30/01/13

Fragmentos de 2013/01/30


Listen to the Voices of the Sea (1950) de Hideo Sekigawa: *****
Já o sabemos: a análise é produto da finitude, mas julga-se perfeita. Se os meus clamorosos elogios a Tower of the Lilies me levaram a concluir que essa era uma produção única (pelo seu pessimismo beligerante) nem meia decada passada após a derrota nipónica na 2ª Guerra, eis que a curiosidade - e uma referência de Tadao Sato na sua enciclopédia sobre Cinema Japonês - me encaminhou na pista deste criminosamente desconhecido filme de Hideo Sekigawa. É daquelas experiências complicadas de descrever. Mas, é um exercício de dureza poética ladrilhada pelos esforços daqueles que, mudos por uma andrajosa e infeliz morte em batalha, urgem em falar para os vivos acerca do inferno. Sim, nós os vivos. O carácter fantasmagórico destes indefesos soldados - sublinhado na cena final com os seus espíritos literalmente saindo dos corpos sem vida - é comovente a várias leituras e deixa-nos imobilizados de terror. Duas cenas em particular são de cortar a respiração, e têm sempre a ver com uma submissão radical e um silêncio face à tragédia: o abandono dos doentes que não podem mais lutar, deixados à sua sorte na selva, apenas com uma granada, para possivelemente terminarem com  a sua vida, e a cena da batalha final, uma corrida melancolicamente energética para a extinção colectiva de todo o batalhão. Tanto numa cena como na outra, a catástrofe anda de mãos dadas com um sentimento fortemente grotesco e despido de honrarias, tornando a visão de Sekigawa radicalmente crua (um marco, visto que estamos no ano de 50) mesmo quando os momentos são mais emotivos. Não raras vezes, ao ver aquele lamaçal onde jazem os corpos a agonizar desses soldados absurdos, me lembrei do Triunfo da Morte de Pieter Bruegel. Também aqui não há protagonista a liderar a tela. Apenas corpos entrelaçados na terra a preencherem os planos abertos, com a última expressão de horror, que já nem é deles, mas da morte. Decididamente, um pesadelo.



Vagabond of Sex (1967) de Koji Wakamatsu: **
A proposta de Wakamatsu era simples: parodiar o fenómeno social dos jôhatsu (literalmente significa evaporação, era o nome dado aos súbitos desaparecimentos de pessoas sem deixar rasto), dar-lhe uma interpretação psicológica e visceral (mas que acaba por se tornar óbvia e repetitiva) e, aproveitar esse lance para referenciar o, na altura, recém estreado, A Man Vanishes de Shohei Imamura que tinha preocupações temáticas semelhantes mas era muito mais um estudo sobre os limites que vão da realidade à ficção do que outra coisa. Já esta proposta, na maior parte da sua duração, é eventualmente tão simples que temos de esperar pela cena final para sermos abalados de forma subversiva - como só Wakamatsu poderia fazer - e suspirarmos de alívio pelo fim da linear e circular estrutura deste road-movie sexual, ora reminiscente das comédias atrevidas que começavam a aparecer na altura, ora tentando alcançar cenas mais arrojadas esteticamente - ajudadas em muito pelo sempre hipnotizante acompanhamento musical, Zigeunerweisen - , mas sem a intensidade etérea das suas obras de destaque.



In Search of Unreturned Soldiers Pt. 1: Malaysia (1971) de Shohei Imamura: **
In Search of Unreturned Soldiers Pt. 2: Thailand (1971) de Shohei Imamura: ***
Seria injusto separar estes dois documentários, apesar de serem diferentes quanto ao tom, visto que fazem parte do mesmo esforço Imamuriano de desenterrar velhas sombras da 2ª Guerra Mundial perdidas pelos cantos da Ásia. O primeiro capítulo, situado na Malásia, é uma jornada de errância (e pouco ou nada de narração), com as complicações do costume quando tratamos de documentários improvisados: é uma viagem à procura de "soldados evaporados" no meio da estranheza de paisagens mais ou menos tropicais. Os percursos nesta primeira viagem são meras averiguações de paradeiro que acabam por ser repostas ou reconstruidas pelo próprio Imamura que apenas tem para apresentar um antigo soldado, agora convertido ao Islão, que demonstra, nessa sua nova crença, uma resposta às feridas bélicas do passado. Mas, contrariamente ao estilo do seu episódio predecessor, o segundo capítulo passado na Tailândia reúne três ex-soldados numa conversa introspectiva que ocupa todo o documentário, excepto a cena final. Aqui a reconstituição deixa de ser material e espacial e passa a ser mental, visto que os relatos por nós ouvidos podem chegar a ser surpreendentes pela abertura de, pelo menos, dois dos contadores, fazendo que o espectador siga as suas vozes e os seus testemunhos dispersos e às vezes confusos. Uma discussão acesa acerca do estatuto do Imperador é o mote para se perceber as desavenças entre estas almas sem pátria, umas rejeitando-a, outras amando-a, nem que seja às escondidas, na profundidade dos seus corações enrijados.



Sex Hunter: Wet Target (1972) de Yukihiro Sawada: ***
A estreia de Sawada no catálogo extenso da Roman-Porno é qualquer coisa de histórico, principalmente quando, para o bem e para o mal, se trata de um realizador que viveu a representar a violência (principalmente a sexual), filmando brutais personagens em invulgares e selvagens actos de revolta. Escrito pelo lendário Atsushi Yamatoya (alguém um dia o há de desenterrar do esquecimento) Sex Hunter é um filme de vingança corrumpido e queimado no seu interior mesmo. Trata-se de um exercício que sorrateiramente familiariza o espectador com a sua gramática (outcast à procura de vingar a sua irmã, vítima de violação por parte de soldados americanos) e vai, progressivamente dificultando a concretização por aquilo que todos esperamos, tornando o típico herói que paga a violência com a violência numa espécie de falhado, uma alma perdida num mundo triste. Tirando os óbvios contornos raciais (sabe-se que a demonização da ocupação americana faz-se sentir sobretudo nos filmes pink), este é uma obra que demonstra claramente como a sensação artística pode nascer no facto de apenas se efectuarem variações inteligentes dentro do próprio género, dentro dos pré-requesitos de produção industrial. Algo, portanto, para aprender, caros cinéfilos.



Karayuki-san, The Making of a Prostitute (1975) de Shohei Imamura: ***
Esta que é a última produção de Imamura antes do seu regresso ao cinema serve de complemento temático às preocupações presentes no seu universo documental, isto é, dar a cara pelos japoneses distribuidos pelo continente asiático durante a rápida modernização (e consequentes guerras) que ocuparam as primeiras 40 décadas do século XX japonês. Se a sua obsessão pelos soldados que não regressaram à pátria era a oportunidade ideal para se desenterrar feridas não saradas e ouvir em primeira mão as histórias fascinantes mas doridas da 2ª Guerra Mundial, aqui toma-se como "objecto de estudo" as Karayuki-san (em inglês traduz-se por "Miss-Gone-To-China"), mulheres vendidas e extraditadas para bordeis estrangeiros (sobretudo para satisfazer as necessidades sexuais de algumas colónias imperiais). Com um estilo directo, mas raramente invasivo ou desrespeitador, Imamura de alguma forma desmascara os vícios da História que olvida uns e sublima outros, pegando nestas velhas mulheres esquecidas pelo próprio país e por toda a gente. A cena da visita ao cemitério, cujas campas raramente têm assinatura, é um bom exemplo desta dimensão marginal (ainda mais do que os soldados desertores) que prepassa a vida melancólica destas personagens fortes.



My Back Page (2011) de Nobuhiro Yamashita: ****
Já dizia o nosso velho amigo Bob Dylan (na música homónima a este filme, só que com o título no plural): "Lies that life is black and white/ Spoke from my skull. I dreamed/ Romantic facts of musketeers/ Foundationed deep, somehow./ Ah, but I was so much older then,/ I'm younger than that now." Também nos segreda assim o aguardado filme de Yamashita que é uma leitura o mais honesta possível da passagem dos inflamados ideais da mocidade à desilusão que eles provocam quando aplicados no mundo e na gente. Dizer isto não chega, já que se é perspicaz o suficiente para formar um díptico de personagens que são o espelho um do outro, embora cada um esteja numa barricada diferente da História. Esta amizade entre um jornalista e um pseudo-revolucionário representa o período conturbado do final dos anos 60, princípio dos 70, focando maximamente a atenção na decadência dos movimentos estudantis, cansados, por essa altura, da via tradicional de resolver as coisas, virando-se para uma espécie de "terrorismo de adolescentes" como única maneira de agirem. Ficamos mesmo com a impressão que o vazio está por detrás de toda a lengalenga revolucionária, fazendo valer a luta como uma espécie de guerra interna entre as facções de direita e de esquerda. O jornalista Sawada é um idealista não posicionado nos movimentos de revolta, ou seja, ele é um espectador interessado, mas um espectador. É com este personagem que sentimos a passagem do tempo, é com ele que crescemos, pois foi "deceived me into thinking/ (he) had something to protect" (como dizia Dylan). Numa das sequências próximas do final, Sawada sai de uma sala de cinema que projectava The Nineteen Year Old's Map de Mitsuo Yanagimachi. Não se trata de uma coincidência. Ambos os filmes descrevem uma geração que, fatalmente, procurou a violência como principal forma de revolta, mas não estava preparada para as suas consequências.

20/01/13

Fragmentos de 2013/01/20



Roughneck from Asama (1958) de Toshikazu Kono: **
Uma confissão: os filmes realizados pelos artesãos da Toei dos anos 50 e 60 são, por norma, os menos interessantes, se compararmos com a componente polida e artística (sobretudo a nível imagético) dos artesãos da Daiei ou da Nikkatsu na mesma época. Excluindo os grandes nomes do estúdio, como o fascinante Tomu Uchida, e alguns dissidentes, Tadashi Imai e Tai Kato à cabeça, a maior parte da produção da Toei estava interessada maioritariamente em entreter a sua audiência com artes populares (e não necessariamente tradicionais), explorando uma vertente musical e de grande espectáculo, introduzindo uma certa ligeireza a géneros que não estavam habituados a ter essa gramática - os filmes com Misora Hibari são excelentes exemplos disso. Porém, este Roughneck from Asama contradiz esta vaga e é claramente um precursor de um tratamento mais cuidado dado aos filmes de errância (o matatabi eiga), tanto nas imagens e nos cenários, como na construção de dilemas sérios e dramáticos (mesmo alguns sendo demasiado excessivos). Apesar de ser um exercício rotineiro por momentos, noutros vislumbramos uma certa inspiração que tem como protagonista um jovem Kinnosuke Nakamura, muito confortável no seu papel de forasteiro sem descanso, num mundo que lhe reenvia constantemente a solidão da sua vida eternamente itinerante.



Dreams of Cinema, Dreams of Tokyo (1995) de Kiju Yoshida: *****
Agora que a boxset dos documentários sobre pintura do sempre estimulante Kiju Yoshida está prestes a sair, eis que surgiu a oportunidade de visionar este excelente documento acerca do misterioso cinematógrafo Gabriel Veyre, alguém que, segundo o próprio Yoshida, previu a morte do cinema no momento mesmo do seu nascimento. Veyre, empregado dos irmãos Lumière que tinha a missão de filmar os quatro cantos do mundo para mostrar numa feira inernacional as capacidades do recém-inventado cinematógrafo, é no mínimo um homem atravessado por fascínio e desilusão no que concerne as capacidades dessa invenção prematura que era o cinema. Por um lado, descobre-se nessas primeiras filmagens que o cinema possibilita o entretenimento, um outro modo de se ver e de se viver (já que ninguém é indiferente ao monstro de festa que é uma câmara), mas por outro lado, ele também estabelece uma diferença de poder entre quem é filmado e quem filma. Esta segunda dimensão é exemplificada com uma imagem em particular que arrebata o nosso olho e possivelmente o de Veyre. Yoshida traça um percurso mental e disposicional deste homem de uma maneira astuta e digna, realçando a componente mística das imagens captadas por Veyre - principalmente a sua viagem pelo Japão - para nos catapultar para as suas arrelias e preocupações e tentar indagar, finalmente as razões para a sua desistência do cinema até ao último ano da sua vida. Porém, as últimas filmagens de Veyre já às portas da morte, um verdadeiro testamento em imagem da comovente experiência desta enigmática personalidade, são o fechamento ideal da própria tese do autor, Yoshida, de quão belo pode ainda chegar a ser a arte de se filmar, a arte de se fazer filmes: "there's absolutely equality between these young people, filmed as they are dancing, and the person filming them. That is the dream of cinema. A cinema of dreams."



Stake Out (2001) de Tetsuo Shinohara: *** 
Uma rica surpresa graças às edições DVD do Fantasporto. Este filme é o quarto capítulo da famosa colecção Love Cinema, filmada com baixo orçamento e em digital pelos realizadores da geração de 2000 (Miike, Yukisada, Shiota, Hiroki, entre outros). Shinohara, que está associado a produções mais singelas e alegres, enclausura a sua câmara em espaços fechados, na maior parte do tempo, adensando a psicologia e o carácter obsessivo dos seus personagens. Lembrou-me uma modernização da estílistica de Wakamatsu (Secrets Behind the Wall e The Embryo) , sem a sua vertente política, mas ainda assim, conservando uma radical violência afectiva e alguma tensão sexual. Estilísticamente, o uso do preto e branco (surgindo flashbacks em cores) consegue usar de maneira bem criativa a tecnologia do digital - tecnologia essa que, como bem sabemos, muitas vezes enfraquece o poder das imagens.



Parade (2009) de Isao Yukisada: ***
Desde Go (2001) que não viamos nada de marcante de Isao Yukisada. O seu início de carreira que prenunciava uma voz única, com uma estética independente e livre de constrangimentos comerciais, tinha sido rapidamente assimilado pelos estúdios que pautaram temática e formalmente o resto dos seus filmes durante os anos que se seguiram. Tirando alguns pormenores meritórios no meio desses crowd-pleasers confusos (por exemplo, o uso inteligente das cores e da cinematografia em Crying Out Love in the Center of the World, 2004), dir-se-ia que o estilo de Yukisada se vergava demasiado a exigências populares, produzindo filmes feitos para todos e para ninguém, sem muito carimbo ou personalidade e que demonstravam uma desesperante falta de ritmo narrativo (filmes longuíssimos que se arrastam por grandes períodos de tempo). No entanto, este Parade, embora imperfeito, é um regresso à promessa que Yukisada representava no início dos anos 2000: é um filme repartido pelas suas personagens, esperto, com uma narrativa simples, mas que reforça e demarca a psicologia dos seus intervenientes. É daquele género de filmes cujo argumento funciona como um puzzle. Sabemos que os motivos estão lá, mas são-nos apresentados de forma subtil, de maneira que seja possível, no fim, o espectador juntar todas as peças. Talvez se pudesse "cortar" numa última montagem algumas cenas um pouco mais supérfluas, mas o resultado final é ainda bastante satisfatório. Yukisada volta a filmar personagens singulares, maiores do que planificações ou linhas vagas de um script.



Toad's Oil (2009) de Koji Yakusho: 0
Yakusho é um dos melhores actores japoneses contemporâneos, não haja dúvidas sobre isso! Na sua longa carreira, foi um dos grandes símbolos não só de um cinema mais independente que emergiu nos anos 90 (excusado será dizer que Kiyoshi Kurosawa o considera como o melhor actor com quem já trabalhou) como também foi uma figura cimeira dos grandes sucessos de bilheteira nessa mesma década (por exemplo, Shall We Dance? de Masayuki Suo). Igualmente sabemos que não é nova a tendência de actores mais ou menos consagrados tentarem a sua sorte por detrás das câmaras (Naoto Takenaka, Tomorowo Taguchi, Eiji Okuda, Masahiko Tsugawa, mas o caso com mais sucesso Juzo Itami), na maior parte dos casos, o trabalho criativo enfraquece se compararmos ao trabalho de interpretação, e os actores-tornados realizadores raramente demonstram uma visão particular, sem ser uma repleta de academismos e quase facilitações televisivas, em suma, uma incapacidade de transfigurar as coisas. O caso de Koji Yakusho neste Toad's Oil tem a forma desse fracasso típico: mesmo sendo um argumento original (e não uma adaptação de um romance ou obra de outro) ficamos com a sensação de que não se sabe levar a mensagem a bom porto. É apenas um pequeno relato multiforme e desorganizado sobre a morte e a perda na mente de um personagem sem qualquer profundidade que é "rico materialmente, mas desencontrado espiritualmente". Toad's Oil é um filme demasiado longo, incoerente quanto à forma como trata os assuntos (se é uma comédia, rimos, mas quando?) e insatisfatório nas suas conclusões apressadas sobre a vida, a morte e a memória. Yakusho, cada macaco no seu galho!

02/01/13

Fragmentos de 2013/01/02



Honor Among Brothers (1966) de Kosaku Yamashita: *
Honor Among Brothers 2 (1966) de Kosaku Yamashita: *
Estes dois filmes de Kosaku Yamashita (o senhor Red Peony Gambler) são variações mínimas do modelo estandardizado do filme yakuza tradicional que era a regra na Toei dos anos 60. Heróis meio estóicos no meio de uma guerra de gangues facilmente discriminados (sabemos desde o princípio quem são os vilões e quem são os dignos cavaleiros da moral), despoltando este embate numa sequência final violenta que tende a acabar com o aprisionamento do herói, agora, tornado mártir pelos seus valores. As versões de Yamashita desta mesma história repetida até ao infinito são, porém, conhecidas por introduzirem personagens mais simpáticos e coloridos num género que usa e abusa da seriedade (e de uma infeliz exposição de diálogos que enfraquece a componente imagética, exceptuando as cenas finais). São assim, duas propostas não muito boas que mesmo assim têm um ou outro personagem mais entretido que impede de ser uma experiência terrivelmente entediante. 



 Shameless: Abnormal and Abusive Love (1969) de Teruo Ishii: *
A despeito da introdução e de alguns momentos inquestionavelmente psicadélicos e bem atmosféricos na construção de imagens bizarras e quase embrigadas de desejo e sensualidade, este que foi um dos seis filmes que Ishii realizou apenas em 1969 não consegue deixar de ser insuficiente a quase todos os outros níveis. Repleta de violência e sexualidade forçada, rapidamente percebemos que a escassa narrativa encontra um modelo repetitivo de sempre impôr os mesmos problemas e peripécias aos personagens, principalmente porque se trata de uma longa-metragem com pouco para dizer, fazendo pensar porque é que Ishii não a usou como segmento num dos seus filmes-compilações de horror bizarro como por exemplo, Love and Crime, também do mesmo ano, reduzindo a sua duração e cortando até chegar ao essencial. Depois, é também curioso notar como os filmes da Toei desta época eram radicais muito mais pela violência e o choque dos actos dos personagens do que pela maneira como se os filma ou trata. A sua narrativa neste caso, até se resolve de uma maneira estranhamente fácil e lamechas, contrária, em tudo, ao tom sádico e agressivo do resto da película.



Submersion of Japan (1973) de Shiro Moritani: *
Já que este mês de Dezembro foi o mês dos embustes apocalípticos, resolvi desenterrar, pela piada, mais uma interpretação do fim do mundo à japonesa e que faz juntamente com The Last War (1961) de Shue Matsubayashi e Prophecies of Nostradamus (1974) de Toshio Masuda uma verdadeira trilogia clássica da humanidade encarando a catástrofe do seu fim. Apesar do estatuto de culto deste filme com argumento do lendário Shinobu Hashimoto (que lhe valeu inclusive um fraco remake em 2006) será que resistiu bem ao tempo? Infelizmente não. A primeira metade, uma tentativa de introduzir o personagem típico que se apercebe antes de todos do possível desastre não passa de uma quantidade de cenas aborrecidas com várias explicações e conjecturas científicas que avançam pouco a narrativa e nada desenvolvem a psicologia dos personagens. Diria que todo o filme está tão enamorado com o cenário que ele próprio construiu que se esquece crucialmente de nos dar personagens e intuitos fortes o bastante para nos comover e nos prender, para além de um ou outro dilema bem construido mas esparso e raro nas quase duas horas e meia que o filme tem. Posto isto, a segunda parte acaba por ser mais do mesmo, só que aplicado, em grande parte, ao cenário administrativo e político, com cenas de destruição e caos a pontuar esses momentos e uma ou outra personagem com muito tempo de filme, mas finalmente, pouco interessante. É um filme megalómano que negligencia (ou constrói mal) os seus personagens, intérpretes fatais da narrativa: são carregados por ela e não o contrário.



I Love It From Behind (1981) de Koyu Ohara: *
Ohara faz jus ao seu cognome de "rei do filme erótico pop", mergulhando sempre o espectador numa aventura ligeira à medida da foleirice e do mau-gosto dos anos 80. Para além disso, é uma comédia sexual bizarra repleta de cenas embaraçosas, mas cujo teor deliberadamente parodiante e contra todo o tipo de seriedade torna-a até num objecto curiosamente datado e entretido. É um filme-produto da sua época, tanto pelo seu extremismo leviano, como pela sua óbvia afirmação de que o erotismo é kitsch e nada mais.



That's Cunning! The Greatest Scheme in History (1996) de Hiroshi Sugawara: 0
Irreal e bacoca comédia sobre a utilidade de falsear exames, supostamente, por uma boa causa. Hiroshi Sugawara - que já nos tinha oferecido uma não muito boa experiência, Seven Days War - não demonstra uma grande apetência para filmar convenientemente situações burlescas ou mais surreais, pelo contrário, nunca consegue sair de uma forma de apresentar as coisas à filme de domingo à tarde, servindo-nos uma ou duas cenas razoáveis (algumas trapaças são minimamente humorosas) no meio de uma mediocridade inaceitável e comichosa. O facto de se ter desculpado os discentes cábulas com uma demonização da classe docente também é típico destes filmes repletos de pouco engenho, mesmo quando se quer, supostamente, apimentar um pouco as coisas.



The Woodsman and the Rain (2011) de Shuichi Okita: ***
The Chef of South Polar (2009), primeiro filme de Shuichi Okita, demonstrava já um carinho bastante especial pelos seus personagens atípicos num cenário invulgar (uma tripulação japonesa em pleno Pólo Sul!). Com Woodsman and the Rain, pequena jóia, Okita aplica o mesmo modelo formal de um encontro inesperado (um lenhador castiço e um jovem e tímido realizador) e realiza uma verdadeira ode ao cinema de baixo orçamento, começando por caricatura-lo mas finalmente, elogiando-o com toda a força (já que o processo de fazer cinema é que é mágico e não propriamente os filmes enquanto tais). É uma daquelas películas que contam com a mestria de certos actores (Koji Yakusho, claro) e que são experiências doces e felizes, conciliadoras mas não facilitistas.



Chips (2012) de Yoshihiro Nakamura: 0
Inconsequente filme do promissor Nakamura que peca aqui por confiar em demasia nos personagens e no seu suposto carisma, na realidade inexistente, mas algo que, em parte tinha feito bem nos seus filmes anteriores. Mas também como filme guiado pelos personagens, Chips falha redondamente: eles não são interessantes, com eles não sentimos o mínimo apreço e as revelações mínimas que lhes são dadas fazem o espectador sentir que está a ser enganado e puxado para um final cuja mensagem "feel-good" é pouco digerível. Como é que ainda há dinheiro para fazer coisas assim?



Rurouni Kenshin (2012) de Keishi Otomo: **
A experiência de um admirador de uma obra original que é fatalmente adaptada para o grande ecrã é sempre estranha e, na maior parte dos casos, frustrante. Resume-se sempre a um tentativa instável de equilibrio entre o que nos lembramos do original e o que é novo na adaptação. Raras vezes o que é novo consegue surpreender, já que foi o que conhecíamos antes que condicionava o nosso gosto e toda a construção do nosso juízo. A tarefa de Keishi Otomo - um quase-novato na cadeira de realizador de cinema - era fácil e difícil ao mesmo tempo. Fácil porque o extraordinário manga de Nobuhiro Watsuki, Rurouni Kenshin não é dos mais difíceis de adaptar para cinema, pois, salvo alguns exageros e fantasias, é um universo que lida com dilemas de chanbara e está preso a um período específico da história japonesa, período esse que é fascinante (o final da era Bakumatsu, princípio da era Meiji) e que é farto em obras-primas da sétima arte - para perceber como o cinema japonês está habituado a retratar esta época tome-se como exemplo, Tenchu! (1969) de Hideo Gosha ou The Last Samurai (1974), não o de Tom Cruise (!), mas o de Kenji Misumi. Nesse sentido, Otomo está inserido numa tradição que constantemente retratou os dilemas e as amarguras de um conjunto de homens que "viveram pela espada e morreram pela espada", independentemente das mudanças de grande relevo social que fizeram que eles se tornassem vagabundos e forasteiros. Mesmo sendo para um público menos avisado, a obra original de Watsuki concentrava todos estas problemas num personagem chamado Kenshin Himura, o Battosai, um ex-assassíno renegador dos seus velhos métodos e que tenta a todo o custo encontrar sossego numa era mais modernizada. A dificuldade da tarefa de Otomo era, justamente, filmar a complexidade deste personagem e da intrincada, mas no princípio, episódica, narrativa, mantendo a coerência e um certo espírito de síntese para abarcar tudo em duas horas e pouco. Pode-se dizer que é um exercício com demasiada síntese (juntam-se aqui três pequenas e diferentes "sagas" numa!) mas, felizmente, a alma está cá quase toda. Isto deve-se principalmente ao tratamento dado ao herói e à bastante satisfatória prestação de Takeru Sato que interpreta com alguma subtileza um personagem, por si só, complexo. O pior do filme é precisamente a resistência de quase todos os personagens amigáveis em redor de Kenshin, veja-se Yahiko (quase inexistente) e Sanosuke, personagens que parecem estar a mais numa narrativa que não lhes dá tempo nem muito espaço, sem ser forçado e algo impingido. Também não podemos deixar de notar o tempo indevido dado a algumas personagens como Kanryuu Takeda, o traficante de ópio símbolo do Japão mercantil da era Meiji e o seu bando. Apesar disso e da narrativa um bocado sinuosa, Kenshin rouba o espectáculo e consegue criar, com a sua energia, um sentimento qualquer de que a adaptação tocou no essencial, não criando por isso, um sentimento de desilusão, mas conservando ainda alguns pecados que não o tornam num visionamento obrigatório tanto para os fanáticos como para o espectador comum. Para ver, se se está curioso.