26/09/15

Fragmentos de 2015/09/26



Marriage (1947) de Keisuke Kinoshita: **
De maneira a traçar um retrato mais autêntico da espuma dos seus dias, - e ao contrário do que o título deixa antever - Marriage não fala sobre as benesses da união entre dois amantes, mas sobre as dificuldades sociais do pós-guerra, como se pode logo perceber pela circunstância do casamento aqui se resumir a um projecto adiado ad eternum porque se aguardam melhores tempos e melhores conjunturas argentárias. Presente também está a temática do esvaziamento moral do pater familias que atrasa a independência da filha por causa do desemprego, habitual naquela era de convulsões e mudanças (relembre-se a greve que surge do fundo, enquanto os nossos amantes andam pelas ruas). Na verdade, a sétima longa-metragem de Keisuke Kinoshita tem alguma coisa de lúgubre, sobretudo quando filma o clima doméstico (não me lembro de um filme do realizador tão especado) e  é por isso que raramente vemos a câmara mover-se, o que sublinha, por assim dizer, a tensão familiar existente e a própria austeridade técnica por que o cinema do pós-guerra passava então. Mais curiosas, porém, são as cenas que correspondem à segunda parte, quando observamos os dois amantes mergulhar na noite, na dança e no álcool para preparar a sua despedida. Aí a câmara assume-se como companheira noturna, amiga boémia, um pouco ao jeito de Ikiru (menos a crítica nele presente). Em termos de tom, talvez fosse mais eficaz se Kinoshita tivesse optado pela separação efectiva do casal, a despeito da correspondência, mas parece haver aqui uma alavanca optimista - como muitas vezes sucede no seu cinema - que encontra necessidade de reconciliar tudo e todos: amantes, pai e filha, os projectos individuais nas obrigações do colectivo.



Apart from Life (1970) de Kei Kumai: ****
Desde o princípio, a câmara de Kei Kumai mergulha nas trevas. Um mar cinza, minas, máquinas, uma confissão de gravidez  não planeada desencadeia a possibilidade de um aborto. De seguida, o plano mais chocante: uma quantidade de ratazanas enjauladas atacam violentamente uma galinha. Elas saltam à procura de espaço e oxigénio mas correm, febris, endiabradas, para satisfazer uma vontade profunda de revolta e libertação, se é que os animais entendem o significado de tal urgência. Quererá Kumai colocar os humanos no terreiro das bestas ou redireccionar as bestas para o plano humano? A solução a esta pergunta pode servir-nos de pista para decifrarmos o que vem a seguir: um complexo rol de personagens que tem, pelo menos, uma característica em comum: são as reais e pesadas réstias da moderníssima sociedade japonesa. São, se quisermos, as ratazanas que vagueiam nos espaços escondidos, nos guetos ou que são ocultados dos olhos sensíveis do público: vítimas da bomba atómica e da radiação, burakumin, coreanos, etc. Kumai vai ao encontro deles com tanta honestidade que em momento algum os vitimiza por princípio. Será, pelo contrário, o primeiro a descrever a trajetória letal de existências confinadas ao abandono e desprezo social e cujo sofrimento permanente faz da violência e da aberração comportamental um hábito. Ainda sem qualquer concessão (não fosse esta a oitava produção da Art Theatre Guild), Apart From Life é bastante duro em relação às práticas tribais das diferentes comunidades ostracizadas, como fica provado no momento de extremada oposição em que hibakusha (pessoas afectadas pela bomba) e burakumin disputam, entre eles, quem merece ser mais repudiado pelos japoneses, entidade abstracta e ausente que se torna presença fantasmagórica nos últimos planos nos quais um tanque de criança torna-se num símbolo de conquista e os sorrisos singelos de donas de casa a fazer tricot num jardim de casas padronizadas se metamorfoseiam em sinais macabros de indiferença burguesa. A solução para este bestiário humano é tanto simbólica quanto fáctica: engolidas pelas chamas do ódio e da neutralidade, as almas perdidas vão fatalmente perdendo a vida. E a Kumai só lhe interessa este processo de consumo.



Gambling Den Heist (1975) de Kinji Fukasaku: ****
A anarquia segundo Kinji Fukasaku não significa apenas uma ausência de regras, mas antes uma exacerbação do indivíduo (ou se quisermos, do espírito individual), como se ele precisasse de se libertar de uma pesada herança, não só histórica mas também cinematográfica, que o aprisionava em falsos moralismos e num altruísmo não menos cínico e enganador. Os anti-heróis de Fukasaku são, pois, os heróis da desconfiança e do egoísmo, um profundo egoísmo colectivo que transfigura todos os intervenientes em constantes empecilhos uns em relação aos outros. É este jogo de interesses radical que faz mover os planos de Takeshi em Gambling Den Heist, um ex-recluso que pretende assaltar o patrão responsável pelo seu aprisionamento, enquanto este aposta quantias avultadas de dinheiro com outras famílias num espaço privado. O facto de um yakuza se rebelar contra o seu próprio "irmão" não é totalmente inédito, mas a falsidade e as sucessivas traições do protagonista, seus companheiros de crime e até inimigos provam que o conceito mais distante das relações entre gangsters é a honra. Substitui-se a honra pela ganância desenfreada e o resultado acaba por ser uma dança de egos em busca do golpe perfeito. Gambling Den Heist juntamente com outra fita injustamente ignorada filmada no ano seguinte, Violent Panic: The Big Crash!, formam um díptico onde a execução do plano infalível, sendo completamente reiterada pela realidade que não admite adequações exactas entre "o que era para ser" e "o que é", semeia o caos de forma a que todos os personagens fiquem expostos e todos eles tenham um papel neste grande banquete de violência e traição. Fora das "dinâmicas do poder" entre indivíduos ambiciosos por qualquer coisa, nada mais existe.



Keiko (1979) de Claude Gagnon: ****
Originalmente distribuído pela Art Theatre Guild (não me canso de relembrar o papel insubstituível desta produtora), o primeiro filme do canadiano Claude Gagnon granjeia da minha parte grande admiração. Só conheço dois casos de cineastas estrangeiros que conseguiram ultrapassar a sua condição de "observadores distantes" em virtude da redescoberta de uma sensibilidade profundamente japonesa: Gagnon e o nosso Paulo Rocha. O último compreendeu n'A Ilha dos Amores o poder poético e subversivo do artifício, da teatralidade que é parteira da sétima arte nipónica, já o primeiro através deste discreto retrato de uma jovem mulher, Keiko, que personifica em certo sentido todas as mulheres japonesas, conseguiu revelar os movimentos ocultos da vida como um rio calmo que esconde correntes fortíssimas no seu fundo. Todavia, se a sensibilidade é, como dissemos, digna de um cineasta nativo, o mais curioso será notar como uma certa resistência pictórica aos espaços japoneses surge nas opções de enquadramento. Gagnon filma cantos de bares, becos de ruas e restaurantes, personagens encostados (e incrustados) às paredes de casas minúsculas e sufocantes; filma conversas, beijos, corpos despojados no tatami com um distanciamento de quem não habita - e não se habituou ainda - às divisões que, por essa mesma razão, nos surgem quase na sua realidade mais crua e solitária. Mistura de forma genial intimidade e isolamento, mesmo a dois. É esta, aliás, a virtude do estrangeiro: poder viver com estranheza aquilo que é normal para o habitante comum e encontrar aí algo que lhe passa despercebido, mas que é ainda assim um traço fundamental da sua experiência cultural. Neste sentido, analisa-se também o dilema (muito japonês) entre a libertação afectiva e a ordem social, mas faz-se como se esse dilema não estivesse diagnosticado pelos próprios intervenientes e a sua resolução surgisse intempestivamente, quase como de um fado se tratasse. Não esperamos que Keiko abandone o romance com a sua colega de trabalho, mas o instinto japonês pela ordem e a submissão permanece, como também já tinha sido perceptível nesse rol de cenas silenciosas com o primeiro amante que a traumatizaria: vejam a finura das elipses que contêm os dias que Keiko espera reencontrá-lo no bar até ao dia da consumação do acto carnal. A desconfiança pelo mundo masculino, a descoberta da comunhão e compreensão do amor homoerótico e o encontro frio e estéril novamente com o Homem, cristalizado na contradição de movimento dos dois últimos planos (e que planos!) do filme, um lento distanciamento da amante só e, de seguida, uma aproximação maquiavélica dos noivos que desvenda o carácter postiço da cerimónia matrimonial, fazem deste Keiko um exercício complexo sobre a psique feminina. E se acharmos que há qualquer coisa de feminista no retrato (e só no retrato) do drama da mulher - como Chico Buarque cantava em Mulheres de Atenas três anos antes - então a Keiko valerá também esse epíteto que para muita gente serve de anátema.



Station (1981) de Yasuo Furuhata: ***
Já o disse muitas vezes: Yasuo Furuhata foi o cineasta mais determinante para a velhice do ícone Ken Takakura. Juntos criaram actualizações, mais ou menos conseguidas, da figura característica do estoico e inclusivamente o realizador ficou responsável pela derradeira obra do actor antes deste falecer em 2014, firmando uma parceria de quase 50 anos. Ao contrário de outros trabalhos menos inspirados na década de 90 e posteriores, Station poderá ser considerado, a par com Demon também realizado na anterior década, a melhor colaboração entre os dois homens. Talvez porque a fragilidade do impenetrável Takakura é aqui constantemente posta à prova e é evocada de maneira quase sádica. Nem vale a pena elencar pormenorizadamente todos os episódios da narrativa, mas trata-se de uma história teimosamente marcada pela tragédia: Takakura no auge do desassossego observa desde o princípio, em que se despede da mulher e filho numa estação (também no fim, sempre as estações...), a falência de qualquer estabilidade em diferentes alturas da sua vida. Continuadamente surge-nos a morte (a do seu chefe, a que ele inflige para se vingar), as despedidas e traições (a da mulher, a dos irmãos que separa), o insucesso na sua profissão (com dilemas morais que assaltam os seus pesadelos), enfim, um assustador destino que não o larga como um espectro maligno da máxima socrática: "uma vida sem exame não merece ser vivida". Os demónios de Takakura manifestam-se em todo o seu esplendor no último acto quando encontra finalmente consolo afectivo numa dona de bar viciada em enka interpretada pela extraordinária Chieko Baisho (os dois actores já se tinham encontrado um ano antes em A Distant Cry from Spring realizado por Yoji Yamada). As circunstâncias da sua união (e desunião) desmontam, de uma vez por todas, a ideia de que um homem moral pode descansar à beira do mundo. Cansado, mas em andamento (como os comboios omnipresentes captados pelas lentes do talentoso Daisaku Kimura), Ken Takakura não pode amar uma mulher sem amar antes a justiça. Resta-lhe, portanto, a viagem da solidão, a viagem da neve...



Break Out (1988) de Toru Murakawa: ***
Policial sem complexos e descarnado até ao tutano, Break Out do injustamente desconhecido Toru Murakawa prova, mais uma vez, a capacidade do cineasta intensificar a linguagem já muito trilhada do género ao ponto de a tornar quase incomportável. Um detective viciado em higiene oral, Kaji, investiga um caso de assassinato que o conduzirá a um escândalo sexual e político, metendo a máfia ao barulho. Nishimura, o arquétipo do polícia bom, não compreende os métodos do seu colega barbudo, com olhar simultaneamente inexpressivo e ameaçador como se fosse um equivalente japonês de Charles Bronson: Kaji espanca, persegue, vai ao fundo das questões e inclusive é capaz de matar. Contra tudo e todos, não parará enquanto a verdade não vier ao de cima. Quantas narrativas destas não foram carne para canhão do cinema de acção, principalmente nos anos 80 e 90? Polícia bom, polícia mau, um indivíduo à margem da lei para proteger teimosamente o seu próprio conceito de lei. Dirty Harry? Mais reconhecível do que isto não há, mas se observarmos como Toru Murakawa dá cor aos seus personagens e executa com qualidade uma narrativa tão frágil, podemos estar em condições de captar mais do que era esperado. A energia de Kaji, próxima da loucura ou da psicose, resulta bastante contagiante como se ele fosse o único personagem capaz de rebentar com as convenções que todos conhecemos. Um personagem com ânsias de extravasar o âmbito do seu próprio filme (talvez apenas satisfeito com a sua morte). Ele deixa até de ser polícia mau porque o contraste entre ele e o seu companheiro a dada altura desvanece, tal é a força do contágio. E, na verdade, Break Out com todas as suas fragilidades nada seria sem a interpretação selvagem e irascível do grande Tatsuya Fuji.



How Old is the River? (1994) de Shiori Kazama: ***
Shiori Kazama pertence à geração da quietude, estando o seu cinema desde as primeira produções em 16mm até ao mais recente World's End/Girl Friend intimamente ligado à estética que nasce dos silêncios, que brota da indução em vez da dedução lógica. How Old is the River? esgota por completo os grandes gestos, pois todo o filme é composto por entidades sombrias, discretas intenções, calada rigidez que faz confluir os destinos de três irmãos (dois de sangue, outro por obrigação de outras uniões) e uma prima numa casa de Verão do pai que nunca aparece. Esta ausência declarada da figura paterna remete-nos para um tempo onde, deixadas à sua sorte, as crianças revelam-se incapazes de evitar o desastre e até uma certa traquinice (daqui advêm confissões de amor e todo o tipo de coisas que os miúdos fazem quando os pais não estão a ver). Portanto, não será estranho notar uma certa tensão incestuosa nesta película onde os adultos voltam a ser confrontados com a sua infância numa terra de ninguém abstracta (a terra das memórias) onde é possível voltar a replicar o processo de crescimento. Talvez o plano mais marcante seja aquele em que Sakeko, a prima cobiçada que rememora o tempo mágico e leve das brincadeiras, diz a umas crianças (as impressões vagas de si própria enquanto menina) que já não pode brincar mais com elas.



Rock'n'Roll Mishin (2002) de Isao Yukisada: ***
Sexta longa-metragem de Isao Yukisada, Rock'n'Roll Mishin foi durante muito tempo o filme indisponível que mais ansiava ver do realizador de Go. A história de um salaryman desencantado (Ryo Kase num dos seus primeiros papeis principais) que volta a encontrar um amigo de infância que leva uma vida nas margens, completamente alternativa da sua, soava àquele tipo de desconstruções inteligentes da vida padronizada japonesa que têm eco até no cinema extremo de um Shinya Tsukamoto. Com efeito, Yukisada retrata este estilo de viver vadio com um fascínio que acaba por minar a organização aborrecida de um trabalhador de escritório, Kenji, que descobrirá por sua vez a falência do seu mundo e a descoberta de um novo, aliciante. Especial atenção para o tratamento da cor, para a atmosfera dormente que prevalece quando os horários deixam de existir e, finalmente, para a maneira algo humorística destes personagens se relacionarem. Com isto não quero dizer que Rock'n'Roll Mishin carece de tensão dramática. Ela existe, sobretudo na segunda metade, quando observamos esta utopia discreta de jovens descomprometidos e diletantes afundar-se por causa, claro está, dos afectos. Portanto, a dimensão mais curiosa deste filme circular, porque à primeira vista termina onde começa, é a que atribui à experiência de corte um carácter efémero que pode alterar o modo como vemos o nosso lugar no mundo, mas não a vivência radical. Sendo honesto consigo mesmo e com os seus personagens, Yukisada não esquece que o sítio de onde viemos pode acabar por ser o sítio para onde vamos. E o resto, aquilo que é possível, pertence à "desangulação" da perspectiva.



Osaka Hamlet (2008) de Fujiro Mitsuishi: **
De maneira leve e despretensiosa, Osaka Hamlet fala-nos sobre aceitação de uma maneira bem mais sentimental (por vezes até sentimentaloide) do que a que encontramos na tradição ozuniana. O realizador "mais japonês de todos os japoneses" mostrava-nos a profundidade da abnegação e da positividade da desistência, criando uma maneira poética de nos sintonizarmos com os contrastes e até mesmo com a tristeza e imperfeição do mundo. Fujiro Mitsuishi, mais contemporâneo não apenas no tempo mas sobretudo na atitude, compreende esse fenómeno como aceitação da diferença. Baseado num manga de Hiromi Morishita, o filme compreende três pequenas narrativas que têm uma relação com os três irmãos que assistem logo no início ao falecimento do pai que acontece curiosamente fora de campo, como se fosse um prolongamento de uma ausência já existente. Yukio, o irmão mais rufia, tem de aguentar a vergonha de ser chamado Hamlet pelos seus colegas (a sua mãe, tal como Gertrude na tragédia shakespeareana, volta a casar com o irmão do falecido marido), Masashi mente acerca da sua idade para poder amar uma mulher mais velha do que ele e que virá a ser sua professora e, finalmente, o pequeno Hiroki identifica-se mais com o outro sexo do que o seu e pretende interpretar a Cinderella no teatro da escola. Estes episódios desenvolvem-se em simultâneo e fornecem um tema comum. Os três irmãos lutam contra o preconceito de modo a salvar a sua "honra", não forçando-a (como aliás, Hamlet faria, destruindo-se a si mesmo no processo), mas abrindo as consciências dos outros. Vale a pena conferir a prestação de "Gertrude" e "Claudius" aqui. Keiko Matsuzaka e Ittoku Kishibe, mais inspirados e sabedores do que o elenco mais jovem, são um prazer de ver e conseguem equilibrar os momentos mais defeituosos onde o sentimentalismo irrompe, algo irritantemente.  



Riding the Breeze (2014) de Koji Hagiuda: *
Como alguém disse certa vez, os road-movie tradicionalmente colocam um desafio a todos os realizadores: sem estúdios e locais fechados para aparar os golpes de planificação e produção, todo o filme que se situa no exterior dele mesmo necessita do acidente para aproveitar a beleza daquilo que não se espera. Neste sentido, quando se encena uma viagem na sétima arte, os resultados finais dependem muito das paisagens encontradas e transformadas pela câmara, mas mais decisivamente pela maneira como personagem e meio interagem. O novo filme de Koji Hagiuda, que quebra um silêncio criativo de seis anos talvez por dificuldades de financiamento, escolheu Taiwan como local de errância, chamando para a viagem de bicicleta uma japonesa em férias e uma teenager nativa que mente acerca da sua idade afim de fugir de casa. Riding the Breeze é, pois, um filme feito por um estrangeiro numa terra algumas vezes distinguida pelo seu exotismo (basta lembrar o esplêndido Stray Dog: Kerberos Panzer Cops, filmado por outro japonês, Mamoru Oshii, que documentava a estranheza dos cenários e as tradições de Taiwan, deixando o "plot" completamente para segundo plano). Infelizmente, tirando um ou outro momento, a maior parte do que nos é dado a ver incide numa espécie de atitude turística que nunca nos deixa verdadeiramente respirar os ares da viagem. No departamento narrativo, encena-se um triângulo (quadrado?) amoroso pouco perspicaz que carece desenvolvimento e mesma a relação complicada entre as duas protagonistas é tão fina e simples como tudo o resto. 

14/09/15

Fragmentos de 2015/09/14



Our Wedding (1983) de Kichitaro Negishi: ***
A capacidade de Kichitaro Negishi tornar o mistério numa aventura absurda e inclassificável tem de ser elogiada. Our Wedding, filme policial virado completamente do avesso, gira em torno dos azares de Tsutomu, um jovem traquinas que no dia do seu casamento (no qual chega atrasado) vê a sua futura esposa, Makiko, ser esfaqueada por uma outra mulher vestida de noiva que, logo a seguir, se suicida, explodindo, para não ser reconhecida pelas autoridades. E que abertura poderosa, essa, onde a comédia e a violência se unem numa espiral estonteante! O casamento fica adiado e Tsutomu, no meio de um caos mediático e do acompanhamento constante de dois detectives, tem de vasculhar no seu passado oculto de namoros para identificar as razões de tal atentado e salvar o seu futuro. O tom do filme poderia estar completamente dependente da revelação que colocaria tudo nos eixos, mas Negishi aos poucos, entrega-se ao absurdo, parodiando até o próprio conceito de casamento, verdade e nunca cedendo às regras sisudas do género policial. A juventude impreparada prestes a tomar decisões irrevogáveis é também aqui descrita de forma irónica mas sempre complacente, como se os personagens só fossem capazes de ceder ao matrimónio e à monogamia quando todas as regras ficassem subvertidas, quando o casal se entendesse na loucura. Our Wedding pertence a um conjunto de obras "reformistas" que resgatavam conceitos tradicionais (outro título de destaque: Crazy Family de Sogo Ishii) através de uma abertura para a extroversão total e para a insanidade. Eram os doidos anos 80...



Balloon Club, Afterwards (2006) de Sion Sono: **
Versão sion sonoesca de The Big Chill (mais conhecido no nosso país por Os Amigos de Alex), Balloon Club, Afterwards partilha também a temática nostálgica da juventude perdida com outro filme pouco conhecido de Isao Yukisada, e por nós visto recentemente, Sunflower. As três produções iniciam-se com a notícia do falecimento de um colega, sendo que a passagem da informação pelo grupo fá-lo lembrar do tempo livre despendido em conversas, bebidas, namoros... Um tempo certamente difícil de recuperar mas que ainda assim se permeia a tentativas de reencontro, mesmo quando tudo em redor parece ter mudado ou perdido a chama. No caso do filme de Sono, a existência de um clube de balões guarda também a imagem singela de uma idade onde voar não significava só uma metáfora, mas era também uma aspiração ética, um elogio pueril aos sonhos de noites de Verão, aos projectos de vida que se calhar nunca vão ser cumpridos (e, não querendo sobrelotar o texto de referências, é exactamente esta a dimensão que os balões de ar quente também têm em Morning Schedule de Susumu Hani). Apesar de fazer parte das obras gentis do realizador, Balloon Club, Afterwards desenvolve não só o editing rápido e entrecortado como a inclusão de auxiliadores gráficos, ou seja, palavras escritas e narradas que se tornariam imagens de marca a partir de Love Exposure. Não deixa também de transmitir a sua visão agri-doce dos relacionamentos, contrariando a ideia saudosista de que nem mesmo o passado tem falhas, e confinar espaço para momentos catárticos de lirismo, porque para Sono sempre lhe interessaram as capacidades de expressão radicais e não conformistas da juventude.



The Extreme Sukiyaki (2013) de Shiro Maeda: **
O argumentista do excelente A Story of Yonosuke decidiu pegar na câmara para rodar a sua primeira película com a dupla de actores nossa conhecida de filmes como Ping Pong: são eles Arata e o extraordinário Yosuke Kubozuka que interpretam aqui velhos amigos desavindos que embarcam numa viagem curta com os seus interesses amorosos. O resultado final é desequilibrado, mas contêm elementos de destaque. Em primeiro lugar, assinalamos a química entre os actores que são auxiliados por um argumento que, a despeito de não ir a lado nenhum, consegue transmitir momentos de magia deadpan onde conversas insólitas casam com a gentileza inofensiva de um road-movie sem destino e ao ar livre. Situações como a conversa à volta dos hábitos alimentares de Buda (que obviamente comia caril como todos os indianos), um boomerang do contra que é como a vida (pois engana sempre que pretendemos fixar o seu movimento), ou ainda a discussão de quais as regras para comer um sukiyaki genuíno (sem porco e sem molho) vão variando o tom, desde a palhaçada até aos momentos de epifania divertida que por vezes sucedem quando se discorre, entre amigos, sobre tudo e nada. Os quatro protagonistas, nesse êxodo transitório tão característico do cinema japonês contemporâneo, vão descobrindo, entre disparate e convívio num sossego que não se suspeita, sentimentos tão profundos como o amor e o companheirismo de que se recorda com saudade nos tempos realmente difíceis. Uma última menção para a banda-sonora: não sendo imposta de fora, mas fazendo parte das viagens de carro do quarteto, relembra o vício de nos perdermos a espreitar pela janela de um veículo em movimento enquanto os sons acompanham as divagações da mente.



Misono Universe (2015) de Nobuhiro Yamashita: ***
Depois de sair da prisão, Shigeo é violentamente espancado por delinquentes encapuzados. Horas mais tarde, acorda ainda vivo mas sem qualquer memória de quem é, vagueando com a cara cheia de sangue até dar de caras com uma banda num jardim. Uma música surge-lhe subitamente e como que impelido por um instinto oculto canta a plenos pulmões para uma plateia incrédula, parado apenas por um desmaio. Kasumi, a jovem manager da banda, acode o misterioso cantor amnésico e acolhe-o na sua casa com a única contrapartida de este a ajudar no estúdio de música que o pai lhe deixara. Esta amizade improvável só poderia funcionar se houvesse especial atenção aos personagens e, como devemos saber por esta altura, Nobuhiro Yamashita era o realizador indicado para levar tudo a bom porto. O realizador de Osaka, de facto, têm uma apetência inegável para filmar existências que têm imenso interesse mesmo quando a narrativa soa a desastre ou não parece ter nada para oferecer. Kasumi, por exemplo, sendo a típica personagem yamashitana, (rabugenta e masculina) quebra o molde e interage com o sonolento Shigeo de forma completamente credível e cativante, desenvolvendo sentimentos nada duvidosos por ele. Mesmo a banda, que tem uma interpretação secundária, age de maneira a que a sua presença seja agradável e até cómica.  Misono Universe pode ser visto igualmente como o regresso de Yamashita às origens musicais de Linda Linda Linda, filme marcante que também vivia dos seus personagens, a saber, um grupo de colegiais que formava uma banda para tocar no festa da sua graduação.



Assassination Classroom (2015) de Eiichiro Hasumi: 0
Não pode haver grandes floreados para Assassination Classroom: para quem não tem relação qualquer com o manga original, resume-se a uma estopada infantil que chega a embaraçar pela artificialidade das prestações, pela inconsequência do argumento e por uma sensação de filme de domingo à tarde com um premissa estranha. É expectável que os admiradores da obra adaptada sintam, como aliás também é costume, uma certa injustiça perante a simplificação psicológica que um filme destes, destinado a um público ou muito jovem ou muito pouco exigente, acarreta. Que fique provado com o professor alienígena fabricado a partir de um CGI fraquinho que ocupa irritantemente quase todos os segundos de película, fazendo troça não só dos alunos que o querem assassinar para salvar o mundo, mas igualmente de nós, espectadores. Se, no entanto, nos virarmos para qualquer outro personagem (desde o insosso protagonista, passando por um menino arrogante que tem tentáculos no cabelo ou ainda uma professora de inglês tão pouco ocidental e tão pouco japonesa) ficaremos com o mesmo amargo de boca e com a mesma sensação de insuficiência e incongruência. A isto junte-se um vilão humano exagerado, sem qualquer credibilidade e uma sucessão de cenas parvinhas (uma delas pretende ser um discurso educativo sobre a importância de se estudar, quando o foco é o assassinato do professor) e têm-se a ideia do quão penoso é Assassination Classroom, uma parada de cosplay entediante.



Tag (2015) de Sion Sono: *
Entre colegiais decepadas em dois, constrições do espaço-tempo, alvejamentos em massa e outras tantas práticas de violência desrealizada (à la jogo de vídeo, como até acaba por ser confirmado mais tarde), Sion Sono prossegue com o seu cinema de personalidade limítrofe, desta feita encenando uma fantasia feminista demasiado histérica, confusa e fragmentada para poder ser levada a sério mesmo no plano meramente das ideias. Se excluirmos a série de televisão Minna! Esper Dayo!, que terá este ano direito a dois filmes, um no pequeno e outro no grande ecrã, nunca Sono tinha sido tão deliberadamente juvenil e tão questionável do bom gosto, quer na forma narrativa excessivamente obscura, quer no conteúdo que nunca prescinde de uma petição lógica (frustrada) dentro da aparente aleatoriedade. E mesmo sabendo nós que todo o seu cinema tende a reformular não só o "bom senso", como qualquer conceito de tonalidade dramática (daí a comparação óbvia entre a vida ser essencialmente surreal e tudo ser visto com os óculos colectivos de um distúrbio mental), Tag não consegue mostrar mais do que um realizador em piloto automático que aproveita a ausência absoluta de verossimilhança para despachar, uma a uma, as suas obsessões e imagens de marca com uma falta de coerência na postura que também é, de algum modo, autoral. Apesar de tudo e de forma indiscriminada, destaco alguns pontos altos: a puerilidade perversa (quase homoerótica) como a juventude é representada, a menstruação simbólica das penas e o casamento zoófilo com um porco que parece simbolizar toda a humanidade que nasceu com um pénis. Resta-nos, para além disto, ou seja, para além de carnificina sumárias e do gore enferrujado por um CGI deplorável, uma imagem do feminino tão ambígua quanto discutível. Num mundo apenas povoado por mulheres, Sono mistura ou confunde inclinações feministas questionáveis (pode assumir-se essa posição filmando tantas cuecas de esgueira?) com uma androfobia, rara para um cineasta masculino e tão sexual.



Yakuza Apocalypse (2015) de Takashi Miike: *
Yakuza Apocalypse foi considerado por muitos um regresso às origens de um realizador que desmontou, várias e várias vezes, o mito do yakuza: nas mãos de Takashi Miike a estoica máfia japonesa já tinha sido robotizada (Full Metal Yakuza), metalizada (Deadly Outlaw Rekka), esventrada (Fudoh, Ichi the Killer), surrealizada (Gozu) que só ficava mesmo a faltar ser vampirizada. O verbo vampirizar, no entanto, assume duas dimensões: a primeira diz respeito à óbvia comparação entre yakuzas e vampiros, pois ambas as figuras vivem às custas (do sangue e do dinheiro) dos inocentes que caem na sua esparrela. A segunda dimensão, mais profunda, podia ser aplicada ao próprio Miike. Aqui ele vai sugar o sangue da sua velha estética "what the f***?", com o seu apogeu na trilogia Dead or Alive e Gozu, mas só consegue replicar uma pálida imagem (um chupão tímido, se quisermos) das capacidades anárquicas de suspensão de juízo do seu cinema passado. À medida que somos conduzidos por este filme sem travões, somos capazes de rir pelo vilão mais poderoso que vem vestido de sapo e logo a seguir desesperar por outra espécie de cena ou personagem que simplesmente está a mais. Claro que para quem conhece a cultura do submundo japonês (muito dela vem, justamente, da sétima arte), Yakuza Apocalypse pode tocar numa ou noutra referência que, parodiada, desperta alguma jocosidade: vejam-se as poses, as atitudes extremas de intimidação, até aquele plano da caminhada de vampiros-rufias retirado directamente de Ichi the Killer. Se Miike conhece a fundo os lugares comuns do género ao ponto de os poder ridicularizar (e não esquecer que, ao longo da sua carreira, fez mais filmes sérios sobre mafiosos do que paródias ou atrocidades) rapidamente demonstra o calcanhar de Aquiles quando mistura com outras estéticas estrangeiras, por exemplo, o filme de artes marciais ou até mesmo o kaiju. As cenas de acção, das quais o filme começa a viver destemperadamente a partir da segunda metade, são desinspiradas para dizer no mínimo. Alinham naquela forma de montagem tosca que dá primazia à velocidade (sonora, visual) e não ao impacto. Quantas cenas de pancadaria deste Yakuza Apocalypse podiam ter aproveitado o potencial cómico se tivessem sido filmadas num plano apenas e tivessem mais noções de slapstick? Na cena final onde vemos Hayato Ichihahra e Yayan Ruhian esmurrarem-se entediadamente é visível no fundo de um velho cinema um cartaz de Fighting Elegy de Seijun Suzuki. Esse filme subvertia completamente a mentalidade imperialista do velho Japão exagerando na violência e belicidade dos comportamentos até à gargalhada. Yakuza Apocalypse, com o seu espírito infantil e demolidor, não consegue ser inteligente na paródia, nem tão pouco suscitar boas reacções ou comédia sem logo a seguir destroná-la com caprichos despropositados e uma aleatoriedade perdida de tão repetida. Um regresso à forma seguramente isto não é. 

03/09/15

Fragmentos de 2015/09/03



Policeman's Diary (1955) de Seiji Hisamatsu: **
Seiji Hisamatsu, que chegou a ver estreado um filme seu no Festival de Cannes em 1955, é hoje um cineasta completamente esquecido. Policeman's Diary, uma das suas películas mais famosas na altura, não alinhava no exotismo oriental que fazia furor na Europa, continente que se gabava de ter redescoberto o cinema do país do sol nascente, mas que ainda tardava em conhecer a vertente que falava dos problemas do dia-a-dia sem floreados, transcendentalismos ou pretensões artísticas. Na verdade como o título deixa antever, ao gendai-geki juntavam-se uns pinceladas neo-realistas que conferiam à obra de Hisamatsu contornos sociais e morais que muito faziam recordar as preocupações típicas de um cinema do pós-guerra que olhava de frente para as misérias humanas restantes de um período de reconstrução e pobreza. Esta dimensão faz-se notar, numa primeira leitura, através da ausência de um personagem principal. Se o título passasse para o plural ("Diários de Polícias") talvez fosse mais certeiro, pois, se há um agente que vai tomando a dianteira como pseudo-protagonista, o filme passa a maior do tempo filmando vários polícias (e casos de polícia) e o ambiente de azáfama de uma esquadra no campo. Múltiplos protagonistas, múltiplas tragédias: da prostituição ao abandono de crianças, passando sempre pela desintegração das famílias pelo vicio, crime ou depressão, Policeman's Diary retrata as dificuldades que parecem não estar presentes nas grandes narrativas e que quiçá ressoavam mais alto na memória e olhar dos japoneses de então. Se o filme, hoje, é um exercício bastante curioso mas datado, elogiamos a escolha lúcida de não optar pelo sensacionalismo de jornal de segunda. Típico também do cinema neo-realista é o germinar da esperança através da força humana que se levanta após cada agressão e despedida (e aqui há uma tocante cena de despedida). Casamentos, folhas vivas, sorrisos: basta estar atento para ver os símbolos da esperança que Hisamatsu nos deixou.



Advance Patrol (1957) de Kazuo Mori: ***
Será difícil imaginar quão diferente teria sido Advance Patrol nas mãos de Akira Kurosawa. O argumento original data de 1943 e por dificuldades várias tornou-se um projecto inviável para o realizador de Rashomon, sobretudo pelas conotações bélicas nele contido, já anacrónicas quando a sua carreira atingia a maturidade. Suspeitamos que se essa fita existisse seria francamente menos interessante do que esta adaptação tardia de Kazuo Mori que, apesar do "patriotismo" tosco e evitável das cenas finais, guarda uma distância considerável em relação ao tema e ao tom. Talvez a versão de 43 seria inflamada por ideais nacionalistas (estabelecendo um paralelo de quarenta anos entre a vitória japonesa frente aos russos com o confronto no Pacífico contra os americanos), numa altura em que era vital fortalecer o cansaço bélico que começava a tornar-se evidente aos poucos. Kazuo Mori, juntamente com Hideo Oguni, fizeram as mudanças essenciais e encararam o argumento original como um documento histórico não só sobre os últimos dias da guerra russo-japonesa, como da importância de poucos homens na decisão de um conflito entre nações. Seis soldados comandados por um capitão ficam encarregues de passar a fronteira russa e inteirarem-se sobre os planos e a composição do exército do adversário. Seis cavalos acompanham-nos no nevão, sendo que a missão só termina quando pelo menos um cavaleiro voltar com vida para contar o que viu aos superiores. Se esta narrativa de trespasses fronteiriços pode relembrar The Men Who Tread on the Tiger's Tail, a última película de Kurosawa durante a guerra e simultaneamente a primeira de uma nova era, o tom usado por Mori difere radicalmente. Se o filme de Kurosawa era ligeiro e animado por personagens, Advance Patrol refreia grandes identificações subjectivas e é tão inóspito como a belíssima e contrastada fotografia. Note-se o afastamento da câmara em relação aos personagens, o escondimento das suas faces, principalmente, a recusa de planos aproximados mesmo quando a narrativa exigia o contrário. Quase sempre em plano aberto, filmando a aridez das paisagens em terras-de-ninguém até surgir um russo ou chinês, Mori parece elogiar a abnegação individual, quebrando a individualidade dos seus personagens, o que, ao invés de escoar grandes lições patrióticas, reforça o carácter abstracto dos seus esforços e até da insegurança da sua missão. Se nos esquecermos do desfecho demasiado glorioso, Advance Patrol representa um interessante e discreto exercício atmosférico.



The Scarlet Camellia (1965) de Yoshitaro Nomura: ****
Este jidai-geki raro do criminologista Yoshitaro Nomura vai contra as definições mais simples do policial, género que de alguma forma se colou ao nome do cineasta da Shochiku. The Scarlet Camellia desenrola-se à volta das múltiplas vinganças de Shino, uma órfã com um passado demasiado negro para ser revelado de uma só vez (impossível não fazer referência à estrutura narrativa que elucida através dos flashbacks só depois de anunciar suficientemente o mistério). Primeiro passando por amante e depois revelando a real razão da sua presença, Shino castiga pelas suas próprias mãos os homens devassos que arruinaram a relação dos seus pais e, nesse sentido, o filme abre uma série de questões acerca da "justiça que não encontra leis neste mundo" e até do papel social dos homens e das mulheres na sociedade feudal e como facilmente a fragilidade das mulheres pode servir como arma num universo de objectificação. Se a protagonista pode ser encarada como um anjo exterminador, muito na tradição japonesa das vendettas femininas, a longa duração e a cinematografia aprumada permitem-nos aprofundar todo o rastilho destrutivo que uma mulher sem nada a perder deixa. Para além do contexto familiar difícil (e há aqui pano para mangas para análises psicanalistas), a mente alucinada de Shino pretende substituir a impotência e boa vontade do pai por um castigo divino que ele nunca precisou de procurar. Neste misto entre masculinidade desejada, cerebral, e feminilidade usada como veneno ou armadilha (talvez um eco terrível e desviante da mãe ninfomaníaca de Shino) é bem possível que encontremos a justificação para o magnetismo assustador e para a sensualidade assexuada da interpretação de Shima Iwashita. Muito mais do que uma película de enquêtes (nos primeiros minutos ceifa-se logo a primeira vítima), The Scarlet Camellia encontra na vingança devastadora (na vingança que neutraliza ou na que acorda a culpa pesada) o tema primordial de análise.



Thirst of Love (1966) de Jun'ya Sato: **
De milongas constantes e violinos melodramáticos é acompanhado este Thirst of Love (também traduzido por Love Lust ou ainda Grapes of Passion), um relato de um redemoinho passional que não assenta bem na imagem da carreira prematura de Jun'ya Sato na Toei, realizador bastante mais conhecido pelos seus épicos de acção com grandes orçamentos. Aqui há uma tensão dramática irrisória de tão expressiva e o melodramatismo chega mesmo a ser abstracto de tão exagerado. Ezaki, um conceituado publicitário, disputa a sua afectividade pela antiga companheira, Natsuko e por Yuki mas é com a segunda mulher, uma viúva negra, que mergulhará no amour fou quiçá sem retorno. Surpreendentemente, Sato alinha na concepção, partilhada pelos surrealistas, segundo a qual a verdadeira paixão é desestabilizadora e a própria instabilidade, que se procura, manifesta todo o poder sensual. Não podemos deixar de fazer referência à dicotomia presente entre, por um lado, as incumbências do trabalho (progressivamente negligenciadas) e, por outro, o mundo surdo da concupiscência onde nada resta a não ser a viagem febril dos sentidos. O último neutraliza as conquistas maquinais do primeiro, pois a adrenalina erótica quebra com a finalidade do trabalho e dá de volta a liberdade temerária, até infantil, que se perdeu algures na frieza de um escritório. Nesse confronto, descreve-se ainda o lado completamente obsessivo da sedução, como se se tratasse de um vício, mesmo doença, maior que o mundo e apenas satisfeito pela corrupção das almas e dos corpos, acordando de um sonho junto de um cemitério (décor que fecha o filme, não por acaso). Porque também é possível dar conta da complexidade por detrás dos mecanismos à flor da pele do melodrama, Thirst of Love, com a sua realidade de papel sempre pronta a ser soprada pelos ventos da paixão, prova que as aparências iludem.



Prison Boss (1968) de Yasuo Furuhata: **
Só há dois desfechos para os heróis dos ninkyo: ou morrem como mártires ou são presos após a carnificina dos vilões que sempre defrontam no clímax. A presença das autoridades, no entanto, da lei e das próprias prisões resta sempre ou quase sempre subentendida e mesmo os filmes que iniciam a narração com a libertação dos protagonistas apagam dos fotogramas, como se se tratasse de um recalcamento, os anos de pena que tiveram de passar. Prison Boss, na senda da popular saga Abashiri Prison também estrelada pelo ídolo Ken Takakura, contradiz esta mania de que as prisões são um tabu já que a usual fórmula dos ninkyo sofre aqui algumas alterações, especialmente porque a cena final ocorre a meio da acção e não temos maneira nenhuma de escapar ao ambiente e às relações prisionais que se estabelecem entre o protagonista e até outros líderes rivais que também cumprem castigo. Motivado pelo sentimentalismo que caracterizará toda a sua carreira futura, Yasuo Furuhata cria um herói mais frágil e mais humano que vingará não só o seu clã, mas mais decididamente a amizade antiga que redescobre enquanto recluso. Neste sentido, Prison Boss vai beber a Abashiri Prison o tema da grande amizade (quase homo-erótica: avessa a traições, zangas, reconciliações...) e se escolhe demonstrar a rotina de um prisioneiro é porque quer tornar o retrato mais credível e um pouco menos fleumático



The Wild Daisy (1981) de Shin'ichiro Sawai: *
Para os mais atentos, assim que a trama se desvendava diante dos nosso olhos não conseguíamos evitar um sentimento de déjà vu inquietante. Já tínhamos visto esta intriga anteriormente (dois primos, na flor da inocência desenvolvem sentimentos um pelo outro e rapidamente tornam-se o assunto da aldeia) só que as imagens por nós mastigadas e que faziam eco nesta tragédia de amor proibido eram, por comparação, bastante mais marcantes do que as que nos eram presenteadas agora. Keisuke Kinoshita, na verdade, já tinha rodado o mesmo conto de Sachio Ito com resultados bastante mais satisfatórios e com um lirismo nostálgico que encantava o mais céptico dos pedregulhos. Usando filtros na imagem captada pela câmara e enquadrando uma moldura (a moldura da memória) em cada plano rememorado, Kinoshita conseguia elevar a voz do amor impossível às nuvens, criando também uma espécie de alquimia plástica que apagava a noção de diacronia, já que quem contava a história era um verdadeiro prisioneiro do passado. The Wild Daisy pelo então estreante Shin'ichiro Sawai (realizaria mais tarde o melhor Tragedy of W) é só uma menor e mais literal versão de She Was Like a Wild Chrysanthemum com prestações mais inocentes, por um lado, mas menos capazes de dramaticidade por outro. Resta-nos recorrer à linguagem floral e sublinhar a simbologia, quer do crisântemo, quer da margarida selvagem, flores que resgatam a ideia da virgindade e do "amor frágil", precisamente as palavras que enchem de significado a triste sorte dos amantes.



Enclosed Pain (2000) de Isao Yukisada: *
Terceira instalação do projecto Love Cinema, Enclosed Pain segue à risca os propósitos da série que, no princípio do milénio, tentou explorar as capacidades das câmaras digitais aliando uma estética descomprometida de jovens cineastas que teoricamente fariam da falta de meios e da volatilidade técnica uma assinatura independente. Dos seis filmes produzidos, destaca-se uma nova geração, a primeira geração do digital, capaz de introduzir novos caminhos para a velha arte. No Ocidente, conhecemos certamente Visitor Q de Takashi Miike (o sexto e último filme de saga) e para os mais atentos não serão estranhos nomes como Akihiko Shiota, Ryuichi Hiroki ou até mesmo Isao Yukisada. Este último em Enclosed Pain demonstra competências para tornar as imagens mais embaciadas do digital em registos mais imediatos, onde muitas vezes a fronteira entre planificação e improviso parece esbater-se. No entanto, o problema advém de uma narrativa inconvincente que coloca dois irmãos incestuosos com um passado problemático (ela, escritora de renome, ele, um rapaz perturbado que pensa poder acabar com o mundo no momento em que se afoga) num processo de redescoberta afectiva que nem sempre, sobretudo nas cenas finais, funciona com motivações claras. A introdução de duas novas personagens (o editor da irmã e uma colega de escola do irmão) a princípio criam uma instabilidade interessante na vida obsessiva dos amantes secretos, mas acabam rapidamente por tornar-se, numa daquelas cenas que estragam um filme, simples engodos para a narrativa chegar onde se pretende. Infelizmente para Yukisada, a ânsia de querer unir pontas soltas do argumento traí o poder e o interesse da sua intriga e personagens, por mais bizarros e sofredores que fossem. 



The Vancouver Asahi (2014) de Yuya Ishii: **
Yuya Ishii para alguns rendeu-se fatalmente a "comercialismos" a partir de The Great Passage, contrariando as suas muito "especiais" raízes independentes que, tirando um ou outro caso, nunca resultaram nada de extraordinário. Em The Vancouver Asashi, Ishii debruça-se sobre a emigração japonesa no Canadá das primeiras quatro décadas do século XX, aproveitando um acontecimento verídico de uma equipa de baseball composta exclusivamente pela segunda geração de emigrantes japoneses para descrever a vivência difícil dessa comunidade e a discriminação racial sempre presente no quotidiano. Filme de desporto em que a vitória surge como corolário de todos os esforços de aceitação de uma minoria, Vancouver Asahi pode apresentar-nos personagens simpáticas (porque resistem contra a adversidade, respondendo com a singularidade) mas nunca consegue superar as emoções de um filme cujo carácter de justiça social vem sempre a reboque de uma certa artificialidade histórica. Nesse sentido, nunca conseguimos realmente ver a complexidade subjacente à discriminação racial que tantas vezes é descrita mas que acaba por ser executada de forma maniqueísta, algo que permite uma identificação imediata com os nossos jogadores, mas que no final não consegue fornecer um retrato realmente fidedigno dos tempos.



Little Forest - Winter/ Spring (2015) de Jun'ichi Mori: ***
O segundo capítulo de Little Forest prossegue com os experimentos gastronómicos de Ichiko durante as estações que faltavam explorar no primeiro filme, o Inverno e a Primavera. Como seria esperado, manteve-se a mesma estrutura e coerência estética do primeiro filme. Dois segmentos de aproximadamente uma hora (com créditos iniciais e finais para cada um) ilustram as quatorze iguarias fabricadas pelas mãos da nossa misteriosa intérprete, relembrando sempre a importância da agricultura subsistente, o aproveitamento dos recursos e a circunstância de que a culinária evoca memórias antigas, pessoas e lugares de que sentimos falta. Com efeito, um diálogo silencioso é estabelecido entre Ichiko e a mãe que a abandonou e alguns pratos transpõem sabores e experiências do passado, gentilmente recapturadas por entre as dentadas de um bolo natalício para não cristãos ou outras delícias do mesmo calibre. A mesma finura das imagens conquista-nos, não pela apropriação televisiva que delas se podia ter feito, mas porque a simbiose entre a natureza, aproveitamento e paciência aquando da confecção resulta como um todo, a despeito da quase inexistência de trama ou conflitos. Little Forest foi cozinhado em lume brando. É por isso obrigatório saborear lenta e cuidadosamente para retirar o maior prazer do seu consumo.