29/04/14

Fragmentos de 2014/04/29



The Deep Blue Sea (1957) de Tsuneo Kobayashi: *
Este musical discreto e quotidiano jamais consegue superar o estatuto de produção rotineira de estúdio. A diva Hibari Misora, mais uma vez, contracena com um cast de jovem promessas (de destacar a aparição de Ken Takakura, somente um ano depois da sua estreia no grande ecrã) e canta como não poderia deixar de ser. Se outros filmes com ela acabariam por funcionar melhor devido aos seus dotes cómicos e algo trapalhões (o seu trabalho no jidai-geki acaba por ser um pouco mais interessante - aí o musical alinha somente na pieguice mas é kitsch), neste The Deep Blue Sea a intriga é telenovelesca e de inferior qualidade, tentando sempre ter dignidade dramática mas falhando de todas as vezes que tenta conferir qualquer tipo de seriedade. A trama por si só é desinteressante e aborrecida: por exemplo, vejam-se os antagonistas claramente artificiais, o triângulo amoroso sacado à pressão ou até até mesmo a revelação desnecessária da adopção da protagonista. Todos estas passagens não têm outro significado que não o de preencher o tempo da película e forçar conflitos inócuos que lá vão justificando a presença e o estrelato dos actores. É caso para dizer que este mar pode até ser azul mas não é, de todo, profundo.



The Shogun's Vault (1964) de Teruo Ishii: ****
Importantíssimo filme para Teruo Ishii. Dá a impressão que esta incursão prematura nos reinos do jidai-geki - e a primeira que conheço do realizador em que alguns tiques ero-guro já se podem ver em formação - condicionaria toda a estética rocambolesca subsequente do estúdio no final dos anos 60, inclusive as primeiras obras libertinas de um Kinji Fukasaku. Comparar este Shogun's Vault (veja-se como o título já reenvia para a primeira obra ero-guro de Ishii, Shogun's Joy of Torture) a qualquer uma das obras académicas dos artesãos da Toei reenvia-nos, por assim dizer, os méritos e a importância histórica do anti-herói contraposta à fleumática pose do justiceiro leal e honroso, o maior lugar-comum da altura. O filme abre com uma sequência de prisioneiros dançando numa cela colectiva apinhada. A música terrífica e os freeze-frames que paralisam as expressões dessas figuras dão logo a impressão disforme e buçal deste mundo ladrilhado por esquemas, trapaças, mentiras e violência. Eis que dois desses presidiários voltam a encontrar-se, desta vez em liberdade, e decidem assaltar o cofre forte do Shogun. Para atingir esse objectivo, elaboram um plano matreiro e cruzam-se com yakuza, uma das amantes do Shogun e o inspector desejoso de os apanhar novamente em flagrante delito. Quando chegamos à cena do assalto, é caso para dizer que os dados tinham sido todos lançados previamente. Ishii consegue ser bastante eficaz no uso do suspense e com o pormenor cénico dos fogos de artifício eleva essa cena a outro nível. The Shogun's Vault é relevante, muito entretido e inteligente o suficiente para, no final, semear a desilusão da ganância (o plano cómico do polvo agarrado às moedas de ouro no fundo do mar).



Journey Into Solitude (1972) de Koichi Saito: ***
O título original desta película, Tabi no Omosa, literalmente traduz-se por "O peso da viagem", mas a tradução inglesa, "Viagem para a solidão" assenta-lhe ainda melhor. De facto, Koichi Saito sempre esteve interessado em mapear os sentimentos e as conexões emocionais das suas mulheres (não fez senão isso no amor criminoso de Shadow of Deception e no amor impossível de The Rendezvous) porém, evidencia aqui todas essas tentativas de relacionamento com um contrabalanço: o peso da solidão, o peso da viagem. Uma jovem de dezasseis anos decide fugir de casa da mãe e trilhar sozinha os caminhos dos peregrinos religiosos por tempo indefinido e sem pretensões de regressar a casa. Nesse périplo que poderíamos caracterizar como distraidamente interior (relatado por ela em voz-off nas cartas que escreve à mãe), a rapariga travará conhecimento com várias pessoas, e nem todas elas são o ideal da hospitalidade. Curiosamente, é-se até bastante sensato para não se embelezar os encontros da jovem com as existências crepusculares da estrada: uma monja, uma trupe de teatro ambulante rija e habituada às dificuldades e um pescador misterioso. Na verdade, a errância paga-se com a solidão e o desejo da máxima liberdade custa a inocência. Está sempre presente neste relato onde as paisagens avassaladores se fundem com a presença corpórea da nossa protagonista um processo de crescimento e descoberta. Ela conhecerá os primeiros amores, descobrirá a necessidade (talvez até física) dos outros e sentirá, no final, a urgência de permanecer num só único lugar. Saito alinha com muita da tradição japonesa quando declara não ser possível crescer sem uma violência, tristeza e tensão sexual subjacentes a quase todos os encontros com o mundo adulto. No meio dessa adversidade, as lágrimas e os sorrisos bravos da nossa protagonista comovem-nos pois sabemos que a viagem da vida não é para parar a despeito dos pedregulhos no caminho.



Super Gun Lady - Police Branch 82 (1979) de Chusei Sone: ***
Parece ofensivo classificar tão alto um filme de polícias (femininos) praticamente sem estudo de personagens, com uma narrativa fina como papel e a puxar para o sexploitation. De onde vem a sedução que subtraí a fragilidade deliberada deste visionamento? "Form over substance" diria se fosse americano mas como não sou, digo que a realização compensa grande parte das falhas, tais como a superficialidade da intriga e a ausência psicológica de todos os personagens. Perante a câmara de Chusei Sone lutamos sempre contra o nosso próprio gosto, isto é, não há dúvida que algumas opções não se integram bem na globalidade (por exemplo, a cena das drogas e da violação, demasiado negra para se digerir como entretenimento ou até mesmo o sumptuoso assalto ao banco) mas não é por isso que não reconhecemos um talento qualquer para contar a história através de imagens mais arriscadas, quer sejam desconexas, politicamente incorrectas ou até mesmo excessivas. Filmes como estes são difíceis de avaliar porque já sabemos que na sua totalidade são experiências falhadas. A magia reside, pois, em encontrar a surpresa nos vários pormenores e abstrair-nos das falhas (por exemplo antes de acabar, encontramos outra mudança de tom horrível já que seria melhor e mais digno um final aberto e pessimista do que um "ajuste de contas" nos dois minutos finais) e aqui conseguimos fazer isso. Para além do mais, ainda que rendendo-se aos lugares-comuns, Chusei Sone é um especialista em ordenar cenas caoticamente violentas como aquela do banco (tremenda montagem e planificação), por momentos suspendendo a previsibilidade mais preguiçosa e fácil das fórmulas do género.



Deathquake (1980) de Kanjiro Ohmori: 0
A diferença entre filme desastre e filme-desastre é só um hífen, não obstante, um hífen pode fazer muita diferença. Género perneta e coxo, o filme catástrofe tende a ser um pretexto para abusar dos efeitos especiais, assim descuidando o interesse narrativo e mesmo o desenvolvimento dos personagens, perdidos e aflitos na vontade de sobreviver no meio das estrondosas dificuldades semi-apocalípticas, na megalomania dos efeitos e na sede de atrair as massas com orçamentos chorudos. A premissa de Deathquake não deixa de ser curiosa: não esquecendo que o último grande sismo da cidade ocorreu em 1923, o que aconteceria na contemporaneidade se um terramoto atingisse o centro de Tóquio? Em traços gerais, um sismólogo tenta alertar o governo e as instituições públicas dessa situação capaz de ocorrer num futuro muito próximo. Os seus pedidos vão sendo ignorados, chega mesmo a ser censurado e ainda é forçado a divorciar-se da sua esposa. É caso para dizer que a figura do mártir incompreendido está sempre em causa nesta história frágil e bocejante (note-se o final lamechas e deslocado), desculpa para chegarmos à catástrofe e que ainda assim dura mais de metade da duração do filme! Não há nada de relevante aqui, nada que nos prenda ou nos faça sentir investidos. Películas assim, baseadas unicamente em premissas técnicas e de marketing instantâneo, envelhecem, pois, muito mal. Todas as fragilidades ficam à vista e nenhuma virtude ou pormenor compensam alguma coisa.



Child by Children (2008) de Koji Hagiuda: ***
Koji Hagiuda é um cineasta bastante desconhecido e algo desvalorizado até mesmo pelos especialistas e críticos de cinema japonês. Normalmente, os seus filmes optam por uma cadência discreta (seguindo o legado de muitos realizadores independentes do seu país) mas jamais esse ritmo se devora a ele próprio e, até hoje, Hagiuda sempre reconheceu que os conflitos e os personagens vêm sempre primeiro do que essas determinações estéticas mais contemplativas. Child by Children, a sua quinta longa metragem, tem uma premissa no mínimo controversa: uma menina do quinto ano, depois de inocentemente explorar a sua sexualidade com um colega, fica grávida deste e, quer por desconhecimento, quer porque os adultos não acreditam nos seus tímidos pedidos de ajuda, acaba por passar por essa experiência apenas com o frágil, mas sentido apoio dos colegas de classe. Apesar da seriedade do tema, Hagiuda não demoniza nada nem ninguém: o tratamento que dá a todos os personagens - até aos adultos, completamente alheios aos problemas da nossa castiça protagonista - demonstra uma compreensão que eu diria quase ozuniana (tenho óbvios problemas com este termo, pois o seu uso pode ser aplicado a quase tudo o que seja anti-dramático e japonês). Há uma clara forma de abordar este "problema": eu diria que a situação inicial que se descreve no filme faz um bom raccord com a disposição geral deste. A professora quer instaurar aulas de educação sexual para os meninos do quinto ano. Segundo ela, as crianças, por falta de informação e porque copiam o secretismo dos adultos em relação a esse tema, olham para a sexualidade como uma coisa estranha, suja e repugnante. O que ela propõe, em primeiro lugar, é chamar os orgãos sexuais pelo seu nome. No fundo, trata-se de falar abertamente sobre aquilo que é normal mesmo quando todos não o vêm como tal. Portanto, a cena do parto assistido somente pelas crianças - uma cena que teria potencialidades quase grotescas e chocantes - é filmada aqui na óptica do companheirismo das crianças e jamais pelo julgamento de quem quer que seja. Hagiuda teria a tragédia a crepitar por todo o lado mas ignora-a quase sempre e filma sentimentos muito mais difíceis de apreender, justamente porque nunca larga a discrição que caracteriza todo o seu cinema.



Teacher and Three Children (2008) de Kaneto Shindo: ** 
À medida que a carreira de Kaneto Shindo prosseguia no tempo, podiam encontrar-se senão temas comuns, pelo menos pistas de disposições semelhantes. Com os incríveis A Last Note (1995) e Will To Live (1999) - as suas últimas obras primas - , o tema do envelhecimento e da morte parecia preocupar um cineasta cada vez mais perto desse fim inevitável. Esses dois filmes eram densamente poéticos, serenos apesar dos temas e conseguiam apelar a preocupações que julgamos serem acima de tudo pessoais: como lidar com o desaparecimento dos nossos, como encarar o lento apagamento das capacidades, em suma, como preparar dignamente a morte? Ao longo dos anos 2000 e dos seus últimos quatro filmes, Shindo serviu-se de histórias sempre vistas em retrospectiva (By Player, Owl, este Teacher and Three Children ou mesmo Postcard tratam todos da relação do passado com o presente quer seja por memória intra-narrativa ou extra-narrativa) para conseguir dar seguimento à complexidade temática das outras duas obras anteriores. É caso para dizer que este quarteto final não é cinematicamente brilhante: falta a argúcia e a ousadia de antes, falta concentração. No entanto, conseguimos notar tendências inegáveis e especiais de comunhão e aceitação das contradições: tal como o velho professor reformado deste filme tem de estar perto das crianças para ouvir os seus cânticos, também Shindo olha novamente para o mundo com um olhar cada vez mais destilado e descomplexo (que não é necessariamente mais simples), mais próximo daquilo que é primordial e primitivo. O velho olha para o novo com a mesma proximidade circular. Vale aqui o que disse uma vez acerca do cinema tardio de Imamura (para facilitar, relembro): "A inquestionabilidade deste cinema tardio, reside numa convicção, quiçá motivada pela velhice, de que o cinema pode representar a realidade sem realidade, isto é, que o cinema é uma espécie de milagre incontestável e insolúvel." E é precisamente esta inquestionabilidade que faz deste Teacher and Three Children uma obra desequilibrada (com duas histórias: uma de amor e outra de veneração, muito mais interessante a da veneração do que a do amor), fortemente retrospectiva com leves contornos biográficos (o personagem que mais se aproxima do modelo do protagonista é um argumentista, tal como Shindo tinha sido) e, finalmente, com uma disposição humoristicamente exagerada, a roçar a caricatura. Sorrir até ao fim é a prova última de sabedoria e é caso para dizer que na sua obra cinematográfica, Kaneto Shindo nunca fez o contrário disso.



There is Light (2013) de Yukihiro Toda: **
Perguntem a Yukihiro Toda qual o segredo para, na sua primeira longa-metragem, retratar com dignidade os problemas de indivíduos com deficiência, partindo de um pressuposto polémico e original, ou seja, a sua satisfação carnal. Se começamos por aceder à perspectiva de Saori, uma acompanhante no seu primeiro dia de trabalho especializada em atender deficientes, rapidamente se vê descentrado esse protagonismo do negócio da prostituição e assistimos às carências, ostracizações e dificuldades de um grupo de pessoas que se escondem da sociedade porque ela fatalmente os rejeita e os confina ao quadrado de um quarto. Como qualquer primeira obra, There is Light não deixa de ter os seus problemas: por vezes sentimos alguma artificialidade nos diálogos (porque há uma preocupação excessiva em passar a mensagem destas vidas solitárias e incapazes de existirem sem excentricidade) e um acontecimento em especial pareceu-me algo forçado para criar desenvolvimento psicológico a Saori. No entanto, a maneira rara como a humanidade transparece mesmo no mais injusto e desumano dos trabalhos faz-nos reconsiderar em que medida é possível distanciar os sentimentos de apego (e não compaixão, como se poderia antever) da frieza da indústria sexual. Mais um jovem cineasta a seguir no futuro.



Oshin (2013) de Shin Togashi: ***
Não sei até que ponto é fiel esta adaptação homónima da célebre série dos anos 80 rodada para televisão. Muitas coisas e muitos pormenores devem ter ficado de parte já que a série original chegou quase aos 300 episódios (cada um tinha quinze minutos) e conquistou o grande público ao contar as peripécias de uma pobre criança, no princípio do século XX, obrigada a sair de casa e trabalhar para ajudar a sua família. No entanto, Oshin de Shin Togashi aguenta-se muito bem como obra isolada e não sofre daqueles estigmas típicos das adaptações, ou seja, não opta por uma colagem desconexa e apressada dos pontos altos da obra adaptada (para dar uma falsa impressão de fidelidade) nem tão pouco parece demonstrar total desrespeito pelo material original partindo do pressuposto de que há anacronismos que devem ser revistos com olhos mais modernos e sabedores. Ora, esta versão vive das interpretações: fixarei o nome de Kokone Hamada, a criança que dá vida a Oshin e que demonstra uma profundidade estonteante para a idade que tem - um aparte: espero que não acabe como muitos actores-crianças e saiba continuar a sua carreira com papeis fortes e complexos como este. Hamada personifica tão bem a resistência e a rijeza de Oshin e as suas tristezas e maus tratos são ainda mais comoventes quando somos confrontados com a sua força de resposta. Por outro lado, a amabilidade e simplicidade de Oshin (que à primeira vista traduz a esquematização fácil, pobre-bom, rico-mau) reforçam a ideia de que nenhuma pessoa merece conhecer a servidão e o trabalho numa idade tão tenra. Togashi - que já nos tinha surpreendido com Gomen, mas desiludido com outras palermices românticas - consegue muito bem filmar a desolação das paisagens e tempestades de neve e os interiores aconchegantes, mas bastante escuros e sombrios, desprovidos de luminosidade. Conseguimos notar ao longo da película várias mudanças de luz, que são na verdade mudanças de espaços fechados para espaços abertos, e é nesses degradês que a pequena Oshin se movimenta, sempre com um sorriso corajoso, contra qualquer adversidade.

10/04/14

Fragmentos de 2014/04/10




Story of a Beloved Wife (1951) de Kaneto Shindo: **
É curioso notar como o primeiro filme realizado por Kaneto Shindo é sintomático do que viria a fazer pontualmente na sua longa carreira. Falo, mais concretamente, de uma espécie de narrativas que reúnem relatos mais ou menos autobiográficos com lirismos homenageados de pessoas que foram importantes para o cineasta. Não esqueçamos que no inteligente e sóbrio Tree Without Leaves, Shindo faria um tributo indirecto e sentido à sua mãe e própria infância, e por exemplo, no mais tardio By Player revia grande parte do seu cinema, documentando ficcionalmente a vida do seu camarada e actor fetiche, Taiji Tonoyama. Em Story of a Beloved Wife, o então novato realizador decidiu relatar os seus primeiros anos como argumentista durante os tempos turbulentos da guerra e, a partir daí, agradecer sentidamente a dedicação e apoio da sua primeira mulher (falecida apenas um ano após viverem juntos). Parafraseando o autor: "Story of a Beloved Wife é 70% factos e 30% ficção. Este argumento é muito importante para mim. Quando o acabei pensei que entregá-lo a um realizador qualquer era uma blasfémia para a alma da minha mulher. Então comecei a pensar realizar o filme, mas seria só este." Percebemos a vontade de elogiar a memória desta boa alma que, no decorrer do filme, sobe, infelizmente, ao pedestal da santidade. O jovem e inexperiente argumentista (Shindo, ele próprio) é presença frágil, insegura e a química da relação não desenvolve até à triste morte dela. Até mesmo depois da morte, a mulher apoia sempre o seu homem e acredita no seu trabalho contra todas as evidências. O voz-off explicativo e o modo linear como a narrativa vai decorrendo apontam para o academismo óbvio de uma primeira obra sem consciência clara de si própria. Shindo não quis arriscar porque talvez não acreditasse no seguimento da sua carreira como realizador. Portanto, não deixamos de ver aqui uma obra íntima e sentimental que felizmente seria o início de uma fulgurante carreira. E Nobuko Otowa, que interpreta a defunta esposa, seria futuramente a amante do próprio Kaneto Shindo. Há coincidências esquisitas.



Galaxy (1967) de Masao Adachi: ***
Alguém disse uma vez que o imaginário é uma categoria do real. Também alguém disse que o imaginário liberta-nos da banalidade justamente porque trabalha os seus pressupostos escondidos, mas nela contidos. Galaxy é um filme integralmente constituído a partir de visões turvas e inebriantes onde o imaginário (essa capacidade de suspender o hábito e substitui-lo por novos códigos e linguagens) toma sempre a dianteira, suspendendo e sobrecarregando as representações mais concretas e palpáveis e executando sinapses oníricas, espantosas e ambíguas. Não deixamos de ver neste tratado surrealista a intenção, apesar de tudo, construtiva de erguer um projecto experimental de um novo cinema, isto é, abrir a possibilidade para se construirem ligações originais de montagem, enquadramento e (des)construção narrativa onde uma certa variação livre se confunde com o mundo dos pesadelos (esse mundo sempre visto na primeira pessoa) e, portanto, onde os conflitos de identidade são uma constante. Num manifesto redigido e lançado na altura da estreia do filme (intitulado Manifesto da Companhia da Galáxia), Masao Adachi sublinha na sua escrita lacónica e obscura o processo criativo subjacente a Galaxy. Parafraseia Oscar Wilde (a existência é "uma sombra negra de uma ilha flutuando sobre o nevoeiro, por cima de um lago"), referencia mitologia búdica e mistura-a com o primeiro capítulo do livro do Génesis e até chega mesmo a escrever sobre o único modo de actuação da sua era, citando Nathalie Sarraute a esse aspecto. Segundo a autora "a era da suspeita" é a era onde justamente culminam todas as inquietações e se projectam todas as resoluções imaginadas, todas as angústias vividas, todos os sonhos alucinados. Descobrir o método da suspeita significa abrir caminho para novas metodologias de inspecção interior e cinematográfica porque de alguma maneira suspeitar é abrir caminho para se acreditar em algo totalmente diferente que escape aos cânones reconhecíveis. Com efeito, Adachi parece querer sempre misturar todas as dimensões: o experimentalismo refinado e críptico com tendências populares, anti-autorais e anti-burguesas (inclusive compara-se, a si e à sua equipa, a "pseudo-autores que ascenderam a intelectuais revolucionários que traem os seus interesses como classe em detrimento dos oprimidos"), a suspeita lúcida com sonhos pagãos de libertação (corporal e social) e, finalmente, a descoberta do ego no meio de universos simbólicos e universais. Neste sentido, Adachi faz uma referência vaga a "Ló morto pelos seus dois filhos" como que confessando o desejo de resgatar novas realidades onde o "eu", este novo e autêntico "eu" tanto procurado pelos surrealistas, se pudesse pousar e reencontrar no meio de uma "nova mitologia vital auxiliada por novos métodos e novas linguagens". Galaxy está constantemente a tratar do tema da metamorfose individual (esta ideia de que qualquer existência é uma galáxia infinita de relações que podem ser subvertidas e assassinadas pelo próprio) como descreve este eu perdido e dividido - literalmente - entre passado e presente e, sobretudo, a urgência de radicalmente transmutar o futuro numa existência que fosse a síntese entre tudo e todos, a não-contradição, se quisermos a imortalidade aberrante, em suma, a monstruosidade. Em termos históricos a importância deste filme é fulcral: a partir daqui o discurso de índole surrealista contagiou a gramática experimental japonesa como se de um vírus se tratasse.



Wet Sand in August (1971) de Toshiya Fujita: ***
Versão mais moderna e niilista de Crazy Fruit, Wet Sand in August mostra uma juventude sem qualquer rumo, entregue a carnalidades que parecem surgir por uma mistura perigosa entre tédio e uma sede inconsequente de rebeldia selvagem. Tal como no filme-charneira de Ko Nakahira, os locais privilegiados desta geração despreocupada são a praia e o mar (desde o plano que abre o genérico - uma bola de futebol estilhaça uma janela da escola - vemos impossibilitada qualquer integração educacional ou até mesmo social) e é através desses locais onde há menos roupa e os corpos ficam queimados pelo sol e marcados pelo sal que, a pouco e pouco, percebemos o desprendimento moral dos três amigos e de uma rapariga que mesmo sendo violada parece admitir o seu destino pacificamente. De facto, a maneira como Fujita filma os "encontros sexuais" destes jovens é chocante - escuso dizer "violações" porque quase sempre aqui a recusa das mulheres se transforma em apatia e aceitação desconfortável. Talvez cheguem a parecer gratuitas e questionáveis certas cenas onde não se retiram quaisquer consequências para os agressores e a permissividade das relações sexuais chega a ser irrisória e até mesmo misógina, porém, não podemos questionar a violência quase irreal destas situações que sublinham a componente febril e fervilhante de uma geração unicamente capaz de exercer a violência para comunicar e se entender. Se não fosse pela cena final da viagem de veleiro (outro ponto de contacto primordial com Crazy Fruit que acabava tragicamente com o barco a motor ziguezagueando pelo mar fora) Wet Sand in August seria só um filme de verões chocantes e grosseiros. Mas, por duas razões esse final é digno de elogios. Primeiro, porque nele temos a primeira descoberta da consciência por parte dos dois rapazes irresponsáveis. Segundo, porque Fujita não precisa efectivar nenhum assassinato (apenas evoca-o naqueles fortíssimos contracampos da rapariga apontando a espingarda para os violadores) para encher de inquietação as mentes antes vazias destas existências. E à medida que a câmara ironicamente se distancia do veleiro com o interior pintado de vermelho (cor ritualística do sangue e da virgindade perdida) apenas ouvimos em off a plácida canção pop: "Sem deixar memórias, o meu Verão continuará amanhã".



Zatoichi: The Rainbow Journey (1979) de Hiroshi Teshigahara: ***
Zatoichi: The Dream Journey (1979) de Hiroshi Teshigahara: *****
Vou outra vez transgredir as regras editoriais deste blogue e escrever sobre uma série de televisão. Peço imensa desculpa mais vai ter de ser. Pior, vou limitar-me aos dois episódios finais da quarta (e última) série televisiva do massagista cego mais famoso da sétima arte. A culpa não é inteiramente minha já que urge falar sobre este fechamento complexo, decididamente o mais insólito que Zatoichi teve e teria alguma vez em toda a sua história. Como é sabido, o vigésimo quinto filme da saga, Zatoichi's Conspiracy em 1973 marcou o final das aventuras do carismático personagem no grande ecrã (só voltaria pela mão do próprio Shintaro Katsu em 1989). Em 1974, um ano após Conspiracy, Kazuo Mori (um dos vários realizadores da extinta Daiei) rodava o primeiro episódio da série televisiva de Ichi, o espadachim misterioso e sempre sorridente. Shintaro Katsu continuou a preservar o mítico personagem ao longo de quatro séries, contando todas exactamente 100 episódios - estes The Rainbow Journey e The Dream Journey são respectivamente o nonagésimo nono e o centésimo episódios. A televisão introduzia várias limitações técnicas (sentimos saudades daqueles travelings temíveis e mesmo do formato cinemascope) mas representava a única maneira de os realizadores especialistas no chambara continuarem a trabalhar no que gostavam, já que esse género era cada vez menos amado nas salas de cinema. Talvez por isso seja difícil perceber a escolha de um nome tão pouco habituado às gramáticas deste género para rodar os dois últimos episódios da saga. Hiroshi Teshigahara não é nenhum Kenji Misumi nem um Hideo Gosha (este último morreu desiludido por nunca ter filmado Zatoichi) e a sua afinidade com as linguagens mais alegóricas e experimentais parecia chocar directamente com a lineriedade (sobretudo narrativa) de toda a saga, incluindo esta adaptação televisiva estilisticamente mais contida do que as versões cinematográficas (basta lembrar a ostentação cénica das películas de Kazuo Ikehiro para percebermos essa diferença crassa). Pois bem, Teshigahara trilhou, em primeiro lugar, o caminho suzukiano, isto é, optou pela desmontagem total do herói, um pouco como tinha feito o próprio Katsu no subvalorizado Zatoichi in Desperation, o mais pessimista de todos os 26 filmes originais. Em The Rainbow Journey, fica inclusive a dúvida se o massagista realmente teve uma relação carnal com uma filha de um comerciante poderoso, ele que raramente - virtude também da sua ostracização - parece ter esse tipo de desejos. O seu ar é bastante carregado, obscuro, impenetrável e - tal como no já referenciado exercício pessimista de Katsu - sentimos o peso da existência deste anjo da morte que semeia a destruição inevitavelmente por onde passa. A sua solidão chega a ser assustadora: o Sol parece ser o seu único companheiro (e que poderosas imagens solares!) porque quando há homens, há sangue, há holocausto. Estavam assim lançados os dados para o rebentamento final presente em The Dream Journey. Não acreditariam se vos dissesse que o último episódio (o que fecharia os 25 filmes e as 4 séries) é uma violenta descida aos infernos do subconsciente de Ichi numa espécie de mise en abyme surrealista, reveladora de todos os seus traumas possíveis e de todos os seus desejos reprimidos, incluindo o de subitamente poder voltar a ver. Teshigahara abre sem pudor o inconsciente e supera os limites da representação televisiva, mostrando-nos imagens terrivelmente complexas como, por exemplo, quando mistura cores e silhuetas para nos dar a ver o ponto-de-vista subjectivo do cego. Os pesadelos de Ichi, longe de serem apenas exercícios vazios de estilo, alargam o seu âmbito como personagem. Mais uma vez a sua solidão extrema assalta-nos e sempre foram os Zatoichi contos de um homem solitário, incapaz de pertencer ao mundo dos homens. Mas aqui essa solidão interior, esses demónios transpostos no real (e que antes apenas podíamos antever ou projectar) dão-nos uma complexidade emocionante. Obrigado Teshigahara por teres existido!



Swimming With Tears (1991) de Hirotaka Tashiro: **
No seu primeiro filme, Hirotaka Tashiro aborda o delicado tema da imigração no Japão. Fey, uma jovem, filha de mãe filipina e pai japonês desconhecido, dirige-se para a cidade de Tóquio, fugindo de Yokoyama, o seu marido residente numa zona rural japonesa que tem a tradição de arranjar casamentos por encomenda para popular a área com falta de mulheres. Na grande cidade, ela consegue arranjar emprego numa zona típica de turistas e imigrantes, conhece Asami e Kokubu, dois japoneses misteriosos mas amistosos e tenta encontrar o pai que nunca conheceu antes de voar de volta para as Filipinas. Perpassa uma melancolia própria; ao longo de toda a película só conhecemos as tristezas das minorias, sejam elas raciais, como no caso de Fey, negada pelos japoneses que considera "demasiadamente egoístas", ou as que são excluídas em termos sociais, isto é, Asami e Kokubu. Tashiro confia (em demasia nalguns casos) nos longos planos-sequência, e a distância da sua câmara é evidente assim como o uso substancial do plano fixo, demarcando, dessa maneira, a lentidão e a tristeza da vida marginal. Há aqui interpretações sentidas mas, por vezes, ficamos com a sensação que se acumulam vários e diferentes pequenos contos em torno de Fey e algumas cenas mais relevantes e determinantes ficam por explicar. O final inexplicável e preguiçosamente misterioso, por exemplo, retira o poder cirúrgico e atmosférico desta câmara sonâmbula e outros desvios narrativos tem exactamente o mesmo efeito nocivo.



Ferum (1994) de Kanji Nakajima: **
The Box (2003) de Kanji Nakajima: **
No mundo futurístico de Kanji Nakajima é importante saber o paradeiro das coisas orgânicas. Estas duas primeiras médias-metragens fazem um díptico e nelas (re)encontramos o mesmo núcleo imagético, as mesmas preocupações, mas sobretudo a convicção de que a ficção científica é ainda um género metafísico (e não somente alegórico), um género capaz de idilicamente reorganizar, através de imagens e intuições, o caos de visões apocalípticas. Tanto em Ferum como em The Box as crianças travam conhecimento com um velho ancião que aguarda pacatamente qualquer coisa. Em Ferum, esse ancião é um pintor que espera o momento perfeito para pintar, em The Box um inventor que usa pedras para construir máquinas. A estes dois gémeos velhos, cai-lhes o mesmo destino misterioso: colapsam silenciosamente no meio de um cenário devastado, maquinal e árido mas simultaneamente preenchido por naturezas esquisitas, as que resistem à hecatombe circundante. Se em Ferum, podemos acreditar que foram as fábricas que causaram essa situação de caos morno, lento, em The Box os tons monocromáticos e os cenários campestres reforçam a ideia de que se sobrevive há mais tempo nesse deserto terrestre. Nakajima não tende a explicar nada. O seu método é o da construção de imagens místicas, herméticas e que se relacionam de alguma maneira, pois escondem ou sugerem pelo menos obsessões partilhadas. Talvez a comunicação entre as gerações seja o início da salvação humana ou talvez o destaque para as coisas orgânicas (a água, os peixes, as flores, as árvores, até mesmo o cubo animado que parece representar o milagre da Natureza) ecoe aquele espinosismo do Deus sive Natura. Quem sabe? Por agora, ficam-nos as (ficamo-nos pelas) imagens.



Looking for Cherry Blossoms (2009) de Joe Odagiri: 0
Será que existem filmes totalmente inaptos? Não quero entrar na discussão da "utilidade" do cinema (problemática que levanta mais questões do que responde) mas quem passa por esta primeira e maldita incursão atrás das câmaras do famoso actor Joe Odagiri percebe rapidamente o desmazelamento artístico em causa e a forma como isso abana e violenta até a mente mais pacata e pacífica. Com efeito, Looking for Cherry Blossoms - filme de hora e pouco passado quase todo dentro de um táxi - não tem ponta por onde se lhe pegue. Podíamos tentar descrever a razão da viagem, as peripécias deslocadas e sem sentido, os efeitos especiais ofensivos de tão rudimentares, o humor estranho e ressequido mas é fútil. Podíamos tentar relacionar-nos com os três personagens, mas estes demonstram comportamentos demasiadamente irracionais, idiotas e aleatórios para ser possível qualquer coisa semelhante à identificação ou até mesmo compreensão. No final, é-nos perceptível apenas um mau conjunto de "gags" com uma realização igualmente reles: câmara a tremer, enquadramentos medíocres e uma montagem por vezes demasiado conturbada e absurda. Bem sabemos que a comédia é o género mais difícil de avaliar, mas há qualquer coisa de errado, connosco ou com o filme, quando as piadas não acertam nem uma vez. A bem da sanidade, diria (temerariamente?) que o problema é do filme.



Summer's End (2013) de Kazuyoshi Kumakiri: ***
É mesmo um dos seus melhores papeis. Hikari Mitsushima serve de catalisador para esta difícil e turbulenta descrição de afectos divididos. Veja-se como a câmara de Kumakiri persegue a actriz resiliente e prolonga a duração dos planos (e como já dizia Béla Tarr, os actores nem ninguém pode escapar ao tempo do plano) para justamente criar uma intimidade que nos concede acesso às fragilidades - se quisermos, até aos podres - de uma mulher enamorada (ou necessitada?) de dois homens diferentes. Não menos duro é o modo como o sagaz Kumakiri também se presta a caracterizar as relações amorosas neste triângulo esquivo de amantes: no seu entender, só quando há rejeição (e eu não desejaria ao meu pior inimigo as rejeições de Mitsushima) é que o sentimento urgente pela totalidade do outro nos surge, é que estamos dispostos para amar. Na verdade, quase sempre estas relações estão sob o signo do egoísmo (mesmo a relação mais paternal e compreensiva com o velho escritor casado não escapa totalmente a isto) e é inevitável vislumbrarmos uma certa solidão devastadora e desesperante que é evitada a todo o custo pelos personagens e os faz, consequentemente, voltar para os braços uns dos outros. Em Hole in the Sky, o realizador estimulava a percepção do espectador em criar laços afectivos onde eles realmente não existiam. Neste Summer's End, desde o princípio (isto é, desde que vemos o escritor "abandonar" a sua amante quando está doente) que o espectador sabe não haver grande esperança quanto a reuniões eternas. Nesgas de outros e réstias de sentimentos: é isto Summer's End, mais um filme céptico quanto ao amor (uma espontaneidade capaz de arrasar vidas) e o hábito (provavelmente, a mais segura das relações até chegar o dia da sua subversão).



The Devil's Path (2013) de Kazuya Shiraishi: **
Conto sobre expiação, vingança e justiça, The Devil's Path alia temporariamente um assassino no corredor da morte e um jornalista na procura pelo parceiro desconhecido dos crimes pelos quais está indiciado e pelos quais será severamente punido. Um longo flashback serve de ponte aos dois terços preenchidos pela investigação jornalística e nela conseguimos sentir o peso dos crimes praticados. Kazuya Shiraishi nunca arreda pé de um naturalismo pouco escorreito, às vezes tosco, e facilmente a brutalidade e o desprendimento dos actos praticados causa repúdio a quem os vê. Esta câmara neutra, que não se priva de filmar os crimes nem tão pouco sente a necessidade das elipses deixa, muitas vezes, de criar tensão dramática para cansativamente mostrar comportamentos maldosos e sádicos, talvez para sublinhar a raiva visceral que o jornalista sente por todas as situações e que o espectador deveria (?) também ter. Ora, o ódio do jornalista parece ser o único traço que o caracteriza enquanto personagem e a complexidade da sua pesquisa carece de mais motivações sem ser o desejo intransigente de levar os criminosos à pena capital. Infelizmente para Shiraishi, a maior parte dos personagens sofrem de uma unidimensionalidade nada favorável ao tema em questão.