16/09/14

Fragmentos de 2014/09/16




Distant Thunder (1981) de Kichitaro Negishi: ****
Yoshio Shirai, no panfleto distribuído nos cinemas que exibiam Distant Thunder, escrevia o seguinte: "Se colocarmos Distant Thunder no contexto mais alargado da História do Cinema Japonês, podemos facilmente dizer que é um produto da imagética realista japonesa do velho estúdio Nikkatsu Tamagawa - o estilo primordial do estúdio desde o final dos anos 30." Shirai, de seguida, aponta dois filmes emblemáticos dessa estética e dessa década (Earth de Tomu Uchida e A Pebble by the Wayside de Tomotaka Tasaka) e prossegue: "são dois exemplos paradigmáticos de obras que incorporam a procura por um visual verdadeiramente japonês e um sentido dramático nascido desse mesmo clima japonês." Com efeito, trata-se de uma comparação certeira ressalvando as épocas diferentes que cada cineasta pretendia traçar. O filme de Kichitaro Negishi não esconde, pois, a intenção de fixar a aura do seu tempo, não indo pelo caminho óbvio da imersão urbana (a maior parte dos cineastas fá-lo-ia assim: jovens na cidade, etc. para autentificar a modernidade) mas, pelo contrário, descrevendo com argúcia o clima de uma pequena cidade agrícola e, à primeira vista, completamente irrelevante e sem grande coisa para contar. Também todos os personagens pertencem a essa atmosfera caseira e rural (que, porventura, um japonês conseguiria identificar bastante melhor) mas que esconde fortes tensões e problemas de diversa ordem (por exemplo, a desintegração familiar). Negishi não quer só lapidar o realismo rural da sua época, queria também realizar um filme de jovens sem fantasias, porque esse era um dos grandes imperativos da política produtora da Art Theatre Guild nos idos de 80. Neste sentido, Distant Thunder consegue demonstrar uma enorme dedicação pelo mundo destes jovens cercados pelo trabalho e melancolia próprias das urbanizações com tradição e contexto rural. É notória também a maneira como toda a juventude está descrita: a idade em que as decisões são mais determinantes para o futuro, mas também aquela em que existe mais vontade para transgredir e mandar tudo pelos ares. Ao contrário, portanto, do realismo dos anos 30 que, por razões históricas, não se atrevia a abrir a porta da sexualidade, em Distant Thunder grande parte do seu cabimento reside na sede afectiva e sexual que, se não for satisfeita (ou for satisfeita demais) arrisca-se a a ser a única coisa que pode perturbar a tranquilidade, por vezes misteriosa por vezes assustadora do lugar. Talvez o título "Trovoada Distante", trovoada que o casal assiste na cena final enquanto prepara um novo ano de colheita, seja alusivo a esta perturbação estranha que perdura no silêncio fazendo-se sentir nos sítios onde o tempo passa mais devagar e se é confrontado com a solidão e os ritmos imperdoáveis do trabalho da terra.



Kidnaping Blues (1982) de Shinpei Asai: ***
Em cima de uma bicicleta, um adulto e uma criança atravessam o Japão como dois forasteiros. Ele chama-se Morita, um trompetista frustrado. Ela, Mai, uma menina de seis anos que diz "odiar crianças" e pede auxílio para ir ver o mar. O encontro que os une é tão aleatório como o suposto rapto que os separará. Shinpei Asai (conhecido fotógrafo e operador de câmara) com este seu primeiro e único filme inteiramente improvisado e fragmentado parece apontar para o último reduto da vida livre e sem amarras da geração de 60. Se há algo em comum aos vários encontros estabelecidos durante esta viagem (tantos cameos!) é um certo olhar nostálgico perante o passado, consubstanciado em relatos que comunicam um certo encanto fantasista por essa década dourada de 60, uma década de pessoas livres como crianças. E não é Morita, com a sua despreocupação total e prioridades anormais, tão ou mais criança do que a pequena Mai? Não estará Asai a dizer, através da sua realização descontraída e personagens libertos de um argumento, que as aspirações dessa geração, vinte anos findados, só podem ser cumpridas com actos mais ou menos extravagantes, pueris e egoístas? Ou estará Asai a querer que todos os julgamentos sejam suspendidos e nos deixemos levar pelas imagens que apagam qualquer rasto de tradição cinematográfica (história, personagens, etc.)? Ficam as questões no ar, todavia, Kidnaping Blues tem a qualidade rara de nos captivar com as suas imagens sem precisar de quaisquer muletas.



Tamako in Moratorium (2013) de Nobuhiro Yamashita: ***
Recentemente, a propósito do vergonhoso e falhado Seventh Code de Kiyoshi Kurosawa critiquei duramente a ídolo pop tornada actriz, Atsuko Maeda. Duvidei das suas capacidades como actriz e rejeitei por completo a sua presença nesse filme, classificando-a como reles product placement (melhor, career placement) e nem considerei uma nuance de relevo. Esqueci-me, porventura, que são os realizadores e os argumentistas que moldam os sujeitos filmados e fazem deles o que quiserem, a tal ponto que um realizador menos inspirado pode arruinar ou, pelo menos, dar uma péssima impressão de um actor/actriz. Com esta Tamako, Nobuhiro Yamashita transfigura a imagem asseada e kawaii de Maeda e vira-a, felizmente, de pernas para o ar. Enche-a de defeitos, idiossincrasias bizarras, silêncios desconfortáveis e um sorriso completamente ausente (ah, como é fleumática esta jovem!). A recém licenciada e desempregada Tamako que volta para a terra natal para viver com o seu pai divorciado e passa os seus dias a comer, dormir e a ler mangas atinge aquele grau de paradoxal irritabilidade e carinho característica do universo lento, rotineiro e humoristicamente deadpan de Yamashita, aqui tão próximo dos seus primeiros filmes mais financeira e narrativamente modestos. Dividida em quatro estações, que juntas perfazem um ano sabático composto por episódios, Tamako in Moratorium conta as peripécias de uma filha imperturbável, mas à beira de um ataque de nervos e um pai simpático mas não menos extravagante quando menos se espera. Alguém falou sobre uma inversão de Late Spring quando é sugerido ao pai casar-se com uma professora também divorciada. No filme de Ozu, era o pai que tinha de convencer a filha a casar-se, aceitando assim a última etapa para a solidão da velhice, para a morte. No filme de Yamashita, é Tamako que parece não estar absolutamente pacífica quanto ao facto de ficar com o pai casado, pai que tanto parecia desprezar até esse momento. Para além de não demonstrar nenhum interesse amoroso (as únicas relações que estabelece com ex-colegas e um estudante de liceu apenas demonstram desconforto ou autoridade), ela pertence a uma geração disfuncional, incapaz de seguir o seu rumo, demasiado presa portanto, ao sustento da sua família monoparental, também ela ligeiramente desintegrada. Como nos filmes de Ozu - e a despeito das suas tamanhas diferenças -, Tamako in Moratorium acaba a falar sobre despedidas sem nunca vermos essa despedida tomar lugar. O resto é a vida, o resto é imaginação.



Sweet Whip (2013) de Takashi Ishii: 0
Os últimos trabalhos de Takashi Ishii têm sido apelidados de fetichistas no pior e mais embaraçoso sentido do termo. São delírios onanistas (sem noção) de um pornógrafo com laivos e réstias do grande realizador que outrora foi. Sweet Whip consegue ser simultaneamente o mais ofensivo e o mais chauvinista de todas as suas últimas películas moralmente condenáveis (e esta mais do que nunca). Relata a experiência traumática de Naoko, aprisionada e brutalmente violada por um vizinho quando tinha apenas dezassete anos, e que passados quinze anos se obriga a reviver a exploração monstruosa de que foi vítima participando em sessões anónimas de um clube sadomasoquista secreto. O pior desta tentativa falhada de Ishii regressar às suas origens enquanto narrador de intrigas psico-sexuais (com os seus mergulhos na psique negra de cada um) mantendo, ainda assim, a sua estética erótico-depressiva, são os tempos indevidos e nauseantes que concede às cenas de brutalidade e violação (pelo que sei, ainda as esticou mais na versão longa com umas penosas duas horas e meia!), quase nunca demonstrando compaixão pelas vítimas devido a um perverso e teimoso sentimento de tempo real, que aproxima as cenas sexuais, a despeito da fotografia cuidada, da linguagem pornográfica com resultados desastrosos e chocantes. O tratamento dado à protagonista vai variando do desrespeito e sadismo sexual (em que pactua como se fosse a única saída possível) à anulação melancólica de todos os fetiches (quando Naoko, por exemplo, em voz-off nos confessa a impossibilidade de desenvolver qualquer tipo de sentimento ou prazer das suas memórias abusivas). O final também volta a assinalar que Naoko não tem quaisquer hipóteses de reabilitar a sua vida (e a sua sexualidade), vencendo sempre o trauma, mas todas as soluções de Ishii, bem como o seu pessimismo e descrédito masturbatórios, são avassaladoras aproximações de uma monstruosidade confusa e penosa.



The World of Kanako (2014) de Tetsuya Nakashima: **
Dizer que Nakashima estava irado com o mundo quando pensou neste projecto é ainda ser benevolente. The World of Kanako, apesar do estilo visual aprumado, das sólidas prestações (grande Koji Yakusho) e da montagem frenética, é um filme desagradável de se assistir. O sucessor directo de Confessions revela-se ainda mais radical na criação de imagens revoltantes e toda esta tentativa suspende a lógica clássica do filme de vingança e substitui-a pelo abismo que tudo envolve e todos os personagens engole. Não há redenção para ninguém nesta história demasiado intrincada, desorientada e explosiva, sem quaisquer laços ou compromissos com o real, "como se fosse tudo um sonho" como chega a dizer a odiosa Kanako, filha perdida mas nunca encontrada que parece ser a encarnação do mal puro de uma juventude insusceptível de comunicação. A linguagem de Nakashima está mais furiosa do que nunca mas isso não significa necessariamente algo positivo. O ritmo das imagens é alucinante (seguramente deve haver aqui mais de 5.000 planos), a violência gráfica, irreal e repetitiva (um loop de sangue e espancamento) e até mesmo a sexualidade é questionável e repulsiva. O objectivo? Criticar uma geração sem pais ad absurdum? Descrever a sensação desgostosa de um pai descobrir a vida dupla, tripla, quádrupla da filha? Ou descer apenas aos confins da maldade e da perda da inocência? Podem ser os três, pode ser nenhum. A verdade é que The World of Kanako quando tenta conferir "realidade" à sua intriga, dando-lhe motivos, causalidade e melodrama satura as relações psicóticas que estabelece entre todos os personagens. Nesses momentos, Nakashima revela todas as fragilidades da sua proposta e raramente consegue equilibrar o delírio parodiante (tome-se o genérico "seventies" como exemplo) com a componente dramática hiperbolizada, gratuita e demoníaca. Demasiado longo, dos três finais possíveis, poder-se-ia ter escolhido também apenas um.



The Snow White Murder Case (2014) de Yoshihiro Nakamura: **
Nesta sua nova proposta, Yoshihiro Nakamura parece querer fazer um filme policial sem polícias ou detectives. Só conseguiu fazê-la quando os que mais julgam (e até investigam) os crimes são os media, e isso significa tanto os jornalistas como todos os usuários das redes sociais (a nossa era não tinha sido já apelidada era Facebook e Twitter?). The Snow White Murder Case espelha um comentário social através das excessivas menções cibernéticas que faz de um mundo onde a rapidez da informação é tanta que a sua crítica ou filtro não tem nunca tempo para se efectuar (e as facas já estão afiadas ainda a procissão vai no adro). É de facto assustadora esta praça pública cibernauta (de longe, o elemento mais original e interessante do filme) que condena com base naquilo que julga ter visto na televisão (que procura o sensacionalismo em vez da realidade), escondendo-se atrás de um computador e arruinando por vezes a vida dos envolvidos presumíveis. Esta crença absoluta na imagem televisiva, que Nakamura parodia com bastante graça com caricaturas verossímeis dos programas "informativos" da especialidade, também é bastante criticada quando sucessivamente é confrontada com as versões reais, que só podem vir dos testemunhos daqueles que estão directamente implicados. Portanto, este policial invulgar prescinde dos detectives de bancada que todo o espectador julga ser e, contrariamente ao que é normal e suposto, põe os próprios visados a juntar as pontas soltas do crime e testemunhar a sua inocência perante os olhos e escrita inflamada do público. Uma proposta curiosa e original ainda que algo académica no departamento cinematográfico.



Over Your Dead Body (2014) de Takashi Miike: ***
Yotsuya Kaidan e cinema de terror japonês confundem-se. Desde muito cedo, vários realizadores adaptaram o conto tenebroso do ronin ganancioso Tamiya Iemon e a sua pobre esposa Oiwa e quase sempre o classicismo agregado a estas "versões" (se a de Nobuo Nakawaga é a mais popular, a minha favorita é a de Keisuke Kinoshita) transmite bem a essência dos fantasmas nipónicos: não têm uma presença fisicamente perigosa, mas desencadeiam, através da sua aparição, a culpa moral e violentas tensões interiores. No cinema mais clássico (e na esmagadora maioria das versões de Yotsuya Kaidan), o fantasmagórico possuí uma dimensão quase shakesperiana, isto é, não há fantasmas sem culpa. É um registo que opera no domínio do desbloqueio e só a loucura parece ser solução para se viver com o mal (humano e não fantástico) que se praticou. Portanto, Takashi Miike, quiçá como forma de provocação, relega esta tradição operática da obra original para o artifício. Tanto a intensidade das cenas representadas, como o seu ritmo pausado e demorado são contrastadas por um olhar externo que está consciente do artifício, porque, afinal, tudo (ou quase tudo) são ensaios de uma peça de teatro. Miike simultaneamente faz um tributo ao terror atmosférico dos grandes mestres (que se baseia mais naquilo que não se vê do que aquilo que se vê) e aposta em escolhas, provavelmente mais próprias da sua geração, onde o terror ceifa pelas suas próprias mãos as vítimas. Esse fantasmagórico sangrento que castiga directamente é, em certos casos, demasiadamente superficial (ex:a morte de Iemon na peça) para uma obra que tanto tem de psicológico e tão pouco tem de inexplicável. No entanto, se este não é ainda o regresso pleno de Takashi Miike (regresso que esperamos há tanto tempo), fica provado que o realizador consegue ainda criar algo original a partir da aglutinação de ideias, não descurando o estilo visual e misturando a representação com a realidade.

09/09/14

Fragmentos de 2014/09/09



Punishment Room (1956) de Kon Ichikawa: ****
O espectador menos avisado foi levado a acreditar que Crazed Fruit era o taiyozoku essencial, a súmula mais perfeita de uma geração de filmes inacessíveis no mercado ocidental, mas subrepticiamente julgados como menos aprimorados. Não deixa de ser um fenómeno curioso como o sector da distribuição (e não apenas a crítica especializada) pode ser tão determinante na construção e relevância histórica de um filme. Provavelmente, se o DVD da película de Ko Nakahira não tivesse sido editada pela Criterion , haveria mais interrogações acerca do seu estatuto cimeiro ou definitivo. Se o conhecimento sempre se constrói a partir dos seus limites, qual é a função do crítico senão alargar essas mesmas limitações? A verdade é que no ano de 1956, a Daiei com intenções de trazer para o ecrã as angústias dos jovens rebeldes, adaptava três romances do pouco literário mas popular Shintaro Ishihara: Season of the Sun de Takumi Furukawa estreou-se em Maio desse ano, Punishment Room do já experiente Kon Ichikawa foi para as salas um mês depois e Crazed Fruit era lançado em Julho, na estação do calor. Esta trilogia inaugurava uma nova forma de encarar a juventude. A rebeldia, a sexualidade enfim liberta e a despreocupação total em relação aos mecanismos sociais de subsistência casava-se com um sentimento turvo, confuso e auto-destrutivo que funcionava simultaneamente como pathos final dos rebeldes sem causa e também como crítica ao núcleo duro das suas aspirações selváticas e passionais (porque as há). Punishment Room encarna bastante melhor estas duas dimensões tão paradoxais do taiyozoku: o seu protagonista (ao contrário dos irmãos de Crazed Fruit que eram movidos por sentimentos mais humanos como o ciúme, a posse etc.) é uma bomba relógio, um selvagem urbano (contraste-se com a estância veranil da película de Nakahira) que vai semeando o caos até atingir uma indiferença total em relação a si mesmo, aquilo que o rodeia e os seus desejos. Ichikawa é até bastante arrojado: a cena da violação, por exemplo, é terrivelmente tenebrosa e a maneira como ela fica resolvida causa-nos calafrios. Há também bastantes apontamentos sociais relevantes: a forma sóbria como os pais aqui surgem (não como os santos incondicionais dos haha-mono), a impotência do sistema familiar e educacional funcionar (Weber para aqui e acolá, mas no final lucram com organizações de festas) e o papel triste das mulheres que é como se vivessem uma falsa democracia, subjugadas pelos rapazes que delas abusam e nem têm direito a represálias. A urbe de Ichikawa é bastante mais negra do que as praias rebeldes de Nakahira. Se o interesse maior do último era paralisar o estrondo da violência, deixando os destroços dos barcos daquela última cena para a imaginação, o primeiro, Ichikawa vai até ao fundo com o seu selvagem absurdo. Com efeito, a macabra cena final no bar, onde podemos vislumbrar todas as contradições e fragilidades dos machos brigões, é a prova derradeira que Ichikawa estava interessado na violência na medida em que ela conduz a uma indiferença perante a morte. Eis o verdadeiro atrevimento, eis a verdadeira melancolia da rebeldia radical.



ESPY (1974) de Jun Fukuda: **
Jun  Fukuda, artesão da Toho, o estúdio que viu nascer Godzilla, durante muito tempo ficou encarregado de misturar os exageros da estética tokusatsu (efeitos especiais) com as intrigas sensacionais dos filmes de acção com espiões estilosos, sucedâneos baratos de James Bond. Apesar de ter-se debruçado esporadicamente nos kaiju (realizando episódios sucessivos de Godzilla quando este não passava de uma atracção para crianças), os filmes que mais marcaram a carreira de Fukuda foram os blockbusters acima descritos. Neste sentido, ESPY, penúltimo filme de carreira antes do exílio na televisão, representa para Fukuda uma despedida dos filmes que caracterizaram todo o seu percurso na Toho. Com a sua história de agentes secretos com poderes especiais, ESPY claramente não deseja fornecer qualquer identificação realista com a sua plateia e podemos dizer que se trata de um último exemplo de tokusatsu no cinema numa altura em que essa estética tinha bastante mais público e cabimento na televisão. É como ficção científica delirante e, ao mesmo tempo, particularmente cheesy (porque será que até os filmes menores dos anos 70 têm bandas sonoras tão viciantes?) que esta produção se apresenta. Apesar da qualidade questionável (dos diálogos, da complexidade dos personagens e da narrativa sem grandes surpresas), esta despedida de Fukuda pode ser apreciada se vista com a descontração e falta de expectativas necessárias. Se o encararmos como filme série-B (atendendo à fotografia exagerada e aos efeitos especiais interessantes, ainda que datados) podemos ainda entreter-nos e transformar alguns dos defeitos evidentes em qualidades.



Hell's Gate Island (1977) de Kon Ichikawa: **
A par da obra bastante aclamada de Edogawa Rampo, Seishi Yokomizo foi o autor "policial" mais adaptado no cinema japonês. Desde as décadas de 40 e 50 que os casos do personagem Kosuke Kindaichi faziam furor nas salas de cinema, e se durante os anos 60 quase não houve nenhum interesse em repensar e recriar o desleixado e genial detective, em 1976 uma produção independente financiada pela mítica ATG e realizada por Yoichi Takabayashi, Death at an Old Mansion revelava-se um êxito de bilheteira e representava uma revitalização dos romances de Yokomizo, começando com uma leitura fílmica daquele que tinha sido o livro em que Kindaichi surgia pela primeira vez. No mesmo ano, talvez inspirado pelo sucesso dessa tentativa, Kon Ichikawa iniciava com The Inugami Family um conjunto de cinco filmes baseado nas histórias mais populares do famigerado detective, sempre interpretado por Koji Ishizaka e que só terminaria em 1979 com The House of Hanging. Até aos anos 80, outros realizadores como Masahiro Shinoda, Nobuhiko Obayashi, Yoshitaro Nomura entre outros, seguiam as suas pegadas e o próprio Ichikawa, para sempre ligado aos policiais no final da sua carreira (ele, que agora escrevia os seus argumentos depois da sua esposa e fiel argumentista se retirar da sétima arte) adaptou ainda mais dois romances, o seu muito desejado The Eight-Tomb Village e um remake de Inugami Family, este o seu último filme em 2006. Da pentalogia clássica, Hell's Gate Island é a terceira instalação. Trata-se de uma incursão curiosa, mas pouco notável, onde Kindaichi tenta decifrar uma sequência de três assassínios de três herdeiras de uma família que vive numa ilha meia perdida do arquipélago japonês. Quer se goste ou não, Ichikawa sempre tentou concentrar as suas energias principalmente no modo como se descobrem os processos do crime, já que a identidade do criminoso corresponde quase sempre ao personagem que mais suspeitas levanta. Isto não quer dizer que não haja lugar para reviravoltas mas a proeza do genial detective fica sempre provada nas reconstituições que faz do passado dos criminosos. Se bem que neste Hell's Gate, a motivação do crime não seja totalmente convincente, há aqui momentos entretidos e com Kindaichi nunca verdadeiramente nos aborrecemos.



Night Train (1987) de Kosaku Yamashita: **
Nos anos 80, os romances femininos de Tomiko Miyao significaram para os antigos realizadores dos filmes de acção (chambara, mas principalmente o yakuza eiga) uma reabilitação de antigos temas, agora vistos sob um novo ponto de vista, o das mulheres. Hideo Gosha, de forma a interromper um hiato de três anos da sua carreira cheia de dificuldades, foi o primeiro a rodar um romance de Miyao, Onimasa em 82 e adaptaria ainda nessa década mais duas das suas histórias, The Geisha e Oar. Talvez inspirados pela visão de Gosha (que tentava aplicar a velha gramática do sacrifício honroso no mundo feminino), Sadao Nakajima, Kosaku Yamashita e Yasuo Furuhata, três antigos artesãos da Toei, também rebuscaram obras da autora com o mesmo intuito. Furuhata realizou dois filmes (Kura e Midwinter Camellia), Nakajima e Yamashita um cada (Apassionata e este Night Train respectivamente). Algumas generalidades podem ser ditas acerca destas adaptações que partilham os mesmos defeitos mas não as mesmas qualidades: costumam ser excessivamente melodramáticas, bastante longas e indulgentes mas, quando funcionam, conseguem fornecer uma autenticidade às personagens femininas que raramente se observava no cinema japonês comercial de então. Night Train narra os (des)encontros de duas irmãs com o mesmo homem e, como também é hábito nos romances de Miyao, junta a estética e o universo das geishas com as normas e os códigos do mundo yakuza. Yamashita joga com os lugares comuns de ambos os géneros mas não sucumbe à tentação de os colecionar, deixando assim um exercício vazio. Todos os personagens, num momento ou outro da narrativa, falham no caminho da honra e, estranhamente, parecem ser sempre as mulheres que sofrem mais com os erros masculinos do que o contrário (todas as mulheres que aqui aparecem são abandonadas pelos seus homens; seja porque são substituídas por outras, pela honra, pela morte ou simplesmente pelo dinheiro). Night Train aponta também para a subversão dos papeis sociais de ambos os sexos, por exemplo, na cena onde Tsuyuko vai resgatar a sua irmã, ela chega mesmo a questionar o vil patrão yakuza, cortando o dedo mindinho como se fosse um homem. "É isto que é ser um homem?" Basta repetir os ritos folclóricos para se encontrar a identidade masculina, porém, o verdadeiro espírito de sacrifício parece estar contido nestas mulheres tristes e aparentemente exploradas. Por mais polémico que seja, Yamashita é um admirador desta tenacidade feminina e se os homens sempre preferem morrer pelas suas questões, as mulheres, elas, esforçam-se a viver depois de terem tudo perdido. E isso é, certamente, o mais difícil.



A Fish on Land (2012) de Yusuke Iseya: *
Será A Fish on Land o Scene at the Sea de Yusuke Iseya? Como no filme de Takeshi Kitano, o actor tornado realizador esconde-se agora totalmente atrás das câmaras e renega a rapidez e brutalidade da sua primeira realização, Kakuto, um filme de juventude noctívago e energético com gangsters e droga. À semelhança da viragem kitanesca para o silêncio, aparentemente este segundo filme também propõe desacelerar as coisas e lentamente dar a conhecer o pequeno ambiente numa zona mais ou menos perdida e familiar. Iseya queria estar atento sobretudo aos dois protagonistas, Seiji, um dono de bar sorumbático que esconde um passado negro (um homem deslocado, "o peixe na terra" do título) e um forasteiro acolhido por ele quando tem um acidente de bicicleta. A verdade é que acaba por não haver grande complexidade de carácter devido à fragmentação e mesmo a lentidão, que deveria emergir-nos mais no passado de Seiji, joga contra o interesse e o nosso investimento emocional. Contada em flashback, a história nem consegue atingir a nostalgia pretendida quando as memórias do passado são confrontadas com o presente. Parece-nos que Iseya não consegue equilibrar bem o silêncio e a lentidão com a exposição excessiva nos diálogos existentes (Kitano, pelo contrário, esvaziava qualquer exposição e desembocava no misticismo, no inexplicável e assim demarcava a sua aura). É outro filme pouco sólido em termos de argumento, dando a sensação que "tudo está por todo o lado" (note-se a cena confusa do ataque à menina e a auto-punição de Seiji). Infelizmente, ficamos com a sensação de que certas cenas mereciam mais tempo e outras bastante menos.



Love's Whirlpool (2014) de Daisuke Miura: ***
Um grupo de oito desconhecidos (quatro homens e quatro mulheres) encontram-se num clube para participar numa festa sexual até de madrugada. Baseado na peça de teatro homónima de Daisuke Miura, o realizador que nos tinha tirado o tapete com Boys on The Run e o seu anti-romantismo contra todas a expectativas, a sexualidade saturada de Love's Whirlpool só podia funcionar com um realizador que soubesse muito bem descrever as múltiplas causas e consequências das relações carnais sem compromissos. Num filme cujos protagonistas estão despidos a esmagadora maioria do tempo, Miura, na tentativa de revelar as suas personalidades e metamorfoses durante o decorrer de tal paganismo moderno, esboça as várias tomadas de posição com dignidade e parece apontar, tristemente, para a dificuldade em esquecer as emoções que projectam uma continuidade. Até que ponto os afectos podem existir nestes encontros em que o sexo é racionalizado e serve meramente um propósito de satisfação individual? Será possível que o amor nasça dessa intimidade carnal? A partilha é possível? Estas são as várias questões que Miura nos lança, sem jamais colocar adornos na sua descrição, sem, portanto, amaldiçoar ou fetichizar o acto sexual. A sua obrigação como contador de histórias parece forçá-lo a uma sobriedade rara tanto no cinema japonês como noutro qualquer. Love's Whirlpool indaga muito bem os limites da posse nos relacionamentos humanos e descreve com precisão a melancolia do paganismo colectivo nas suas três fases: euforia, angústia e tédio. O final, à semelhança de Boys on The Run, é uma chapada de luva branca nos secretos desejos do espectador em criar algum tipo de reconciliação com os personagens, sempre divididos e distantes a despeito da proximidade física. Frio e realista até ao tutano, Miura continua a surpreender.