, Ugetsu e A Geisha de Mizoguchi ou ainda A Japanese Tragedy de Kinoshita. Claro que, na altura, esta preferência por Tadashi Imai (cineasta hoje votado ao esquecimento) podia-se justificar pelo recorrente afinco social que percorre todo o seu cinema do pós-guerra. De facto, tanto a silenciosa aceitação de Ozu como a complexidade formal de Mizoguchi  pareciam não ser tão actuais para os críticos quando comparados com as narrativas eminentemente esquerdistas de Imai. Essa sua extrema actualidade e popularidade nos anos 50 foi uma das razões para no final dos anos 70, quando se voltou a descobrir os mestres clássicos no Ocidente, se desacreditar desta obra, apelidando-a de datada ou hipócrita. A verdade é que Imai, hoje e ontem, é um caso de preconceito. Antes mesmo de se experimentar a obra já nos debruçamos no lugar-comum de que um cineasta mais politicamente comprometido é um cineasta desonesto. Adaptando três contos de Ichiyo Higuchi (escritora cuja obra reflecte as dificuldades sociais da era Meiji) Imai filma dedicadamente a dicotomia latente entre pobres e ricos. Ela está bem presente nas três histórias, mas o mais fabuloso é que nunca incorremos no erro provinciano do maniqueísta, isto é, a pobreza não é meramente símbolo de bondade, nem tão pouco a condição de se ser rico significa corrupção e maldade. O mais precioso neste exercício - e talvez o que menos se fala - é a forma como a comunicação entre as classes se dá. Várias vezes, as diferenças de poder são tantas (veja-se a 2ª história, por exemplo) que os pobres não podem deixar de ver os ricos com o medo atroz da subserviência. No entanto, a união espiritual, mesmo que momentânea, é possível. No primeiro segmento, um condutor de riquexó encontra uma amiga de infância, mal casada mas abastada financeiramente. Este encontro, por acaso, no meio da noite que os envolve e torna iguais até o dia nascer serve como metáfora para o desejo utópico das classes se juntarem, apagando as diferenças que os identificam. No terceiro segmento, o mais longo dos três, temos a mais complexa leitura de personagens se quisermos categoriza-las unicamente segundo riqueza ou pobreza. O bordel, local onde a fusão de classes se dá (nem que seja relativo à diferença entre clientes e prostitutas), é o local privilegiado para se esbater as diferenças e vermos os personagens comunicar sem barreiras. Claro que Imai não esquece o passado triste da sua protagonista feminina, como que destinada a morrer com o homem mais perturbado pela pobreza e paixão. A violenta discussão que este homem tem com a sua esposa (símbolo de abnegação incondicional que caracteriza culturalmente a mulher da era Meiji) é dura e comprova, mais uma vez, o realismo não discriminatório de Imai, não desculpando os actos com a condição social. Podemos aqui falar de cinema social na medida em que este se dirige às classes com um desejo entristecido de união (talvez sabendo que ela não é possível meramente por vontades individuais), e jamais com o tom violento de um moralista.



Bronze Magician (1963) de Teinosuke Kinugasa: **
A penúltima obra de Kinugasa antes da sua reforma é estranhamente marcada por uma contenção e uma sobriedade raras para uma obra de estúdio. O seu estilo e ritmo são metade hipnóticos, metade mecânicos. Raizo Ichikawa interpreta Dokyo, um monge com poderes sobrenaturais que, na esperança de melhorar a vida das populações, cura a Imperatriz de uma doença bizarra e torna-se seu conselheiro. O filme gira em torno de intrigas políticas e pouco mais e é rodado quase na integralidade em interiores, oportunidade para se reforçarem  os ambientes claustrofóbicos da corte, lugar instável onde se decide constantemente quem deverá suceder ao trono. Tudo fica dificultado quando o mago misterioso, qual versão oriental de Rasputin, se perde de amores pela Imperatriz. Negando a sua promessa de castidade, os seus próprios poderes começam a desaparecer e os seus inimigos ganham espaço para lhe armarem a última cilada. Com esta premissa, Kinugasa não vai muito para além das suas obrigações como cineasta de estúdio. Alguns pormenores de iluminação podem destoar a estaticidade da câmara, mas no geral, Bronze Magician é apenas razoável.



Female Student Guerrilla (1969) de Masao Adachi: ***
Kiju Yoshida no seu Heroic Purgatory viu-se forçado a descrever os processos revolucionários como farsas simultaneamente absurdas e determinantes de realidade. De facto, a distorção temporal desse filme e todo seu finíssimo apetrecho estilístico fazia dos revolucionários espectros vampirescos, viajantes no tempo prontos a saltar de climas incertos e instáveis para a comodidade entediante do status-quo e vice-versa. Masao Adachi, que aqui antecede em dois anos não só essa premonição crítica de Yoshida como assustadoramente também o bem real destino e falência trágica do Exército Vermelho Unido, decide expurgar a sua narrativa alegórica (sempre escrevera assim os seus argumentos para Wakamatsu) com laivos de sátira e um corrosivo talento para tornar nobres e quiméricos os malogros e frustrações da juventude revolucionária no crepúsculo dos anos 60. O isolamento de cinco estudantes de medicina (dois rapazes e três raparigas) e a consequente criação de um estilo de vida sem discriminações ou barreiras sexuais - a ideia do amor-livre volta aqui a ressoar - era o modelo ideológico e a esperança do anti-estabelecimento derrubar as estruturas do poder, por mais insignificante que elas fossem ou aparecessem. Digamos que há nestes personagens o espelho, ainda que embrutecido, de uma geração. Mas, justamente, Adachi não deixa de lançar o seu veneno (que, em certo sentido e segundo outra interpretação, pode ser ainda visto como exercício de auto-crítica tão patrocinado pela cartilha revolucionária de esquerda) quando numa sequência mete um dos seus soldados da revolução dizendo para outro: "Já me esqueci porque andamos a fazer estas coisas. Espero lembrar-me quando perdermos". Outra cena, profética quanto à sina auto-destrutiva dos movimentos organizados de revolta, tinha de ser a final: corrosão no núcleo mais íntimo dos cinco personagens. A sua união quebra-se quando encontram o seu ser mais espontâneo, num certo sentido, o seu. Aí, só há lugar para o ódio. para o desprezo, enfim, vê-se surgir a esfera do "meu" e, por consequência, a dos "outros". Neste sentido, a condenação de Adachi só não vai mais longe porque era demasiado contemporânea aos eventos descritos. O seu final semi-aberto, entre o ridículo e o épico, parece revelar a postura de quem espera pelo futuro para verificar se os seus medos são mesmo imaginações vãs ou certezas de uma profecia turva.



Story of White Coat: Indecent Acts (1984) de Hidehiro Ito: 0
Podemos dizer que tal como na comédia, o género erótico muitas vezes escolhe mostrar deliberadamente os seus próprios mecanismos para encenar uma farsa que reenvia ao espectador sentimentos prazerosos. Na comédia, este estar-se consciente do humor, quando bem encenado, torna contagiante a experiência de se rir, porém, no caso do cinema erótico, não costumamos assistir a grandes melhoramentos. Quase todas as comédias atrevidas caracterizam-se por um espírito grosseiramente juvenil irritante, desfasado e completamente vulgar. No meio desta fragmentada confusão - sem qualquer personalidade ou intuito - nem chegamos a ver o desejo à distância. A consciência do ridículo e a paródia básica são as culpadas por ainda hoje se pensar que o erotismo é sinónimo de despreocupação e escape.

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