01/10/14

Fragmentos de 2014/10/01



So Goes My Love (1938) de Yasujiro Shimazu: **
Uma pequenina amostra do que Yasujiro Shimazu era capaz. So Goes My Love, típica produção shomingeki da Shochiku, conta as dificuldades de um casal não aprovado pela família do marido e que está condenado a pensar no seu futuro. Shigeo, um escritor sem talento e sem trabalho e Minako, uma dona de casa devota e a única que leva o sustento para casa trabalhando num café à noite, vão sempre falando da impossibilidade de ficarem juntos. Ele, muito mais a favor da separação para o bem dela e ela, pouquíssimo a favor da separação, para o bem dele. Há algumas situações que vão intervalando esta insustentabilidade doméstica: o encontro de Shigeo com o tio, a entrevista de emprego armadilhada, a ida ao cinema com a irmã para ver Olympia de Leni Riefenstahl (que Shigeo diz ser aborrecido), a frustrada e cómica combinação do suicídio entre amantes, etc. Shimazu filma longas sequências, capturando o clima doméstico e os costumes da sua época sem, ainda assim, ir muito longe. Isso fica provado com o "final feliz" súbito, artificial e algo desinteressante.



Kiku and Isamu (1959) de Tadashi Imai: ***
No decorrer da História do Cinema Japonês muitos são os casos em que a raça negra surge como símbolo da ocupação americana. Evoco dois casos bem sucedidos dessa representação problemática: Black Snow de Tetsuji Takechi e The Catch de Nagisa Oshima, mas poderia também falar do sem número de produtos exploitation que subversiva e injustamente colocaram G.I afro-americanos criminosos, violadores, etc, como se os seus delírios selvagens (quase sempre foram representados como bestas sem caracterização ou personalidade) representassem afinal a dominação sem resposta de uma nação humilhada. Kiku and Isamu, com o seu espírito igualitário ainda que pouco idealista, situa-se nos antípodas das produções atrás referidas, aliás, o seu auto-financiamento prova que nunca poderia ter sido feita oficialmente com dinheiros de um estúdio. Ela parte do interior da comunidade mais tradicional para indagar os preconceitos raciais que nela existem, jamais recorrendo à imagem típica do visitante, do estrangeiro ou invasor. Kiku e Isamu, dois filhos mestiços de pai incógnito e de uma mãe já falecida, vivem com a avó no campo e, de acordo com o argumento fronteiriço da identidade, são tão japoneses como qualquer criança já que nasceram e foram educados como japoneses. No entanto, a fisionomia diferente e a cor da pele criam uma diferenciação imediata e a discriminação na escola e noutros lugares (veja-se a lúgubre cena da festa) parece ser inevitável dentro de uma comunidade tão pequena e fechada. A avó preocupa-se com o futuro das crianças, mas parece recorrer ao estigma feudal que ordena o seu despacho para outras entidades afim de ajudarem a família e eles próprios a longo prazo. É aqui que Tadashi Imai revela a sua crítica de costumes, comparando a situação complicada do reenvio de um dos netos para a América do Norte (mesmo não tendo qualquer relação com essa cultura) à venda de uma filha para um bordel. Kiku and Isamu fala, portanto, sobre discriminação mas fá-lo sem recorrer ao maniqueísmo típico dos filmes que abordam esta temática. Imai prefere analisar o tratamento dúbio de uma comunidade face "à estranheza desconfortável dentro do familiar" e neste sentido aponta para as raízes de um feudalismo que só se pode quebrar com amor.



Bloody Shuriken (1965) de Tokuzo Tanaka: ***
Primeiro de quatro películas realizadas somente em 1965 por Tokuzo Tanaka, Bloody Shuriken é mais um opus inspirado no universo estiloso de traições e matreirices que caracterizaram o filme de época japonês ao longo dos anos 60 e que iriam influenciar, por sua vez, os devaneios italianos no western. Relembramo-nos logo de Yojimbo quando aqui toda a intriga passa pela clássica situação do forasteiro no meio de uma cidade (quase fantasma) em conflito e dividida em facções distintas, desejosas de se anularem. Tanaka nunca transcende clichés mas usa todos os circuitos a seu favor, inclusive Raizo Ichikawa, completamente habituado a representar uma frieza simultaneamente ameaçadora e distante, como se nada o afectasse realmente (veja-se o seu mítico personagem Nemuri Kiyoshiro também para a Daiei). Outro destaque curioso - e que facilmente se consegue discriminar - é assinatura estrondosa do lendário Kazuo Miyagawa, director de fotografia responsável pelos Mizoguchis mais marcantes, algumas pérolas de Kon Ichikawa, Rashomon de Kurosawa e, para o caso mais relevante, Yojimbo, influência directa deste Bloody Shuriken como já se afirmou. Logo no primeiro plano conseguimos notar o génio de Miyagawa quando um cadáver boia num pantanal enquanto o nosso herói atira uma faca para os corvos que o devoram. Outros pormenores de destaque vão para as aparições do vilão, sempre pontuadas por uma música e enquadramentos que rememoram a saturação estilística dos duelos em Sergio Leone. Tudo o resto pode parecer previsível, mas com todos estes ingredientes a viagem só pode ser prazerosa.



The Heart (1973) de Kaneto Shindo: ****
Em 1955, Kon Ichikawa assinou aquela que é hoje considerada a adaptação mais fiel de Kokoro, célebre romance de Soseki Natsume publicado durante o ano de 1914. Nela, o realizador traçava todos os episódios da história original, incluindo as suas três partes distintas, e descrevia não só o sentimento agudo de culpabilização de sensei, o tal personagem pesado que vive no remorso fatal de ter "roubado" a amada do seu melhor amigo, K, mas também sublinhava mesmo que subliminarmente o período de transição histórico caracterizado por uma ausência perturbadora (a evaporação da figura paterna, a morte do Imperador Meiji, o nascimento do individualismo moderno). Ora, nesta terceira realização carimbada com o recomendável selo da Art Theatre Guild, Kaneto Shindo desembaraça-se da fidelidade literária de Ichikawa, por um lado transpondo para o seu tempo (os anos 70) a terrível história de amizade e traição e, por outro, cortando todas as acções e personagens que descentralizassem a gravidade desse trio (sendo a única excepção a mãe de I-ko, presença simpática porém mórbida, que parece querer casar a filha a toda a força). Na verdade, aqui só há cabimento para as danças macabras e quietas, sedutoras e mortíferas da juventude, como se Shindo melancolicamente levantasse a seguinte suspeita sobre o seu tempo: o egoísmo não nasceu agora, ele já está instalado há muito e diz respeito a algo mais imutável. Da mesma forma, jamais o diálogo inter-geracional é possível, só o monólogo existe. Eis a razão da escolha do voz-off solipsista em vez da correspondência entre gerações do original. Não há um sensei, figura paternal, que se dirige a um destinatário mais novo contando os seus erros em flashback, mas uma única geração de jovens que povoam os espaços como se só eles e as suas dúvidas e agruras existissem, aqui e agora. Veja-se, a este propósito, a maneira como Shindo filma as cenas exteriores: nunca ou quase nunca há figurantes e mesmo uma ruela na cidade ou um trilho campestre surgem com o mesmo grau de isolamento e desolação, aliás, tal e qual como o trompete arrepiante que vai dando vida (vai dando morte?) à banda-sonora introspectiva e solitária de Hikaru Hayashi. O que parecia uma simplificação preguiçosa e indevida do material original rapidamente se transforma num exercício claustrofóbico e asfixiante com o seu ritmo imprevisível e as suas distinções determinantes. Também Shindo prefere finalizar o seu drama na amargura de se permanecer vivo dentro do castigo imponderável do remorso e da culpabilização. Nada se aprende ou ensina nem nada se diz ou comunica (nem mesmo da maneira mais extrema). Só resta uma náusea calada que permanece a despeito de tudo.



The Ballad of the Sea of Genkai (1986) de Masanobu Deme: **
Tinha apenas visto dois dos filmes de Masanobu Deme: Okita Soji, um bio-pic raro sobre o lendário espadachim do Shinsengumi com momentos de alguma genialidade e Heaven Station, uma tragédia de amores proibidos protagonizados por uma bela e um monstro. Se essas duas produções eram dramas acirrados, The Ballad of the Sea of Genkai é uma comédia ligeira com tantos "pequenos episódios" que se torna confusa e perde rapidamente o seu foco. Começa por colocar a sua protagonista, Yuki, à caça do seu desaparecido marido, um empresário abastado que deixou imensas dívidas e um filho de uma relação ilegítima. Por entre encontros inusitados (claramente exagerados e cómicos), Yuki vai parar à cidade natal de Kitakyushu onde reencontra velhos conhecidos, nomeadamente um amigo de infância que nutre uma velha paixão por ela, e envolve-se com a máfia local que pretende destruir o bairro onde vivia e um velho cinema para instalar um complexo de novos edifícios, continuando, no meio disto tudo, no paradeiro do burlão escapulido. Com duas horas e quinze minutos, o exercício de Deme facilmente se desequilibra com tanta coisa a acontecer (e afinal, com tão pouca coisa significativa a retirar) e mesmo o seu ambiente vai permitindo certas mudanças súbitas de ritmo (filme yakuza, sátira, até um número musical deveras "eighties") que mesmo funcionando certas vezes vão desgastando a atenção e o investimento do espectador. Tirando a aparição de Toshiro Mifune como o inofensivo chefe yakuza, o que mais me surpreendeu aqui foi a energia tão particular de Yuki, uma espécie de heroína dos filmes de Juzo Itami avant la lettre (relembre-se que Taxing Woman estreou em 1987 e baptizava a protagonista feminina itamiana que, no seguimento da sua carreira, apenas iria abandonar pontualmente). Sayuri Yoshinaga, à semelhança da Nobuko Miyamoto de Juzo Itami, encarna uma mulher com traços de personalidade masculinos (até o cabelo curto e o desinteresse sexual põem em cheque a imagem sexista do feminino) e é a única personagem capaz de resolver as coisas, sacrificando-se mas usando sempre a inteligência.



The Thousand Year Fire (2004) de Naoki Segi: **
É conhecida a predisposição japonesa para o cinema "dos cinco elementos" quando a trama passa pelo período de descoberta e perda que todos os jovens conhecem a uma certa idade. Já o último filme de Naomi Kawase, Still the Water (entre tantos outros) aplicava brilhantemente esta obsessão temática pela surdina contemplativa da natureza contraposto ao sentimento de confusão e tristeza dos seus personagens, sempre à descoberta, sempre envolvidos num período turbulento de transição pessoal. Com efeito, a película de Naoki Segi é até demasiado escassa no desenvolvimento das personagens já que confia absolutamente nessa espécie de revelação mística que os espaços naturais conferem (as nuvens, o fogo, o oceano que representa a morte do pai do protagonista - através da perda do telemóvel na água - e seu o renascimento depois do torneio de natação). É pena que as personagens estejam tão indefinidas ao ponto das suas emoções se tornaram algo abstractas e apoiadas em fórmulas, encontrando-se sempre sustentadas pela magnífica paisagem em redor, mas pouco mais do que isso. The Thousand Year Fire é, como todos estes filmes, místico, intimista e silencioso, mas já vimos melhor.



Hospitalité (2010) de Koji Fukada: ***
Apesar das minhas pesquisas e dedicação relativas à emergência de novos talentos no cinema japonês, este Hospitalité do virtualmente desconhecido Koji Fukada escapou completamente ao meu radar. E que boa surpresa! Aparentemente um guia, em poucos passos, de como nos podemos sentir estranhos dentro da nossa própria casa, o filme trata os seus temas de forma, ousaríamos dizer, narusiana na medida em que usa o cepticismo e a desconfiança nas relações humanas para desfiar o drama doméstico e as ordens imperturbáveis a ele associadas. Se Naruse, no entanto, não precisava da família disfuncional para desconfiar e depois aceitar todas as vicissitudes relativas ao matrimónio ou às uniões de facto (pondo em cheque a lenta rotina que constitui a vida a dois), Fukada tem de recorrer a famílias dissolvidas (logo em construção) e à presença de um conhecido, mas estranho ao seio familiar, que semeará, com pompa e circunstância, o caos. Há muito tempo que não víamos um cineasta interessado no tipo de humor que nasce de um certo cinismo em relação aos costumes culturais e, até, às simples normas de boa educação. Hospitalité é um filme de hospitalidades frustradas (a última cena hilariante reduz ao absurdo a simpatia postiça e social que não sabe dizer não) que vive das suas situações insólitas e dos seus personagens, a dois tempos, relacionáveis e imperfeitos (e é a sua imperfeição que os torna relacionáveis).



Ramen Samurai (2011) de Naoki Segi: *
Para quem esperava enxergar aqui, mais uma vez, os poderes miraculosos (eróticos, sociáveis, profiláticos, etc, etc) da culinária - e como não recordar Tampopo de Juzo Itami que abria com aquela mítica cena sobre a arte de comer ramen? - este outro filme de Naoki Segi prescinde dos pretéritos e da loucura descomedida desse seu complexo predecessor gastronómico e encena uma intriga demasiado banal com recorrência excessiva e exasperante aos flashbacks. Uma coisa é certa: com apenas dois filmes vistos, Segi interessa-se bastante pela temática do pai ausente e no modo como os personagens completam ou complementam essa ausência: em The Thousand Year Fire, Satoshi Sugita com apenas onze anos perdia o pai de forma completamente abrupta e resguardava-se no silêncio dessa perda e ao telemóvel que continha a sua última mensagem, em Ramen Samurai (em que a comida apenas serve de pretexto) Hikaru resolve, com o apoio da mãe, tomar as rédeas do ofício do defunto pai e recriar a sua receita famosa de tonkatsu (para quem não sabe, trata-se de uma deliciosa sopa de massa e carne de porco). Quase toda a película se passa num longo flashback recriando episódios do negócio do pai enquanto Hikaru tenta, no presente, dominar a arte (infelizmente pouco mostrada) de cozinhar ramen enquanto tenta, ao mesmo tempo, revitalizar o bairro desprovido do comércio ambulante de sopas. Resta dizer que nada aqui se destaca grandemente: nem personagens, nem situações, e ficamos a perceber mal o papel que a cozinha pode ter na vida de quem a faz e de quem a recebe. Ramen Samurai tem os defeitos de uma produção televisiva, confiando muito mais na unidimensionalidade da trama e na acumulação de cenas episódicas do que no desenvolvimento devido dos seus temas e motivações.



The Little House (2014) de Yoji Yamada: ***
Com 83 anos, Yoji Yamada parece votar-se, nos seus últimos filmes, à arte da recordação. Kabei: Our Mother, tal como este The Little House, lembrava os tempos austeros da Segunda Guerra Mundial e tanto Younger Brother como Tokyo Family, mesmo situando-se no tempo presente, eram recriações (mais ou menos conseguidas, mas isso não importa) de filmes clássicos (um de Kon Ichikawa, outro de Yasujiro Ozu) e perpassava neles uma nostalgia inquestionável. Em The Little House, porém, a arte da recordação é ainda mais explícita pois faz parte integral da narrativa. Aquando do funeral da idosa Taki, o seu sobrinho Takeshi descobre a auto-biografia que ele próprio tinha incitado a tia a  escrever. Taki, que nunca se casou, conta nos cadernos como foi parar à casa de um fabricante de bonecos e explicita, ao pormenor, como era a relação com a sua patroa, a bela mas infeliz Tokiko. Ao longo dos relatos e das lembranças da tia não deixa de ser interessante a maneira como o sobrinho questiona certos "idealismos", contrapondo com a cronologia estanque de acontecimentos supostamente mais marcantes e sérios. Na boca de vários personagens (no passado e no presente) ouvimos que os tempos não eram fáceis e vivia-se uma instabilidade desconcertante, porém Taki (e Yamada) não deixa de sublinhar que os habitantes da História não são muitas vezes os seus protagonistas, de tal maneira que era possível conhecer a felicidade em tempos contrários a ela. Apesar disso, The Little House é um conto sobre adultério numa sociedade fechada e vive sobretudo das prestações cuidadas (nomeadamente Takako Matsu como Tokiko e a habitual yamadiana Chieko Baisho) e do milimétrico trabalho de câmara, rígido formalismo capaz de excepcções quando o drama assim o permite. O último troço do filme (talvez extenso demais) acaba por funcionar pois representa a procura da memória pela geração mais nova, provando que a memória como fenómeno emocional não é algo exclusivo dos velhos.

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