30/01/13

Fragmentos de 2013/01/30


Listen to the Voices of the Sea (1950) de Hideo Sekigawa: *****
Já o sabemos: a análise é produto da finitude, mas julga-se perfeita. Se os meus clamorosos elogios a Tower of the Lilies me levaram a concluir que essa era uma produção única (pelo seu pessimismo beligerante) nem meia decada passada após a derrota nipónica na 2ª Guerra, eis que a curiosidade - e uma referência de Tadao Sato na sua enciclopédia sobre Cinema Japonês - me encaminhou na pista deste criminosamente desconhecido filme de Hideo Sekigawa. É daquelas experiências complicadas de descrever. Mas, é um exercício de dureza poética ladrilhada pelos esforços daqueles que, mudos por uma andrajosa e infeliz morte em batalha, urgem em falar para os vivos acerca do inferno. Sim, nós os vivos. O carácter fantasmagórico destes indefesos soldados - sublinhado na cena final com os seus espíritos literalmente saindo dos corpos sem vida - é comovente a várias leituras e deixa-nos imobilizados de terror. Duas cenas em particular são de cortar a respiração, e têm sempre a ver com uma submissão radical e um silêncio face à tragédia: o abandono dos doentes que não podem mais lutar, deixados à sua sorte na selva, apenas com uma granada, para possivelemente terminarem com  a sua vida, e a cena da batalha final, uma corrida melancolicamente energética para a extinção colectiva de todo o batalhão. Tanto numa cena como na outra, a catástrofe anda de mãos dadas com um sentimento fortemente grotesco e despido de honrarias, tornando a visão de Sekigawa radicalmente crua (um marco, visto que estamos no ano de 50) mesmo quando os momentos são mais emotivos. Não raras vezes, ao ver aquele lamaçal onde jazem os corpos a agonizar desses soldados absurdos, me lembrei do Triunfo da Morte de Pieter Bruegel. Também aqui não há protagonista a liderar a tela. Apenas corpos entrelaçados na terra a preencherem os planos abertos, com a última expressão de horror, que já nem é deles, mas da morte. Decididamente, um pesadelo.



Vagabond of Sex (1967) de Koji Wakamatsu: **
A proposta de Wakamatsu era simples: parodiar o fenómeno social dos jôhatsu (literalmente significa evaporação, era o nome dado aos súbitos desaparecimentos de pessoas sem deixar rasto), dar-lhe uma interpretação psicológica e visceral (mas que acaba por se tornar óbvia e repetitiva) e, aproveitar esse lance para referenciar o, na altura, recém estreado, A Man Vanishes de Shohei Imamura que tinha preocupações temáticas semelhantes mas era muito mais um estudo sobre os limites que vão da realidade à ficção do que outra coisa. Já esta proposta, na maior parte da sua duração, é eventualmente tão simples que temos de esperar pela cena final para sermos abalados de forma subversiva - como só Wakamatsu poderia fazer - e suspirarmos de alívio pelo fim da linear e circular estrutura deste road-movie sexual, ora reminiscente das comédias atrevidas que começavam a aparecer na altura, ora tentando alcançar cenas mais arrojadas esteticamente - ajudadas em muito pelo sempre hipnotizante acompanhamento musical, Zigeunerweisen - , mas sem a intensidade etérea das suas obras de destaque.



In Search of Unreturned Soldiers Pt. 1: Malaysia (1971) de Shohei Imamura: **
In Search of Unreturned Soldiers Pt. 2: Thailand (1971) de Shohei Imamura: ***
Seria injusto separar estes dois documentários, apesar de serem diferentes quanto ao tom, visto que fazem parte do mesmo esforço Imamuriano de desenterrar velhas sombras da 2ª Guerra Mundial perdidas pelos cantos da Ásia. O primeiro capítulo, situado na Malásia, é uma jornada de errância (e pouco ou nada de narração), com as complicações do costume quando tratamos de documentários improvisados: é uma viagem à procura de "soldados evaporados" no meio da estranheza de paisagens mais ou menos tropicais. Os percursos nesta primeira viagem são meras averiguações de paradeiro que acabam por ser repostas ou reconstruidas pelo próprio Imamura que apenas tem para apresentar um antigo soldado, agora convertido ao Islão, que demonstra, nessa sua nova crença, uma resposta às feridas bélicas do passado. Mas, contrariamente ao estilo do seu episódio predecessor, o segundo capítulo passado na Tailândia reúne três ex-soldados numa conversa introspectiva que ocupa todo o documentário, excepto a cena final. Aqui a reconstituição deixa de ser material e espacial e passa a ser mental, visto que os relatos por nós ouvidos podem chegar a ser surpreendentes pela abertura de, pelo menos, dois dos contadores, fazendo que o espectador siga as suas vozes e os seus testemunhos dispersos e às vezes confusos. Uma discussão acesa acerca do estatuto do Imperador é o mote para se perceber as desavenças entre estas almas sem pátria, umas rejeitando-a, outras amando-a, nem que seja às escondidas, na profundidade dos seus corações enrijados.



Sex Hunter: Wet Target (1972) de Yukihiro Sawada: ***
A estreia de Sawada no catálogo extenso da Roman-Porno é qualquer coisa de histórico, principalmente quando, para o bem e para o mal, se trata de um realizador que viveu a representar a violência (principalmente a sexual), filmando brutais personagens em invulgares e selvagens actos de revolta. Escrito pelo lendário Atsushi Yamatoya (alguém um dia o há de desenterrar do esquecimento) Sex Hunter é um filme de vingança corrumpido e queimado no seu interior mesmo. Trata-se de um exercício que sorrateiramente familiariza o espectador com a sua gramática (outcast à procura de vingar a sua irmã, vítima de violação por parte de soldados americanos) e vai, progressivamente dificultando a concretização por aquilo que todos esperamos, tornando o típico herói que paga a violência com a violência numa espécie de falhado, uma alma perdida num mundo triste. Tirando os óbvios contornos raciais (sabe-se que a demonização da ocupação americana faz-se sentir sobretudo nos filmes pink), este é uma obra que demonstra claramente como a sensação artística pode nascer no facto de apenas se efectuarem variações inteligentes dentro do próprio género, dentro dos pré-requesitos de produção industrial. Algo, portanto, para aprender, caros cinéfilos.



Karayuki-san, The Making of a Prostitute (1975) de Shohei Imamura: ***
Esta que é a última produção de Imamura antes do seu regresso ao cinema serve de complemento temático às preocupações presentes no seu universo documental, isto é, dar a cara pelos japoneses distribuidos pelo continente asiático durante a rápida modernização (e consequentes guerras) que ocuparam as primeiras 40 décadas do século XX japonês. Se a sua obsessão pelos soldados que não regressaram à pátria era a oportunidade ideal para se desenterrar feridas não saradas e ouvir em primeira mão as histórias fascinantes mas doridas da 2ª Guerra Mundial, aqui toma-se como "objecto de estudo" as Karayuki-san (em inglês traduz-se por "Miss-Gone-To-China"), mulheres vendidas e extraditadas para bordeis estrangeiros (sobretudo para satisfazer as necessidades sexuais de algumas colónias imperiais). Com um estilo directo, mas raramente invasivo ou desrespeitador, Imamura de alguma forma desmascara os vícios da História que olvida uns e sublima outros, pegando nestas velhas mulheres esquecidas pelo próprio país e por toda a gente. A cena da visita ao cemitério, cujas campas raramente têm assinatura, é um bom exemplo desta dimensão marginal (ainda mais do que os soldados desertores) que prepassa a vida melancólica destas personagens fortes.



My Back Page (2011) de Nobuhiro Yamashita: ****
Já dizia o nosso velho amigo Bob Dylan (na música homónima a este filme, só que com o título no plural): "Lies that life is black and white/ Spoke from my skull. I dreamed/ Romantic facts of musketeers/ Foundationed deep, somehow./ Ah, but I was so much older then,/ I'm younger than that now." Também nos segreda assim o aguardado filme de Yamashita que é uma leitura o mais honesta possível da passagem dos inflamados ideais da mocidade à desilusão que eles provocam quando aplicados no mundo e na gente. Dizer isto não chega, já que se é perspicaz o suficiente para formar um díptico de personagens que são o espelho um do outro, embora cada um esteja numa barricada diferente da História. Esta amizade entre um jornalista e um pseudo-revolucionário representa o período conturbado do final dos anos 60, princípio dos 70, focando maximamente a atenção na decadência dos movimentos estudantis, cansados, por essa altura, da via tradicional de resolver as coisas, virando-se para uma espécie de "terrorismo de adolescentes" como única maneira de agirem. Ficamos mesmo com a impressão que o vazio está por detrás de toda a lengalenga revolucionária, fazendo valer a luta como uma espécie de guerra interna entre as facções de direita e de esquerda. O jornalista Sawada é um idealista não posicionado nos movimentos de revolta, ou seja, ele é um espectador interessado, mas um espectador. É com este personagem que sentimos a passagem do tempo, é com ele que crescemos, pois foi "deceived me into thinking/ (he) had something to protect" (como dizia Dylan). Numa das sequências próximas do final, Sawada sai de uma sala de cinema que projectava The Nineteen Year Old's Map de Mitsuo Yanagimachi. Não se trata de uma coincidência. Ambos os filmes descrevem uma geração que, fatalmente, procurou a violência como principal forma de revolta, mas não estava preparada para as suas consequências.

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