20/08/15

Fragmentos de 2015/08/20



I Want to Be a Shellfish (1958) de Yoshihiko Okamoto: ***
I Want to Be a Shellfish (1959) de Shinobu Hashimoto: ****
Baseado nas memórias do prisioneiro de guerra Tetsutaro Kato, em 1958 era estreado um filme rodado exclusivamente para televisão que juntava um cast de luxo e causava sensação pela crítica explícita, ou se quisermos, pela paródia trágica feita aos tribunais de guerra. Com um argumento de Shinobu Hashimoto, um dos mais talentosos argumentistas do pós-guerra, I Want to Be a Shellfish narrava no pequeno ecrã o triste destino de um barbeiro de província, Toyomatsu Shimizu, que era alistado para a guerra e, devido à sua inaptidão para o cargo, era obrigado pelos seus superiores a matar um GI capturado pelo exército japonês. Sabemos mais tarde que nem essa ordem conseguiu cumprir na totalidade (rasgando toscamente o braço com a baioneta), no entanto, quando a nação vencida sucumbiu e quando os vencedores instauraram a justiça forçada aos perdedores, um conjunto de militares americanos reabre o processo e detêm o barbeiro no seu local de trabalho, diante da mulher e do filho, culpando-o de "crimes de guerra". De azar em azar, Shimizu, japonês o suficiente para nem contar a história toda em tribunal com medo da desonra, vai vendo a sua pena aumentar até chegar à morte por enforcamento. Entre outras coisas, o filme fala-nos de um inocente que estava no lugar errado na hora errada, mas também denuncia o próprio conceito de responsabilidade e de "crime de guerra", uma noção sempre denunciada à posteriori e que nunca se desliga de um ajuste de contas levado a cabo pelos vencedores (como é que um tribunal americano pode decidir com inteira justiça crimes contra americanos?) As amarguras kafkianas de Toyomatsu causaram tanto impacto e discussão que, no ano seguinte, o próprio argumentista levava ao grande ecrã a mesma história, estreando-se também na realização. Se os dois filmes partilham do mesmo argumento (por isso, existem muitas tiradas que permanecem iguais), há ligeiras modificações que permitem tonalidades dramáticas diferentes. A versão de Yoshihiko Okamoto é mais alarmista e imediata - confirma-se isso logo no uso da música e no genérico com imagens de arquivo do julgamento de Hideki Tojo e a comunicação da pena capital -, enquanto que Shinobu Hashimoto preferiu uma certa lentidão que, a vários passos, torna o destino do protagonista ainda mais desesperante, cozido a lume brando enquanto espera pela sentença. A primeira versão, talvez mais dramática, vitimizava mais Toyomatsu, pois descrevia-o como mais ingénuo e provinciano (e é muito curioso notar essas diferenças na prestação dupla de Frankie Sakai). Preferimos ligeiramente a versão cinematográfica que resolveu não criar uma empatia imediata com o espectador, mas tenta progressivamente aproximá-lo à medida que decorre o processo irrevogável e os sentimentos de desespero e impotência vêm à tona. Numa e noutra leitura, todavia, comovemo-nos com o testamento em off de Toyomatsu, momento poético que dá nome ao título e que discorre sobre os infortúnios de ser humano. "Se eu pudesse reencarnar, preferia ser um marisco perdido no oceano."



August Without the Emperor (1978) de Satsuo Yamamoto: **
Satsuo Yamamoto deveria ter ficado para a história como o realizador mais abertamente político que permaneceu toda a vida empregado nos grandes estúdios japoneses. Este seu épico de quase duas horas e meia reflecte as inclinações pessimistas, visíveis sobretudo no crepúsculo da sua carreira, onde não há espaço para virtudes e onde se nota especial deleite em denunciar os vícios e o cinismo daqueles que detém o poder. August Without the Emperor poderia até ser classificado de fantasia esquerdista, não porque aplica o mundo das ideias e das utopias a uma situação real, mas porque constantemente equivale o poder, qualquer tipo de poder, a um pecado, fazendo uso de uma ficção abstracta de tão inverossímil e retirando as suas conclusões circularmente: um conjunto de jovens militares conservadores decide organizar um Golpe de Estado à democracia japonesa, sequestrando, entre outras coisas, um comboio com destino a Tóquio. Tendo em conta o derrube do governo chileno pelo exército cinco anos antes (e que também encontra ecos na narrativa do filme e na insossa prestação do seu protagonista), fica por saber se Yamamoto temia uma insurreição semelhante no país que também há tão pouco tempo tinha assistido ao assalto e consequente suicídio de um Yukio Mishima vestido com o uniforme da milícia privada tatenokai. O que sabemos - e o que resulta irónico - é que o velho esquerdista acaba por encontrar mais empatia na ingenuidade dos conservadores revolucionários do que no fascismo mascarado que o combate. Essa democracia de amizades e interesses de auto-preservação duvidosos vai sendo revelada (progressivamente como num filme de vampiros) nas mais altas esferas da sociedade e que chega a incluir - surpresa! - o primeiro ministro. São essas mãos invisíveis que fazem a mais vil guerra nos bastidores mas em público defendem a paz e os valores democráticos que Yamamoto põe a nu, exprimindo, a partir daí, uma forte reprovação pelas elites, com passado obscuro ou sangrento, que governa(va)m o seu país. Apesar de todos os defeitos, de todos os maniqueísmos, de todas as limitações dramáticas do teórico da conspiração (estranho, pois trata-se de um filme de alto orçamento), o modo profundamente pessimista como August Without the Emperor termina é digno de antologia. Sem heróis vivos para contar a história, a visão transmitida acerca da paz podre democrática, que é afinal pax romana, não podia ser mais negra e perturbante.



The Boy Made in Japan (1995) de Ataru Oikawa: ***
Lamentável que Ataru Oikawa tenha virado especialista em exercícios J-Horror e nunca mais tenha demonstrado a vitalidade criativa que esta primeira obra transpira. The Boy Made in Japan possui, de facto, todas as qualidades de uma carreira promissora. Ela traduz uma visão descomprometida sobre a juventude à deriva desses anos 90 perdidos que, de certa maneira, representa o lado negro das sociedades de abundância. Filme de travessias perigosas pelo submundo e de flaneries românticas pela cidade, The Boy Made in Japan junta duas almas sem lar que rumam em direcção ao abismo: Yamato, um rapaz traumatizado que pode ter um passado criminoso e Kaoru, uma jovem com problemas cardíacos que trabalha, com a inconsciência de uma criança, na indústria do sexo e da droga. Os dois vão até ao fim da noite, armados com uma pistola, fugindo não se sabe bem do quê. As mortes acumulam-se, as memórias vêm pedir os dividendos e no estilo sepulcral que tanto caracteriza as primeiras visões cinematográficas de Takeshi Kitano, dão-se os últimos suspiros junto ao mar, na praia simbólica, sacra e repousante a onde se regressa para nunca mais voltar.



Open House (1998) de Isao Yukisada: ***
A primeira longa-metragem de Isao Yukisada incide sobre as temáticas fundamentais da solidão, falta de comunicabilidade e da alienação urbana, temas muito caros a uma certa Nouvelle Vague taiwanesa e a dois cineastas em particular, Edward Yang e Tsai Ming Liang. Mostrando os bloqueios emocionais de duas vizinhas que, salvo erro, apenas se encontram uma vez ao longo da película, Yukisada filma os espaços urbanos com as mesmas cores exóticas e opressivas (a fotografia é, sem dúvida, o ponto alto) dos seus "irmãos" taiwaneses e tem também a mesma competência para transfigurar quartos e divisões privadas em tocas, extensões ou resguardos dessa mesma paisagem de confrontos. Por um lado, temos Mitsuwa, uma modelo desmotivada que trava conhecimento com Tomonori, um rapaz sem casa e destino, por outro, Yuiko, recém divorciada, enclausurada domiciliar que desenvolve uma estranha alergia e comichão (por falar de comichões, recordam-se de The River de Ming Liang ou The Bedroom de Hisayasu Sato?) causada pelo stress e pelo isolamento. Na fronteira da neurose, encontramos novamente estes personagens que deambulam pela cidade e rememoram, não raras vezes, as existências que o cinema elegeu para desempenhar o sôfrego papel de habitante urbano numa sociedade sufocante e fechada em si mesma.



Sunflower (2000) de Isao Yukisada: **
Teruaki mais um grupo de amigos recebe a notícia inesperada da morte de uma colega de escola. Todos vão ao velório na terra natal e relembram as coisas que fizeram juntos e a personalidade algo indecifrável da falecida Tomomi. Juntamente com outros convidados montam as peças do puzzle e perguntam-se se o incidente no mar que lhe ceifou a vida poderia ter sido suicídio. As questões ficam por responder na praia enquanto riem... Sunflower, a segunda longa-metragem de Isao Yukisada tenta enveredar mais pelo estudo de personagem do que a primeira, mas a estrutura flashback-elucidação rapidamente fica gasta, se bem que não podemos esquecer momentos mais inspirados onde a memória se presentifica diante de Teruaki, nesse momento onde ele recorda, como se nunca tivesse vivido, o seu primeiro amor à chuva com os sapatos de Tomomi na mão. Tirando um ou outro momento, Sunflower é somente mais uma razoável versão do filme onde amigos de infância se reúnem nos escombros da memória para resgatarem a nostalgia ou aperceberem-se dos erros do passado.



The Terminal Trust (2012) de Masayuki Suo: **
Seis anos de silêncio separaram The Terminal Trust de Even So, I Didn't Do It, mas nos dois filmes, Masayuki Suo parece comungar da mesma perspectiva essencial ainda que acabe por filmar dois relatos bastante diferentes (o segundo era um drama de tribunal, o primeiro um drama hospitalar). Em ambos, todavia, pretende-se relembrar que a lei dos homens é somente isso, uma lei falível que pode esbarrar e condenar injustamente as acções inocentes ou inimputáveis dos personagens: se Even So, I Didn't Do It descrevia o exaustivo processo judicial de uma falsa acusação de assédio sexual, já neste Terminal Trust uma médica fica debaixo de fogo jurídico por apagar a vida de um paciente em estado terminal que lhe tinha confessado o desejo de morrer se alguma vez ficasse inconsciente. Claro que a eutanásia é um tema bastante delicado que não encontra consensos e, talvez por isso, Suo não o traz à coacção sem antes desenvolver o estado de espírito depressivo da médica Ayano Orii e insistentemente dar a conhecer não só a experiência traumática do paciente Shinzo Egi como a relação de mútua confiança que desenvolvem e ironicamente os salva dos abismos surdos da rotina. A sobriedade no tratamento desta relação extra-profissional pode ser chocante e desconfortável para os que concordam com a tese de que a morte medicamente assistida é sempre um assassinato, mas mesmo os que entendem toda a complexidade humana desta trama podem ficar resfriados pelo ritmo pausado e pela inclusão de algumas cenas que desviam a atenção principal. Definitivamente, o que resulta menos interessante é a confissão da médica após um interrogatório policial desnecessário de tão detalhado. Masayuki Suo desejava tanto confrontar a injustiça da lei rígida com a ética pessoal e profissional da médica que substitui a emoção das cenas com o paciente por uma forma predominantemente pregadora.



Fuku-chan of FukuFuku Flats (2014) de Yosuke Fujita: ***
Tanta comédia independente abundando no mercado que parece ter esquecido o poder galhofeiro das elipses torna a segunda-metragem de Yosuke Fujita um visionamento recomendável com prestações adoráveis e um sentido de humor, baseado nos silêncios e no não dito, de que já tínhamos saudades. Muito do charme da película deve-se também a Fuku-chan, um gordinho tímido que volta a encontrar, num contexto completamente diferente, a rapariga que o humilhara quando era um estudante. Fuku, sempre sorridente mas recluso das feridas antigas, é surpreendentemente interpretado por uma mulher, Miyuki Oshima. O seu trabalho de transformismo resulta muito bem, pois à virilidade física do nosso fabricante de papagaios de papel junta-se sempre uma fragilidade e uma inocência que tornam o personagem extremamente relacionável. Tal e qual como a metáfora do construtor civil que se revela um dotado cantor enka, a película de Fujita fala sobre as surpresas que as aparências resguardam e, embora possa parecer um lugar comum, é notório como a aparente estranheza (até fealdade) dos personagens que rodeiam Fuku acabe por tornar-se tão prazerosa, confortável e familiar para o espectador. Com um final talvez demasiado optimista, seria injusto classificar Fuku-chan of FukuFuku Flats uma película cínica ou enganadora, pois o seu poder reside não nas conclusões mas no caminho que levamos até elas. Levo daqui, portanto, um constante sorriso e personagens (os sorrisos contagiantes de Fuku, a fotógrafa Chiho, o seco Shimacchi, o genial mas sentimental Mabuchi, até o arrogante cozinheiro de caril!) que não cairão no esquecimento.



100 Yen Love (2014) de Masaharu Take: ***
O cinema japonês tem uma longa tradição de filmes sobre boxe ou nos quais o boxe desempenha uma função transfiguradora. Senão veja-se: em Kids Return, o boxe, juntamente com a delinquência yakuza, era a única via existencial possível para Masaru e Shinji, forasteiros da escola e da vida padronizada; em Tokyo Fist, o desporto surgia na sua dimensão mais primitiva, juntando-se ao erotismo masoquista e à celebração pagã da carne; em The Boxer, pugilista, treinador e personagens estranhos à la Terayama conviviam nos mesmos espaços e partilhavam o mesmo universo transgressivo... Em todos os filmes, o boxe representa o caminho alternativo para as almas inconsoladas e inconsoláveis, as almas que foram traídas pelo mundo e procuram uma lição em cada ferida, uma carícia em cada soco. Nessa senda, 100 Yen Love é o filme mais recente que se enquadra nesta visão contra-corrente do boxe, porém a ela não se reduzindo. Sakura Ando (outra vez ela!) interpreta brilhantemente uma hikikomori que sai da concha em que se enfiou, conhece um amor estranho por um pugilista enquanto trabalha numa loja de conveniência e é cortejado por um colega. O espectador é conduzido ao processo de desilusão e ofensas que deveria ter condicionado, em primeiro lugar, a fuga da realidade que Ichiko anteriormente adoptara, mas no meio da falência só agora o boxe resta, essa nação invisível a que se regressa. Nesse momento, Masaharu Take brinca com as regras do género (perfilhando até a sua linguagem cinematográfica: montages, slow-motions, etc.), fazendo-nos acreditar, ainda que por momentos, numa gloriosa carreira e numa vingança digna da nossa heroína incomum. Ela não prescinde, todavia, daquela ideia tocante segundo a qual no ringue se luta contra a própria vida independentemente do resultado, quer dizer, que a magia do boxe resume-se somente a esse vai-e-vem entre os socos infligidos e os abraços dados no meio dos hematomas e do sangue enquanto se exorcizam fantasmas. Lúcido, quer no argumento, quer nas interpretações (Sakura Ando é a reformuladora das protagonistas femininas), 100 Yen Love é, certamente, um dos melhores filmes do ano.



Attack on Titan (2015) de Shinji Higuchi: **
A transposição para o grande ecrã do manga fenómeno de Hajime Isayama não oferece mais do que já se esperava: um ambiente pós-apocalíptico, meio medieval, meio celta, em que temos o sentimento de que a humanidade não só está em constante perigo mas é fraca na sua essência e, como não podia deixar de ser, à impotência agigantam-se as paradas horrorosas e lentas de titãs famintos que caçam as suas presas com um automatismo e falta de inteligência assustadoras que só adiciona em desespero o estado extremo de indefesa das suas vítimas. O primeiro (de dois) capítulos faz um trabalho sério de adaptação, tendo apagado pormenores mais escabrosos (principalmente aquando da primeira "invasão") mas mantendo ainda assim uma aparência negra, nebulosa e disforme, imprópria para consumo dos mais novos e, ainda assim, fiel ao original em termos puramente imagéticos. Podemos elogiar os efeitos especiais (aprumados e nada embaraçosos, especialmente para um filme japonês), mas o que resta em termos estritamente narrativos, entre titãs e soldados aprendizes, é um sentimento algo incómodo de celeridade, como se a adaptação cinematográfica não passasse de um longo trailer sem tempo para desenvolver convenientemente os personagens e se entretesse apenas com a novidade dos gigantes acéfalos, cenas de acção longuíssimas e outros dramazinhos pouco expressivos entre humanos. Talvez possamos culpar o manga original neste departamento que sempre aliou a estética shonen a uma premissa infernal e misantropa, porém fazia-se valer do desespero que causava nos seus leitores por nem sempre obedecer às regras mais comuns de como construir uma história. Infelizmente, Attack on Titan para cinema e com actores de carne e osso, nunca consegue criar a experiência total do original, pois a parte humana (aquela que nos deveria suscitar mais reacções) é a menos interessante, a mais estereotipada, a mais devedora de uma estética que não pertence à realidade e resulta, por isso mesmo, forçada. Só através da mediação monstruosa (só através da tensão morte/vida) se recaptura o interesse, mas nenhuma grande obra se constrói apenas com essa dualidade.

11/08/15

Fragmentos de 2015/08/11



A Farewell to Jinu (2015) de Suzuki Matsuo: *
Após oito anos de hiato detrás das câmaras, o actor tornado realizador Suzuki Matsuo não se presta a grandes elogios com A Farewell to Jinu. Enquadrada no seu estilo, isto é, comédias que confiam mais na atmosfera do que nos gags, esta película na qual Ryuhei Matsuda interpreta um ex-bancário que desenvolve uma fobia pelo dinheiro físico e se retira para uma zona rural no Norte do Japão, convencido que consegue auto-sustentar-se sem o vil metal, apresenta mudanças súbitas de tom e nunca se solidifica em termos narrativos, nem tão pouco consegue transmitir algo marcante que não esteja condicionado por alguma aleatoriedade. O humor nunca é hilariante mas entretêm e estaríamos a mentir se disséssemos que alguns momentos (as cenas da "alergia ao dinheiro", por exemplo) não são bem conseguidos. Se o tom surreal e "out of character" assenta bem aos comportamentos dos aldeões e desperta alguns sorrisos, ele também distancia e impossibilita uma relação de proximidade que poderíamos desenvolver com eles e através deles - o que vindo do realizador de Welcome to the Quiet Room, filme com personagens tão memoráveis, não deixa de ser estranho. A Farewell to Jinu, com o seu tema de êxodo urbano também tão sobre-explorado pela mais recente cinematografia japonesa, não consegue ser mais do que uma pequeno percalço na carreira do seu realizador. 



The Lion Standing in the Wind (2015) de Takashi Miike: 0
Ao ler a sinopse de Lion Standing in the Wind era impossível não remeter a nossa memória para o injustamente desconhecido The Bird People in China, a derradeira prova que o percurso de Takashi Miike, desde o princípio, sempre foi feito de excepções e que nem só de sangue e vísceras se fazia o seu cinema. Todavia, é essa comparação entre duas películas aparentemente tão próximas (tão afins de explorar o Terceiro Mundo) que estabelece a diferença radical entre o realizador com assinatura e o empregado de estúdio, ou se quisermos ainda ir mais longe, entre a verdade das emoções, canalizadas pelo estilo cinematográfico e a triste manipulação/distanciamento de quem procura reacções uniformizadas da plateia. Não é que Lion Standing in the Wind seja inteiramente cínico em relação à sua frágil narrativa que conta as peripécias de um médico japonês que viaja para o Quénia nos anos 80 e trata de crianças num campo de refugiados devastado pela guerra, mas toda a experiência de visionamento reveste-se de contornos messiânicos e um estilo insistentemente sentimental que transforma rapidamente o humanismo automático do doutor Koichiro Shimada numa representação demasiado santificada para ser de carne e osso, apesar do filme pretender ser "terra-a-terra" na abordagem psicológica e usar erradamente a chancela: baseado numa história verídica. Com isto não duvidamos que a abnegação extrema, até a santidade, possa existir no mundo, mas visto como ficção, montada numa estrutura lógica de estímulo-reacção, é óbvio que encontramos aqui uma tentativa de oferecer ao grande público lágrimas numa bandeja, esquecendo conferir qualquer complexidade de carácter a não ser a de superioridade moral, inexplicada e inexplicável. Até mesmo a cansativa estrutura de flashback dentro daquilo que já é um flashback (e também o paralelo entre a situação no Quénia e o incidente nuclear de 2011 parece forçar uma compaixão imediata) prova o "culto da personalidade" onde cada personagem relembra a bondade que não pertence a este mundo. Ao contrário do já referido The Bird People in China onde o exotismo oriental levava os personagens (e nós) a querer defender e pertencer ao lugar mágico das civilizações recônditas, em The Lion Standing in the Wind o excessivo melodramatismo (que acaba em martírio, como seria de esperar) impede a descoberta e a transformação. Tal é, paradoxalmente, o problema do cinema que filma ideais como estatuetas morais. 



April Fools (2015) de Junichi Ishikawa: *
Escrito ao longo de alguns anos, o argumento de April Fools não avança nada em relação a um modelo narrativo que, a despeito da popularidade na década passada, até julgávamos estar desactualizado. Várias histórias de vida cruzam-se no dia 1 de Abril (data em que não se leva a mal mentir), provocando encontros fortuitos que unem como uma malha os diversos personagens: uma "falsa" grávida organiza um sequestro num restaurante para desmascarar o amante playboy, um casal idoso faz-se passar por realeza, um mafioso rapta a filha e faz de conta que a relação de paternidade não existe, um polícia interroga uma vidente charlatã, entre outros exemplos mais fugazes. Todo o filme é um vai-e-vem entre diferentes segmentos e se esta divisão poderá relembrar excelentes filmes como Survive Style 5+, também poderá muito bem recordar o estilo piroso de um certo género de comédias românticas que está tão preocupado em ligar organizadamente todos os personagens que força o encanto natural em virtude de uma mensagem "feel good" demasiado óbvia para ser significativa. Junichi Ishikawa e Ryota Kosawa, realizador e argumentista estreantes no cinema mas aclamados na televisão, até podem ter construído um filme remotamente interessante sobre o poder benéfico e humano das mentiras e do "faz de conta" que a imaginação proporciona, mas visto como um todo, April Fools é ainda demasiado artificial, demasiado postiço para o vermos sem reticências e sem afastamento.



Parasyte - Part 2 (2015) de Takashi Yamazaki: **
Tínhamos vaticinado o possível desgaste do segundo e final capítulo da adaptação do manga de Hitoshi Iwaaki para o grande ecrã e os presságios confirmaram-se ainda que parcialmente. A primeira parte, dissemos anteriormente, tinha surpreendido bastante pela gestão entre fidelidade ao original e condensação óbvia de uma obra gráfica que excede em tempo e peripécia as potencialidades, acima de tudo, diacrónicas do cinema. Também a Part 1 fazia valer-se como recomendável estudo de personagem, pois representava a velha ideia do herói solitário que perde (quase) tudo à sua volta, em especial o instinto de humanidade, contraposta à lei natural dos monstros, colocando-se no final colocava frente a frente com uma ameaça ainda maior, uma organização inteligente de Parasitas que perguntavam pela melhor maneira de se misturarem ou conquistarem a raça humana. Neste tipo de dípticos cinematográficos, quase sempre os preliminares são melhores do que o coito (perdoe-se a metáfora) e se encararmos o primeiro capítulo como um preliminar, como introdução a algo que promete ser maior e melhor, a concretização do segundo capítulo frequentemente traz um sentimento apressado e tosco como se realizadores, actores e personagens tivessem ficado perdidos algures na pressão da grande escala, no épico adoptado e forçado. Neste sentido, Parasyte - Part 2 quando falha, contradiz-se, quer no ritmo, quer até nas motivações dos personagens ou em certos dilemas morais que nunca chegam a ficar inteiramente esclarecidos. Takashi Yamazaki parece estar demasiado assustado com a possibilidade de fragmentar a acção e afastar-se das várias portas que é obrigado a fechar e, portanto, cose as pontas soltas à sua disposição enquanto a vitalidade da película está, na maior parte das vezes, a rebentar pelas costuras. Isto não quer dizer, todavia, que não haja aqui bons momentos que, mais uma vez, vão de encontro ao espírito do original. Por exemplo, as conclusões sobre o género humano (aqui assumidas como uma subversão de poder em relação ao primeiro filme, pois também os humanos passam de presas a predadores) de Reiko, a parasita intelectual que experimenta ter um filho para ver quão humana se torna, são o ponto alto de uma narrativa que bastantes vezes deixa os dois personagens principais, Shinichi e Migi, para segundo plano. Talvez por também confiar mais no CGI e nas cenas de acção do que o capítulo anterior, ficamos com a impressão que imageticamente este é também um filme mais frio e menos relacionável do que o primeiro.



Kakekomi (2015) de Masato Harada: **
Masato Harada, talvez o mais "americano" dos realizadores japoneses, nunca tinha mergulhado no jidai-geki, género que apesar das esporádicas tentativas de reabilitação recentes, ainda está em decadência. Por falta de interesse ou reconhecimento das suas limitações enquanto imitador, o realizador de Kamikaze Taxi não seguiu academicamente as fórmulas que tornam o género hoje tão reconhecível e que tristemente tem vindo a resumir-se à espiritualidade zen do guerreiro e à abnegação feminina no amor. Portanto, em vez de samurais decidiu oferecer-nos as mulheres assustadas do Período Edo, especialmente aquelas que sofriam com casamentos infelizes e precisavam de se esconder dos abusos, já que o divórcio (coisa menos rara do que à primeira vista pensamos) só podia ser efectuado com uma carta consentida pelo marido e com uma espécie de moderador. O Templo Tokeiji que acolhia as esposas desamparadas era também conhecido como o templo do divórcio precisamente porque ali as leis dos homens não tinham poder e o retiro espiritual das mulheres, aliado à dedicação em viver em comunidade com regras estrictas, quase sempre forçava os maridos a assinar o documento do divórcio. Kakekomi, com preocupações feministas muito mais eficazes do que Blue Stockings (uma película de Harada que não se livrava da frigidez psicológica, como se os personagens fossem meros autómatos da História), não traí a sua proposta porque apresenta-nos um punhado de mulheres por quem nutrimos simpatia e que permanecem, apesar de poderem ser vistas como arautos da igualdade de sexo, ainda mulheres. Talvez o problema maior do filme - e que na realidade, não o deixa voar mais alto, mesmo abstraindo-nos da fotografia cuidada e das interpretações convincentes - seja a dispersão narrativa e a presença masculina de Shinjiro, um aprendiz de médico, que acaba por roubar tempo e concentração dramática às mulheres no templo. Diz-se que Harada teve de cortar duas horas da versão original e mesmo a que ficou afigura-se como demasiado intrincada, excessivamente desviante e ainda longa demais. 



The Emperor in August (2015) de Masato Harada: **
Numa sessão de Q&A no The Foreign Correspondents Club em Tokyo que precedeu a ante-estreia de The Emperor in August, Masato Harada começou por não responder directamente à questão essencial: qual a justificação para levar a cabo um remake de uma obra tão definitiva como Japan's Longest Day de Kihachi Okamoto? Com algum atraso na resposta, Harada tentou explicar que antes sequer de haver filme, havia um romance escrito por Kazutoshi Hando (Koji Yakusho, que também estava presente, corroborou dizendo que o seu velho camarada de profissão sempre vai às fontes históricas antes de filmar) e que a razão mais determinante para ressuscitar uma obra com quase 50 anos era humanizar a figura do Imperador, figura que na versão de Okamoto e na maior parte do cinema japonês tinha sido relegada para segundo plano por motivos de pudor. Harada queixou-se da recusa dos close-ups nos diversos actores que nos últimos anos interpretaram Hirohito e ainda mencionou a representação debilitante do Imperador em The Sun de Aleksandr Sokurov como uma reductio ad absurdum que confiava demasiado em tiques e frases feitas. A verdade é que a benevolência e a compaixão da figura imperial em The Emperor in August traz consigo a crença de que o Japão, no culminar da Segunda Guerra, era um país governado exclusivamente por militares convencidos que a derrota apenas se declararia quando nenhum japonês restasse debaixo do sol. O filme de Okamoto, apesar da idade, tinha ido mais longe na acepção em que não sentia grande necessidade de "limpar imagens" e apresentava os últimos dias da capitulação não só com intrigas políticas fervilhantes, mas com o desespero latente que resultaria da aceitação da derrota, a despeito de agora serem os lacaios a sentir a maior urgência de defender o trono quando os soberanos, por sua vez, eram os primeiros a reconhecer que tudo estava perdido. Masato Harada na sua versão mais moderada e distanciada tenta imprimir algum fulgor através da montagem, simultaneamente a maior qualidade e defeito do filme, mas parece ter-se esquecido da visceralidade e da mestria técnica de Okamoto: se os cortes rápidos entre planos conseguem fornecer um ritmo ansioso e concatenar imagens relevantes, a verdade é que muitas vezes perdemos os méritos de um plano mais demorado e até notamos alguns erros de raccord tal é a rapidez hollywoodesca do editing. Se Japan's Longest Day usou footage real da bomba atómica, The Emperor in August dá-se ao luxo de recriar, com um CGI atroz que chega a ser ofensivo, a explosão de Hiroshima em poucos segundos. Aqui jaz a diferença profunda entre os dois filmes mesmo que haja semelhanças no plot: um pretende ser uma marcha fúnebre, outro um elogio.