25/10/14

Fragmentos de 2014/10/25



Okoto and Sasuke (1935) de Yasujiro Shimazu: ****
Shunkinsho ou A Portrait of Shunkin é um dos mais famosos contos de Junichiro Tanizaki e - como quase todas as suas obras - foi adaptada para cinema desde muito cedo. Depois desta versão clássica de Yasujiro Shimazu, que foi rodada apenas dois anos depois do original ser publicado, também Teinosuke Kinugasa, Daisuke Ito, Katsumi Nishikawa ou até mesmo Kaneto Shindo levaram o popular conto ao grande ecrã. À bravura formal e ambiguidade de Tanizaki, os realizadores, porque tinham de representar por imagens aquilo que no original pertencia ao reino da imaginação e da conjectura, sempre descreveram a relação entre a mestra Okoto e o tímido discípulo Sasuke como o expoente máximo da auto-abnegação e do amor puro. Shimazu foi, no cinema, o primeiro a fornecer essa interpretação romântica (o título dá conta dessa intimidade a dois), mas que não é mais do que uma interpretação, mantendo intactos alguns mistérios e ambiguidades que resolvemos enquanto espectadores somente pelo tom romântico geral da película (por exemplo, quem é o pai da filha de Okoto?). Temos de relembrar as discussões acesas que A Portrait of Shunkin desencadeou quando, a propósito da sua narratividade esquiva e do seu narrador distante, misterioso e pouco ou nada definitivo, o escritor Akiyuki Nosaka argumentou, mais tarde, ser Sasuke o culpado pelo desfiguramento da sua mestra, caracterizando toda a história e inclusive o sacrifício aparentemente tocante de Sasuke como "a descrição exaustiva da obstinação e egocentrismo de um homem". Yasujiro Shimazu está nos antípodas da mordacidade caústica de Nosaka e em Okoto and Sasuke opta pelas boas intenções do protagonista face à belíssima e cega mestra (interpretada pela não menos bela Kinuyo Tanaka) enquanto que aproveita para construir algumas situações humorísticas, mais próximas do seu registo habitual dos shomin-gekis da Shochiku. Para além da simbologia da gaiola estar aqui presente (quando o pássaro se escapa, Okoto apercebe-se da exclusividade de Sasuke na sua vida e decide isolar-se dos olhares públicos) há que destacar os prodigiosos dez minutos finais. A cena do sacrifício de Sasuke, quer se ache ou não descabida perante as intenções dúbias de Tanizaki, é um momento poderosíssimo de cinema que prova a sofisticação formal de Shimazu. Aquela sobreposição dos punhos de Sasuke no espelho preparando-se para cegar a sua própria vista e a última visão (possível e projectada) de Okoto prova bastante bem o que se diz nos intertítulos poéticos que fecham o filme: "Sasuke fechou os seus olhos para a realidade: saltou para um mundo conceptual. Os olhos do seu coração vêem o mundo das memórias." E só nele é capaz de se encontrar.



The Battle for the Liberation of Japan - Summer in Sanrizuka (1968) de Shinsuke Ogawa: ****
No trailer de Death by Hanging (que em si mesmo é uma obra de arte e um avant-propos), Nagisa Oshima, tornado narrador da sua própria proposta, aconselhava aos espectadores o seguinte: "Por favor, vejam este filme da mesma maneira que brincam, trabalham, lutam, odeiam e amam. Fizemos este filme com o mesmo espírito do protesto nas ruas." Haverá, porém, algum filme (ou série de filmes) que tenha melhor capturado o espírito de protesto do que a incansável e exaustiva saga Sanrizuka de Shinsuke Ogawa? Primeiro capítulo de quatro, Summer in Sanrizuka, à primeira vista, documenta os esforços dos camponeses que vêem a sua terra ser-lhes retirada, sem qualquer aviso ou consulta prévia, para dar lugar à construção de um novo aeroporto. Logo nos planos iniciais está sintetizada toda a violência desse "recolher obrigatório" injusto: um polícia, ao repreender os protestantes, esmaga com as suas botas uma melancia. Esse acto simbólico (um zoom em cima dos destroços do fruto), assim introduzido para dar o mote ao resto, sem qualquer necessidade de explicitar as condicionantes e as razões mais lógicas do protesto, será a primeira imersão no ambiente - que Noel Burch pejorativamente chamou indigestível - de guerrilha e luta armada dos camponeses face às forças da autoridade. Repetidamente, os motins e os confrontos tomam uma dimensão denunciadora já que o ponto-de-vista do espectador acompanha sempre os protestantes e dirige-se aos repressores com o mesmo grau de revolta, contestação e confiança (valha-nos o Hino da Alegria a musicar os esforços). É aqui que Ogawa e a sua equipa transcendem o estatuto neutral da linguagem que abraçam: a câmara não documenta os camponeses como se fosse uma entidade invisível, mas apoia-os e vai à guerra com eles como se a câmara fosse uma arma de arremesso (tal e qual as pedras vãs que eles atiram aos escudos da polícia) e tivesse, também ela, de ser apreendida e reprimida pelas forças do poder (como aliás chega a acontecer quando um cameraman é preso e a sua câmara confiscada). Apesar de Summer in Sanrizuka encarar de frente os confrontos com a polícia, fixando e participando da  revolta dos mais fracos, Ogawa concede algum tempo aos testemunhos dos camponeses que, ultimamente, defendem a violência para fazer valer os seus direitos. Nessas cenas, tenta-se passar um certo intimismo dos guerrilheiros e o mais importante são as suas palavras de força e coragem (com o som técnica e poeticamente desfasado da imagem como se o primeiro fosse mais importante do que o segundo) quando a vitória se revela praticamente impossível. Outro factor de destaque (que se aplica não só aos camponeses, mas também ao próprio modo de filmar) é a importância do colectivismo e da organização grupal. Nada parece mais digno,  belo e defensável para Ogawa do que um conjunto de pessoas unidas pelo combate e reivindicação dos mesmos direitos. Em breve, fascinado pelo pragmatismo e bravura dos camponeses (que se opõem às teorias vazias dos estudantes, como ouvimos num testemunho) ele próprio iria dedicar-se, durante longos anos e quase toda a sua vida, a documentar activamente os avanços e recuos, os sonhos e os pesadelos, a vida e a morte destes pequenos e rurais heróis.



Osaka Violence (2012) de Takahiro Ishihara: 0
Snake of Violence (2013) de Takahiro Ishihara: **
Assim como aconteceu com o chanbara, o cinema yakuza se ainda não morreu, está há muito tempo a dar as últimas. Longe estão os tempos em que fervilhavam no grande ecrã os durões (honrosos ou desonrosos) e, se nos abstrairmos das últimas tentativas de salvação do género que se deram com o advento da geração V-Cinema (Takashi Miike, Rokuro Mochizuki, Kiyoshi Kurosawa) e com algumas reinvenções isoladas (Takeshi Kitano, Takashi Ishii, etc.), praticamente nada se fez nos anos 2000 e em diante para revitalizar esse universo tão peculiar. Foi isso que captivou o meu interesse em Takahiro Ishihara, um cineasta que parece dedicar a sua atenção aos gangsters forasteiros, descrevendo violentamente toda a amargura e brutalidade dessas vidas sem honra nem humanidade. Com budgets apertados (onde estão hoje os yakuza eiga de grande orçamento?) e apesar das óbvias limitações técnicas, deixou-nos duas películas que provam o interesse (mesmo que marginal) em ressuscitar o género. Osaka Violence, exercício falhado, demonstra um cineasta ainda muito amador com algumas dúvidas acerca de editing e colocação de câmara, dando muitas vezes a impressão de que não importa como se filma, importa antes que se filme. Em contrapartida, Snake of Violence já tem algum brilho e algumas decisões estéticas que desculpam o amadorismo do digital (por exemplo, um certo plano-sequência à la Goodfellas, que introduz o personagem principal em adulto, e dura uns invejáveis seis minutos), sendo também mais coeso na narrativa e na capacidade delirante e magnética dos seus personagens. Os dois filmes partilham obsessões: uma delas é o confronto entre a inocência das crianças e o mundo adulto da violência e outra poderia ser a inclusão de um gangster maníaco que ameaça pôr de pantanas a organização desse mundo, composto não pela honra mas pela capacidade de coagir. A esse respeito, cite-se Tak Sakaguchi em Snake of Violence, presença explosiva e caótica que, por momentos, relembra a libertinagem de tantos (anti)heróis do cinema yakuza.



The Mole Song - Undercover Agent Reiji (2013) de Takashi Miike: **
Os primeiros 20 minutos de The Mole Song são das coisas mais hilariantes que temos visto  no cinema japonês ultimamente. Dei por mim a rir à bandeira despregada com o agente Reiji e a sua passagem de polícia a yakuza para desmantelar uma rede de narcotráfico. Todo o delírio miikiano volta a mostrar a sua competência para a insanidade, já que cada piada resulta da aglomeração de vários tipos de humor (desde o físico ao meta, dos trocadilhos de palavras até ao exagero regozijante) e de um sentido de paródia que estava a fazer lembrar felizmente os Naked Gun de David Zucker mas com toques de bizarria manga (donde, aliás, provêm o material original). Quando, portanto, o nosso agente disfarçado entra no mundo dos mafiosos e prossegue com a sua missão no terreno, a irreverência e animação começam a perder o seu brilho e as piadas começam a ficar cada vez mais escassas e cada vez mais intervaladas. Deixam de ser o foco principal. Com o tempo, The Mole Song vira as coordenadas, torna-se outro filme (mais sério mas bastante menos interessante) e chega a ir mesmo contra a promessa dada nos primeiros minutos, a de ter sido uma nova referência no cinema de humor japonês. Miike volta a cometer um erro típico dos seus projectos mais recentes, isto é, não sabe fixar e estabelecer convenientemente o mood do que quer transmitir, parecendo muitas vezes ter dois ou mais filmes dentro do mesmo. Durante muito tempo este defeito era uma qualidade e Miike não teria sido quem é se não fosse por esta capacidade de fragmentar o género e chegar a sítios nunca antes idos (teremos de relembrar o desfasamento histórico do final de Dead or Alive?). O problema em The Mole Song é precisamente o inverso: durante a esmagadora maioria do tempo saímos da criatividade para entrar em lugares e situações por nós conhecidas e, esperávamos, evitáveis. Neste processo decepcionante, só os personagens nos podem salvar e conservar o interesse - e Reiji, o seu irmão yakuza, os polícias são todos personagens engraçados - mas não podemos deixar de ficar tristes com o desperdício de potencial.



Judge! (2014) de Akira Nagai: **
A estreia de Akira Nagai na realização trouxe-nos uma comédia simpática, mas finalmente inofensiva, sobre publicidade televisiva, a capacidade de julgar com (in)justiça um trabalho artístico e uma sátira aos meandros cínicos e deturpados dos painéis de júri dos festivais de cinema. Não se espere nada de arrojado, portanto. Judge! cede bastante aos lugares-comuns das comédias ligeiras: o desenlace é previsível, o antagonista demasiado unidimensional e o interesse amoroso do protagonista completamente desnecessário. Como comédia e enquanto narrativa, confia demasiado no exagero dos comportamentos e das situações, o que torna os personagens afáveis e engraçados até certo ponto mas completamente estereotipados e planos noutro. Não podemos afirmar, porém, que o filme falhe no seu entretenimento. Apesar dos clichés e da simplicidade da mensagem, Judge! nunca chega a ser entediante e consegue (mais no princípio do que no fim) arrancar alguns sorrisos e até uma ou outra gargalhada. Confesso que aqui o uso e recriação de certos anúncios é um dos pontos altos mas também se revelou bastante certeira a chacota com a veneração do "exotismo nipónico" feita pelos artistas e críticos ocidentais e aproveitada pelos próprios japoneses.



One Third (2014) de Hiroshi Shinagawa: **
Repleto de referências tarantinescas bem como piscadelas de olho a outros exercícios de culto, a terceira incursão do actor e cómico Hiroshi Shinagawa na cadeira de realizador pretende ser ao máximo um filme de acção despretensioso, formalmente aprumado e com variadas reviravoltas na intriga. Se, no seu melhor, One Third é acelerado e excitante, com personagens relacionáveis por quem nutrimos interesse, no seu pior, apresenta uma realização por vezes excessivamente saturada e com demasiados twists, não conseguindo escapar à maneira hipertrofiada e artificial como avança a história: por exemplo, precisávamos mesmo de regressar no tempo sempre que se pretende justificar uma nova etapa na narrativa? Alguns planos são bastante criativos, outros são demasiado histriónicos e fica-se com a impressão que Shinagawa quis a todo o custo imitar os lugares comuns imagéticos dos blockbusters americanos (slow-motions nas cenas de acção, planos enjoativos à volta dos personagens em 360 graus, etc.) sem parar para pensar no seu real cabimento. Este festival de enganos e traições têm também o seu lado humorístico e damos por nós a sorrir com os "enganos encenados" do trio de zés-ninguéns que assalta um banco e tenta passar a perna ao patrão psicótico e à velha cruel e mafiosa. O final abre a possibilidade de uma sequela, mas honestamente, se ela vier não será algo por nós muito aguardado.

12/10/14

Fragmentos de 2014/10/12




At Noon (1978) de Koichi Goto: ****
Tadao regressa de Tóquio para a sua terra natal. Cabisbaixo e derrotado, no caminho para casa leva às suas costas uma tempestade que alaga os terrenos agrícolas e uma trovoada negra que electrifica algumas pobres árvores em seu redor. Podíamos dizer que estes fenómenos climatéricos (assim como a misteriosa visão de uma mota descontrolada a descer por uma ravina) são um prenúncio do estado de espírito algo obscuro e incendiário do nosso protagonista: calado e discreto, Tadao parece possuir também um sentido de justiça deveras inquebrável. Afasta-se das mulheres e da sexualidade sempre debaixo do seu nariz, dá a maior parte do ordenado à sua mãe afogada em sacrifícios e, comparando com o seu amigo Tetsuji, demonstra pudor e uma rigidez moral notável. Portanto, não podemos esquecer que logo no início somos informados da captura de Tadao pela polícia, o que faz de At Noon mais uma produção ATG com jovens criminosos (e há tantos outros exemplos de destaque: Youth Killer de Kazuhiko Hasegawa, Third Base de Yoichi Higachi, Tattoo de Banmei Takahashi, etc, etc.). Contado a partir do final, At Noon é também um exercício de indagação pelas possíveis causas do crime e de como, tragicamente, quem pende mais para a moralidade é aquele que sucumbirá à ebulição da violência, verdadeira libertação animalesca de tensões escondidas e, poderíamos dizer, inevitáveis (dado a idade e, principalmente, a teimosia da contenção). Koichi Goto, que foi o assistente de realização de Kazuo Kuroki em Evil Spirits of Japan e The Assassination of Ryoma, filma arrojadamente as contradições do jovem Tadao, encurralado entre a timidez ética e as fantasias e paixões sexuais que o assaltam. Esta necessidade carnal confusa, tão inocente e não concretizável, torna-se ainda mais melancólica, quando vemos, a cada esquina, possibilidades diferentes para o destino do nosso protagonista (voltar para Tóquio, ficar com a mulher mais velha), tornado, no final do dia, anti-herói numa das cenas de violação mais directas e chocantes de que temos memória. Tadao não pode sair desta asfixia: não pode escapar indefinidamente como fazia Jun de Youth Killer, nem tão pouco exorcizar os fantasmas do passado como fazia o jovem recluso em Third Base. Há que carregar a fatalidade. Como a tempestade brutal, como o sol incandescente que queima os olhos.



The Strangling (1979) de Kaneto Shindo: ***
Na última (de três) produções Art Theatre Guild encontramos um Kaneto Shindo bastante desencantado, com uma frieza cruel e desoladora nunca antes vista em toda a sua carreira e certamente nunca mais repetida. Há em The Strangling um clima opressivo e castrador que denuncia uma sociedade altamente competitiva, governada por "adultos hipócritas" que impedem os jovens de ser jovens, levando-os a cometer actos de revolta, neuroses de violência descontrolada ou mesmo actos solenes de auto-destruição. Talvez a inspiração pelo espírito contestatário da ATG tenha levado Shindo a adoptar tardiamente esta postura afectada que nunca receia enveredar por caminhos altamente polémicos, minando completamente a hierarquia familiar e dedicando a quase todos os personagens um caminho anárquico onde a destruição é a única coisa que os une. A figura paterna, associada intimamente à hipocrisia adulta que anteriormente falava, está nos antípodas do espírito benevolente da mãe, essa interpretada pela habitual Nobuko Otowa (aqui com um papel dificílimo: entre o autismo e a indulgência, entre a castidade e uma sexualidade desconfortável). Shindo retoma as obsessões edipianas da geração de Imamura ou Oshima, mas associa-as não a uma determinação básica do instinto ou a secretas pulsões que organizam silenciosamente os humanos, mas à vingança e ódio do filho pelo espírito exploratório e falsamente autoritário do pai. Essa repugnância pelos homens é outro factor que torna a atmosfera de The Strangling ainda mais pesada e fúnebre como se condenasse toda uma cultura onde a figura paterna é central e inquestionável. De uma só vez, são homens que cercam e atormentam o jovem protagonista (o professor competitivo, o dono da empresa que viola a filha adoptiva, o pai despótico e intransigente) e só as mulheres, sempre vítimas dos homens, o "salvam" (a colega abusada que o ama na neve - como se estivesse crucificada nos seus braços - e a mãe). Neste inferno doméstico sem saída que transcende as quatro paredes da casa (não obstante, passamos tanto tempo "fechados" em quartos e em salas como já acontecia em The Heart) só nos resta assistir ao desmoronamento - e à queda das escadas, como no plano final - desta família, que Shindo nos quer fazer acreditar, poderia ser qualquer família japonesa.



Then Summer Came (2008) de Ryo Iwamatsu: **
O prolífico actor Ryo Iwamatsu já tinha feito tentativas esporádicas na realização mas Then Summer Came afigura-se como a sua empreitada mais singular, aquela em que a seriedade se mistura com a comédia mais discreta e familiar. Traduzido literalmente por "A Felicidade de Tamio", o filme descreve sobretudo a relação do circunspecto Tamio com o seu pai, Nobuo, um velho viúvo e excêntrico que deseja arranjar uma pretendente para o seu filho. Os dois vivem sozinhos e a idade de ambos começa a pesar: a transferência de papéis de uma geração para a outra ecoa obviamente os dramas familiares de Ozu, mas aqui Iwamatsu cria alguns desvios narrativos (a história do tio desaparecido e das reuniões secretas em casa é, claramente, desnecessária e pareceu-me descabida) que tanto têm um papel cómico como revelam um certo desconforto que contradiz a aceitação presente nesse cinema mais clássico. Se algumas cenas poderiam ter sido cortadas a bem de um ritmo mais equilibrado, Iwamatsu consegue terminar a sua história de forma bem complexa e poética com a cena contemplativa e humorística do casamento falhado e da sucessiva procura pelo fantasma da mãe no meio das ervas gigantes. Filmar a renúncia, fugir da "aceitação" que tão bem caracteriza este género de películas quotidianas, parece uma tomada de posição corajosa e pertinente que concede uma nova camada de sentido à relação insólita mas terna entre pai e filho. Não chega aceitar os mandamentos sociais para se ser feliz, é preciso procurar noutro lado.



About the Pink Sky (2011) de Keiichi Kobayashi: **
Amado por alguns, odiado por muitos e aclamado no circuito dos festivais, About the Pink Sky é um verdadeiro barómetro do cinema independente (japonês e não só). Em variados aspectos, parece fornecer a caricatura mais vazia das pretensões formais indie, mas, ao mesmo tempo, consegue provar que um estilo diferente e extravagante tem o seu cabimento e oferece novas perspectivas e maneiras de representar o mundano. As "pretensões" resumem-se, mais ao menos, à seguinte crença: quanto menos dramático, mais íntimo. É por causa disso que Keiichi Kobayashi, digerindo e replicando certos ensinamentos que porventura retirou da Nouvelle Vague, acredita que qualquer detalhe insignificante, qualquer peripécia vulgar pode ser contada independentemente dos mecanismos e dispositivos cinematográficos. A lentidão (que parece advir da existência remota de uma estrutura narrativa com três actos) parece ser defendida na medida em que criamos uma proximidade mais imediata e não mediada por algo que transcende as personagens: um propósito, uma mensagem. Alguém disse que "a peculiaridade cria personalidade" e esse é precisamente o ponto alto de About the Pink Sky, filme completamente voltado para as suas personagens. As peripécias das três amigas, que arranjam problemas monetários e criam um jornal onde apenas notícias boas são publicadas para apaziguar o credor, são colagens de momentos mais ou menos cómicos onde as idiossincrasias vêm à tona como bolhas de sabão que rompem à superfície da água. O humor é discreto, mas está lá. Confunde-se histericamente com o carácter dos personagens, e é tão quotidiano que se torna, para os menos atentos, invisível. Neste sentido, a novata Ai Ikeda que interpreta a castiça Izumi protagoniza momentos em que rir se torna obrigatório graças à sua postura desleixada, masculina e extravagante quando confrontada com pequenos problemas. Tirando isto, o filme de Kobayashi perde-se em termos de conteúdo, estendendo-se em demasia (tanto no tempo de cada take, como na duração final) e filmando, muitas vezes, coisa nenhuma. A fotografia a preto-e-branco, usada exclusivamente como adorno, manifesta um certo saudosismo justificado, visto que, mesmo que não se passe grande coisa, é bonito olhar para os espaços e personagens de About the Pink Sky.



Life Back Then (2011) de Takahisa Zeze: 0
Este falhanço de Takahisa Zeze poderia ter funcionado muito melhor se não fosse filmado e apenas fizesse parte do mundo das ideias. Life Back Then propõe tratar tantas coisas que não tem tempo para cuidar bem de nenhuma: não passa de um filme exaustivo, irritante e sensacionalista. Kyohei e Yuki lidam diariamente com as réstias dos mortos e com as "mortes" (figuradas e reais) do passado, mas não basta exasperar o espectador com relatos de sofrimento para imediatamente aderirmos às situações como se fossem nossas ou nos apegarmos aos personagens que, fora das suas angústias tão demoradamente exploradas, nada têm de admirável ou cativante. Takahisa Zeze parece querer insuflar o seu mundo com uma bolha depressiva para atingir um grau de complexidade "zen" qualquer, traduzindo em diálogos pouco ou nada inspirados como "morremos sempre sozinhos", um forçoso e barato sentimento de melancolia e iluminação. A maneira como constrói a narrativa é também irritantemente hiperactiva, já que vamos de flashback em flashback percebendo o pano de fundo de Kyohei enquanto este conhece Yuki, perde-lhe o rasto, visita mais casas de outros falecidos, reencontra Yuki e volta a perdê-la numa cena fraquíssima, insuficiente e que não tem nem merece justificação. Quererá Zeze dizer, com pompa e circunstância, que a vida e a morte são coisas muito efémeras ou quererá, outra vez de forma abertamente sensacionalista, infligir dor no seu protagonista com esperanças de que nos preocupemos com o absurdo da perda de mais um ente querido? Depois de tantos desvios e da incapacidade de conceber personagens marcantes, não vemos aqui nada a não ser a passagem dolorosa e apressada de um realizador marginal a aspirações mais toscas e "comerciais".



I Have To Buy New Shoes (2012) de Eriko Kitagawa: **
Eriko Kitagawa tinha já realizado uma primeira obra surpreendente, Halfway. Nesse filme independente e financeiramente modesto, abordava-se o dilema de uma jovem no último ano do secundário que tinha de escolher entre deixar o namorado estudar para longe, mais precisamente Tóquio, ou retê-lo onde estava, argumentando que a relação não suportaria a distância. A intimidade dos dois jovens actores e o final aberto e tremendo, tão próximo, da realidade das coisas fazia esperar grandes coisas da realizadora. Em I Have To Buy New Shoes, dois estranhos encontram-se em Paris e partilham apenas o facto de serem japoneses no estrangeiro (ele um turista perdido, ela emigrante). Passam tempo juntos, vão se conhecendo e apaixonam-se assim que a hora da despedida chega. Protegida de Shunji Iwai (Halfway tinha sido escrito por ele e I Have To Buy New Shoes foi por ele produzido), Kitagawa parece ter uma fixação por renúncias e encontros românticos no limite da sua concretização. Nada que não tenha sido feito antes com outras nuances (a trilogia de Richard Linklater parece-me um bom exemplo disto) e diria que o problema maior aqui são os personagens, não porque sejam desinteressantes, mas porque há algo neles que impede a amargura (de querer evitar) a despedida. A belíssima Mio Nakayama e o simpático Osamu Mukai fazem um par curioso, mas a maneira como se relacionam é, talvez, demasiado aberta, confidente e afável para revermos no afastamento fatídico, a dor e a saudade de um amor bloqueado pelo espaço e o tempo. Talvez tenha sido essa a intenção de Kitagawa, isto é, lançar as bases de uma atracção que precisava apenas de mais tempo para ser confessa, mas para o espectador mesmo essa frustração não é totalmente evidente. Situamos os nossos personagens entre a amizade e a paixão, mas necessitávamos de situações e emoções menos ambíguas e mais urgentes que fizessem pender mais para o segundo lado da balança.



Jinx!!! (2013) de Naoto Kumazawa: *
As películas "românticas" de Kumazawa outrora eram mais sóbrias e não se rendiam a ideias fáceis e simplificações amorosas como se o universo filmado pertencesse, afinal, a um ideal sonhado e não houvesse menção dos problemas que determinam concretamente a dificuldade de nos completarmos emocionalmente. Rainbow Song, escrito pelo grande Shunji Iwai, era um exemplo inspirador de como o cinema de Kumazawa podia ter crescido tematicamente, seguindo esses trilhos de uma lucidez dramática bastante próxima do real e de sentimentos de perda do ente desejado. Quererá isto dizer que todos os filmes de amor só são criticamente aceitáveis se forem trágicos? Há também muita tragédia amorosa (especialmente japonesa) que não tem outro objectivo senão comover artificialmente o espectador que se depara com o enorme amor dos seus personagens no meio da adversidade (e suspiram: "como era bom que esse ideal fosse real!"). Por falta lucidez quisemos significar todos os ângulos que ficaram por considerar, todas as fugas e descrenças que tal sentimento também carrega, em suma, uma honestidade que nos permita identificar com o mundo representado e não aspirar a qualquer coisa que nesse mundo vemos como evidente e até secretamente desejável. Jinx!!!, como a esmagadora maioria dos filmes românticos, é um filme para sonhadores. Conta as aventuras de Ji-Ho uma estudante coreana de intercâmbio que trava amizade com uma colega japonesa, Kaede, e ensina-a a aproximar-se de uma paixão de escola, Yusuke. Por entre "coreografias" engraçadas e repetitivas cenas de aproximação, Ji-Ho lembrar-se-á de quem deixou na Coreia e, por momentos, revê toda a sua história no casal que pretende aproximar. "Jinx" acaba por ser a expressão que arranja para provar que "muitas coisas boas acontecerão se Kaede e ela se tornarem amigas", mas também faz referência ao déja-vu que lhe permitirá voltar para o seu país com os assuntos do passado resolvidos. Kumazawa continua a apostar no plano sequência para destoar o feeling televisivo que se apodera da estética do seu filme e algumas vezes consegue até aparar o melodrama algo comichoso que se vai instalando ao longo do visionamento. Jinx!!! é um filme para sonhadores que não querem acordar, ou é um filme para os sonhadores que querem dormir do mundo. Nada aqui é ofensivo, indigno ou até demasiado desonesto mas queríamos mais complexidade, queríamos estar mais "acordados".



Schoolgirl Complex (2013) de Yuichi Onuma: ***
Este filme partilha o título com uma série de álbuns de fotografias de Yuki Aoyama. Schoolgirl Complex de Aoyama era mais um objecto fetichista que versava sobre a obsessão japonesa pelas colegiais, as suas poses inocentes petrificadas em imagens voyeuristas que escondiam as expressões faciais das raparigas e revelavam, em ângulos despudorados, toda a sensualidade dos uniformes e dos corpos... Yuichi Onuma, que já em Nude tinha adaptado para cinema a auto-biografia de uma actriz pornográfica, desfaz-se completamente do material original e filma a intimidade e a descoberta sexual das suas protagonistas com uma dignidade em tudo contrária ao erotismo espiador de Aoyama. Aqui, definitivamente, contam mais os rostos, as vozes, as lágrimas e os sorrisos das raparigas do que qualquer ângulo mais atrevido das suas pernas ou saias. Por todo o filme ressoa, apesar de tudo, uma postura directa mas que se abstraí de juízos de valor, mesmo quando ao tema do crescimento se adiciona uma atmosfera homossexual consubstanciada em secretas paixões lésbicas que se confundem com amizade. Para Onuma, no entanto, o importante é o mundo das emoções e nunca assistimos à exploração sexista ou prazerosa desse universo homo-erótico. Para o realizador - e para as suas personagens - o amor e a atracção (porque apesar de tudo, Onuma não esquece a carnalidade) não escolhem sexos. Note-se a fantástica direcção de actrizes e os papeis muito convincentes de Yuko Araki e Mugi Kadowaki que dão vida às inquietações e sonhos da adolescência, período tão bem descrito naquele excerto citado de Osamu Dazai que suspende, nem que seja por pálidos momentos, toda a mágoa e os mal-entendidos de uma relação impossível. Uma boa surpresa.

01/10/14

Fragmentos de 2014/10/01



So Goes My Love (1938) de Yasujiro Shimazu: **
Uma pequenina amostra do que Yasujiro Shimazu era capaz. So Goes My Love, típica produção shomingeki da Shochiku, conta as dificuldades de um casal não aprovado pela família do marido e que está condenado a pensar no seu futuro. Shigeo, um escritor sem talento e sem trabalho e Minako, uma dona de casa devota e a única que leva o sustento para casa trabalhando num café à noite, vão sempre falando da impossibilidade de ficarem juntos. Ele, muito mais a favor da separação para o bem dela e ela, pouquíssimo a favor da separação, para o bem dele. Há algumas situações que vão intervalando esta insustentabilidade doméstica: o encontro de Shigeo com o tio, a entrevista de emprego armadilhada, a ida ao cinema com a irmã para ver Olympia de Leni Riefenstahl (que Shigeo diz ser aborrecido), a frustrada e cómica combinação do suicídio entre amantes, etc. Shimazu filma longas sequências, capturando o clima doméstico e os costumes da sua época sem, ainda assim, ir muito longe. Isso fica provado com o "final feliz" súbito, artificial e algo desinteressante.



Kiku and Isamu (1959) de Tadashi Imai: ***
No decorrer da História do Cinema Japonês muitos são os casos em que a raça negra surge como símbolo da ocupação americana. Evoco dois casos bem sucedidos dessa representação problemática: Black Snow de Tetsuji Takechi e The Catch de Nagisa Oshima, mas poderia também falar do sem número de produtos exploitation que subversiva e injustamente colocaram G.I afro-americanos criminosos, violadores, etc, como se os seus delírios selvagens (quase sempre foram representados como bestas sem caracterização ou personalidade) representassem afinal a dominação sem resposta de uma nação humilhada. Kiku and Isamu, com o seu espírito igualitário ainda que pouco idealista, situa-se nos antípodas das produções atrás referidas, aliás, o seu auto-financiamento prova que nunca poderia ter sido feita oficialmente com dinheiros de um estúdio. Ela parte do interior da comunidade mais tradicional para indagar os preconceitos raciais que nela existem, jamais recorrendo à imagem típica do visitante, do estrangeiro ou invasor. Kiku e Isamu, dois filhos mestiços de pai incógnito e de uma mãe já falecida, vivem com a avó no campo e, de acordo com o argumento fronteiriço da identidade, são tão japoneses como qualquer criança já que nasceram e foram educados como japoneses. No entanto, a fisionomia diferente e a cor da pele criam uma diferenciação imediata e a discriminação na escola e noutros lugares (veja-se a lúgubre cena da festa) parece ser inevitável dentro de uma comunidade tão pequena e fechada. A avó preocupa-se com o futuro das crianças, mas parece recorrer ao estigma feudal que ordena o seu despacho para outras entidades afim de ajudarem a família e eles próprios a longo prazo. É aqui que Tadashi Imai revela a sua crítica de costumes, comparando a situação complicada do reenvio de um dos netos para a América do Norte (mesmo não tendo qualquer relação com essa cultura) à venda de uma filha para um bordel. Kiku and Isamu fala, portanto, sobre discriminação mas fá-lo sem recorrer ao maniqueísmo típico dos filmes que abordam esta temática. Imai prefere analisar o tratamento dúbio de uma comunidade face "à estranheza desconfortável dentro do familiar" e neste sentido aponta para as raízes de um feudalismo que só se pode quebrar com amor.



Bloody Shuriken (1965) de Tokuzo Tanaka: ***
Primeiro de quatro películas realizadas somente em 1965 por Tokuzo Tanaka, Bloody Shuriken é mais um opus inspirado no universo estiloso de traições e matreirices que caracterizaram o filme de época japonês ao longo dos anos 60 e que iriam influenciar, por sua vez, os devaneios italianos no western. Relembramo-nos logo de Yojimbo quando aqui toda a intriga passa pela clássica situação do forasteiro no meio de uma cidade (quase fantasma) em conflito e dividida em facções distintas, desejosas de se anularem. Tanaka nunca transcende clichés mas usa todos os circuitos a seu favor, inclusive Raizo Ichikawa, completamente habituado a representar uma frieza simultaneamente ameaçadora e distante, como se nada o afectasse realmente (veja-se o seu mítico personagem Nemuri Kiyoshiro também para a Daiei). Outro destaque curioso - e que facilmente se consegue discriminar - é assinatura estrondosa do lendário Kazuo Miyagawa, director de fotografia responsável pelos Mizoguchis mais marcantes, algumas pérolas de Kon Ichikawa, Rashomon de Kurosawa e, para o caso mais relevante, Yojimbo, influência directa deste Bloody Shuriken como já se afirmou. Logo no primeiro plano conseguimos notar o génio de Miyagawa quando um cadáver boia num pantanal enquanto o nosso herói atira uma faca para os corvos que o devoram. Outros pormenores de destaque vão para as aparições do vilão, sempre pontuadas por uma música e enquadramentos que rememoram a saturação estilística dos duelos em Sergio Leone. Tudo o resto pode parecer previsível, mas com todos estes ingredientes a viagem só pode ser prazerosa.



The Heart (1973) de Kaneto Shindo: ****
Em 1955, Kon Ichikawa assinou aquela que é hoje considerada a adaptação mais fiel de Kokoro, célebre romance de Soseki Natsume publicado durante o ano de 1914. Nela, o realizador traçava todos os episódios da história original, incluindo as suas três partes distintas, e descrevia não só o sentimento agudo de culpabilização de sensei, o tal personagem pesado que vive no remorso fatal de ter "roubado" a amada do seu melhor amigo, K, mas também sublinhava mesmo que subliminarmente o período de transição histórico caracterizado por uma ausência perturbadora (a evaporação da figura paterna, a morte do Imperador Meiji, o nascimento do individualismo moderno). Ora, nesta terceira realização carimbada com o recomendável selo da Art Theatre Guild, Kaneto Shindo desembaraça-se da fidelidade literária de Ichikawa, por um lado transpondo para o seu tempo (os anos 70) a terrível história de amizade e traição e, por outro, cortando todas as acções e personagens que descentralizassem a gravidade desse trio (sendo a única excepção a mãe de I-ko, presença simpática porém mórbida, que parece querer casar a filha a toda a força). Na verdade, aqui só há cabimento para as danças macabras e quietas, sedutoras e mortíferas da juventude, como se Shindo melancolicamente levantasse a seguinte suspeita sobre o seu tempo: o egoísmo não nasceu agora, ele já está instalado há muito e diz respeito a algo mais imutável. Da mesma forma, jamais o diálogo inter-geracional é possível, só o monólogo existe. Eis a razão da escolha do voz-off solipsista em vez da correspondência entre gerações do original. Não há um sensei, figura paternal, que se dirige a um destinatário mais novo contando os seus erros em flashback, mas uma única geração de jovens que povoam os espaços como se só eles e as suas dúvidas e agruras existissem, aqui e agora. Veja-se, a este propósito, a maneira como Shindo filma as cenas exteriores: nunca ou quase nunca há figurantes e mesmo uma ruela na cidade ou um trilho campestre surgem com o mesmo grau de isolamento e desolação, aliás, tal e qual como o trompete arrepiante que vai dando vida (vai dando morte?) à banda-sonora introspectiva e solitária de Hikaru Hayashi. O que parecia uma simplificação preguiçosa e indevida do material original rapidamente se transforma num exercício claustrofóbico e asfixiante com o seu ritmo imprevisível e as suas distinções determinantes. Também Shindo prefere finalizar o seu drama na amargura de se permanecer vivo dentro do castigo imponderável do remorso e da culpabilização. Nada se aprende ou ensina nem nada se diz ou comunica (nem mesmo da maneira mais extrema). Só resta uma náusea calada que permanece a despeito de tudo.



The Ballad of the Sea of Genkai (1986) de Masanobu Deme: **
Tinha apenas visto dois dos filmes de Masanobu Deme: Okita Soji, um bio-pic raro sobre o lendário espadachim do Shinsengumi com momentos de alguma genialidade e Heaven Station, uma tragédia de amores proibidos protagonizados por uma bela e um monstro. Se essas duas produções eram dramas acirrados, The Ballad of the Sea of Genkai é uma comédia ligeira com tantos "pequenos episódios" que se torna confusa e perde rapidamente o seu foco. Começa por colocar a sua protagonista, Yuki, à caça do seu desaparecido marido, um empresário abastado que deixou imensas dívidas e um filho de uma relação ilegítima. Por entre encontros inusitados (claramente exagerados e cómicos), Yuki vai parar à cidade natal de Kitakyushu onde reencontra velhos conhecidos, nomeadamente um amigo de infância que nutre uma velha paixão por ela, e envolve-se com a máfia local que pretende destruir o bairro onde vivia e um velho cinema para instalar um complexo de novos edifícios, continuando, no meio disto tudo, no paradeiro do burlão escapulido. Com duas horas e quinze minutos, o exercício de Deme facilmente se desequilibra com tanta coisa a acontecer (e afinal, com tão pouca coisa significativa a retirar) e mesmo o seu ambiente vai permitindo certas mudanças súbitas de ritmo (filme yakuza, sátira, até um número musical deveras "eighties") que mesmo funcionando certas vezes vão desgastando a atenção e o investimento do espectador. Tirando a aparição de Toshiro Mifune como o inofensivo chefe yakuza, o que mais me surpreendeu aqui foi a energia tão particular de Yuki, uma espécie de heroína dos filmes de Juzo Itami avant la lettre (relembre-se que Taxing Woman estreou em 1987 e baptizava a protagonista feminina itamiana que, no seguimento da sua carreira, apenas iria abandonar pontualmente). Sayuri Yoshinaga, à semelhança da Nobuko Miyamoto de Juzo Itami, encarna uma mulher com traços de personalidade masculinos (até o cabelo curto e o desinteresse sexual põem em cheque a imagem sexista do feminino) e é a única personagem capaz de resolver as coisas, sacrificando-se mas usando sempre a inteligência.



The Thousand Year Fire (2004) de Naoki Segi: **
É conhecida a predisposição japonesa para o cinema "dos cinco elementos" quando a trama passa pelo período de descoberta e perda que todos os jovens conhecem a uma certa idade. Já o último filme de Naomi Kawase, Still the Water (entre tantos outros) aplicava brilhantemente esta obsessão temática pela surdina contemplativa da natureza contraposto ao sentimento de confusão e tristeza dos seus personagens, sempre à descoberta, sempre envolvidos num período turbulento de transição pessoal. Com efeito, a película de Naoki Segi é até demasiado escassa no desenvolvimento das personagens já que confia absolutamente nessa espécie de revelação mística que os espaços naturais conferem (as nuvens, o fogo, o oceano que representa a morte do pai do protagonista - através da perda do telemóvel na água - e seu o renascimento depois do torneio de natação). É pena que as personagens estejam tão indefinidas ao ponto das suas emoções se tornaram algo abstractas e apoiadas em fórmulas, encontrando-se sempre sustentadas pela magnífica paisagem em redor, mas pouco mais do que isso. The Thousand Year Fire é, como todos estes filmes, místico, intimista e silencioso, mas já vimos melhor.



Hospitalité (2010) de Koji Fukada: ***
Apesar das minhas pesquisas e dedicação relativas à emergência de novos talentos no cinema japonês, este Hospitalité do virtualmente desconhecido Koji Fukada escapou completamente ao meu radar. E que boa surpresa! Aparentemente um guia, em poucos passos, de como nos podemos sentir estranhos dentro da nossa própria casa, o filme trata os seus temas de forma, ousaríamos dizer, narusiana na medida em que usa o cepticismo e a desconfiança nas relações humanas para desfiar o drama doméstico e as ordens imperturbáveis a ele associadas. Se Naruse, no entanto, não precisava da família disfuncional para desconfiar e depois aceitar todas as vicissitudes relativas ao matrimónio ou às uniões de facto (pondo em cheque a lenta rotina que constitui a vida a dois), Fukada tem de recorrer a famílias dissolvidas (logo em construção) e à presença de um conhecido, mas estranho ao seio familiar, que semeará, com pompa e circunstância, o caos. Há muito tempo que não víamos um cineasta interessado no tipo de humor que nasce de um certo cinismo em relação aos costumes culturais e, até, às simples normas de boa educação. Hospitalité é um filme de hospitalidades frustradas (a última cena hilariante reduz ao absurdo a simpatia postiça e social que não sabe dizer não) que vive das suas situações insólitas e dos seus personagens, a dois tempos, relacionáveis e imperfeitos (e é a sua imperfeição que os torna relacionáveis).



Ramen Samurai (2011) de Naoki Segi: *
Para quem esperava enxergar aqui, mais uma vez, os poderes miraculosos (eróticos, sociáveis, profiláticos, etc, etc) da culinária - e como não recordar Tampopo de Juzo Itami que abria com aquela mítica cena sobre a arte de comer ramen? - este outro filme de Naoki Segi prescinde dos pretéritos e da loucura descomedida desse seu complexo predecessor gastronómico e encena uma intriga demasiado banal com recorrência excessiva e exasperante aos flashbacks. Uma coisa é certa: com apenas dois filmes vistos, Segi interessa-se bastante pela temática do pai ausente e no modo como os personagens completam ou complementam essa ausência: em The Thousand Year Fire, Satoshi Sugita com apenas onze anos perdia o pai de forma completamente abrupta e resguardava-se no silêncio dessa perda e ao telemóvel que continha a sua última mensagem, em Ramen Samurai (em que a comida apenas serve de pretexto) Hikaru resolve, com o apoio da mãe, tomar as rédeas do ofício do defunto pai e recriar a sua receita famosa de tonkatsu (para quem não sabe, trata-se de uma deliciosa sopa de massa e carne de porco). Quase toda a película se passa num longo flashback recriando episódios do negócio do pai enquanto Hikaru tenta, no presente, dominar a arte (infelizmente pouco mostrada) de cozinhar ramen enquanto tenta, ao mesmo tempo, revitalizar o bairro desprovido do comércio ambulante de sopas. Resta dizer que nada aqui se destaca grandemente: nem personagens, nem situações, e ficamos a perceber mal o papel que a cozinha pode ter na vida de quem a faz e de quem a recebe. Ramen Samurai tem os defeitos de uma produção televisiva, confiando muito mais na unidimensionalidade da trama e na acumulação de cenas episódicas do que no desenvolvimento devido dos seus temas e motivações.



The Little House (2014) de Yoji Yamada: ***
Com 83 anos, Yoji Yamada parece votar-se, nos seus últimos filmes, à arte da recordação. Kabei: Our Mother, tal como este The Little House, lembrava os tempos austeros da Segunda Guerra Mundial e tanto Younger Brother como Tokyo Family, mesmo situando-se no tempo presente, eram recriações (mais ou menos conseguidas, mas isso não importa) de filmes clássicos (um de Kon Ichikawa, outro de Yasujiro Ozu) e perpassava neles uma nostalgia inquestionável. Em The Little House, porém, a arte da recordação é ainda mais explícita pois faz parte integral da narrativa. Aquando do funeral da idosa Taki, o seu sobrinho Takeshi descobre a auto-biografia que ele próprio tinha incitado a tia a  escrever. Taki, que nunca se casou, conta nos cadernos como foi parar à casa de um fabricante de bonecos e explicita, ao pormenor, como era a relação com a sua patroa, a bela mas infeliz Tokiko. Ao longo dos relatos e das lembranças da tia não deixa de ser interessante a maneira como o sobrinho questiona certos "idealismos", contrapondo com a cronologia estanque de acontecimentos supostamente mais marcantes e sérios. Na boca de vários personagens (no passado e no presente) ouvimos que os tempos não eram fáceis e vivia-se uma instabilidade desconcertante, porém Taki (e Yamada) não deixa de sublinhar que os habitantes da História não são muitas vezes os seus protagonistas, de tal maneira que era possível conhecer a felicidade em tempos contrários a ela. Apesar disso, The Little House é um conto sobre adultério numa sociedade fechada e vive sobretudo das prestações cuidadas (nomeadamente Takako Matsu como Tokiko e a habitual yamadiana Chieko Baisho) e do milimétrico trabalho de câmara, rígido formalismo capaz de excepcções quando o drama assim o permite. O último troço do filme (talvez extenso demais) acaba por funcionar pois representa a procura da memória pela geração mais nova, provando que a memória como fenómeno emocional não é algo exclusivo dos velhos.