16/09/14

Fragmentos de 2014/09/16




Distant Thunder (1981) de Kichitaro Negishi: ****
Yoshio Shirai, no panfleto distribuído nos cinemas que exibiam Distant Thunder, escrevia o seguinte: "Se colocarmos Distant Thunder no contexto mais alargado da História do Cinema Japonês, podemos facilmente dizer que é um produto da imagética realista japonesa do velho estúdio Nikkatsu Tamagawa - o estilo primordial do estúdio desde o final dos anos 30." Shirai, de seguida, aponta dois filmes emblemáticos dessa estética e dessa década (Earth de Tomu Uchida e A Pebble by the Wayside de Tomotaka Tasaka) e prossegue: "são dois exemplos paradigmáticos de obras que incorporam a procura por um visual verdadeiramente japonês e um sentido dramático nascido desse mesmo clima japonês." Com efeito, trata-se de uma comparação certeira ressalvando as épocas diferentes que cada cineasta pretendia traçar. O filme de Kichitaro Negishi não esconde, pois, a intenção de fixar a aura do seu tempo, não indo pelo caminho óbvio da imersão urbana (a maior parte dos cineastas fá-lo-ia assim: jovens na cidade, etc. para autentificar a modernidade) mas, pelo contrário, descrevendo com argúcia o clima de uma pequena cidade agrícola e, à primeira vista, completamente irrelevante e sem grande coisa para contar. Também todos os personagens pertencem a essa atmosfera caseira e rural (que, porventura, um japonês conseguiria identificar bastante melhor) mas que esconde fortes tensões e problemas de diversa ordem (por exemplo, a desintegração familiar). Negishi não quer só lapidar o realismo rural da sua época, queria também realizar um filme de jovens sem fantasias, porque esse era um dos grandes imperativos da política produtora da Art Theatre Guild nos idos de 80. Neste sentido, Distant Thunder consegue demonstrar uma enorme dedicação pelo mundo destes jovens cercados pelo trabalho e melancolia próprias das urbanizações com tradição e contexto rural. É notória também a maneira como toda a juventude está descrita: a idade em que as decisões são mais determinantes para o futuro, mas também aquela em que existe mais vontade para transgredir e mandar tudo pelos ares. Ao contrário, portanto, do realismo dos anos 30 que, por razões históricas, não se atrevia a abrir a porta da sexualidade, em Distant Thunder grande parte do seu cabimento reside na sede afectiva e sexual que, se não for satisfeita (ou for satisfeita demais) arrisca-se a a ser a única coisa que pode perturbar a tranquilidade, por vezes misteriosa por vezes assustadora do lugar. Talvez o título "Trovoada Distante", trovoada que o casal assiste na cena final enquanto prepara um novo ano de colheita, seja alusivo a esta perturbação estranha que perdura no silêncio fazendo-se sentir nos sítios onde o tempo passa mais devagar e se é confrontado com a solidão e os ritmos imperdoáveis do trabalho da terra.



Kidnaping Blues (1982) de Shinpei Asai: ***
Em cima de uma bicicleta, um adulto e uma criança atravessam o Japão como dois forasteiros. Ele chama-se Morita, um trompetista frustrado. Ela, Mai, uma menina de seis anos que diz "odiar crianças" e pede auxílio para ir ver o mar. O encontro que os une é tão aleatório como o suposto rapto que os separará. Shinpei Asai (conhecido fotógrafo e operador de câmara) com este seu primeiro e único filme inteiramente improvisado e fragmentado parece apontar para o último reduto da vida livre e sem amarras da geração de 60. Se há algo em comum aos vários encontros estabelecidos durante esta viagem (tantos cameos!) é um certo olhar nostálgico perante o passado, consubstanciado em relatos que comunicam um certo encanto fantasista por essa década dourada de 60, uma década de pessoas livres como crianças. E não é Morita, com a sua despreocupação total e prioridades anormais, tão ou mais criança do que a pequena Mai? Não estará Asai a dizer, através da sua realização descontraída e personagens libertos de um argumento, que as aspirações dessa geração, vinte anos findados, só podem ser cumpridas com actos mais ou menos extravagantes, pueris e egoístas? Ou estará Asai a querer que todos os julgamentos sejam suspendidos e nos deixemos levar pelas imagens que apagam qualquer rasto de tradição cinematográfica (história, personagens, etc.)? Ficam as questões no ar, todavia, Kidnaping Blues tem a qualidade rara de nos captivar com as suas imagens sem precisar de quaisquer muletas.



Tamako in Moratorium (2013) de Nobuhiro Yamashita: ***
Recentemente, a propósito do vergonhoso e falhado Seventh Code de Kiyoshi Kurosawa critiquei duramente a ídolo pop tornada actriz, Atsuko Maeda. Duvidei das suas capacidades como actriz e rejeitei por completo a sua presença nesse filme, classificando-a como reles product placement (melhor, career placement) e nem considerei uma nuance de relevo. Esqueci-me, porventura, que são os realizadores e os argumentistas que moldam os sujeitos filmados e fazem deles o que quiserem, a tal ponto que um realizador menos inspirado pode arruinar ou, pelo menos, dar uma péssima impressão de um actor/actriz. Com esta Tamako, Nobuhiro Yamashita transfigura a imagem asseada e kawaii de Maeda e vira-a, felizmente, de pernas para o ar. Enche-a de defeitos, idiossincrasias bizarras, silêncios desconfortáveis e um sorriso completamente ausente (ah, como é fleumática esta jovem!). A recém licenciada e desempregada Tamako que volta para a terra natal para viver com o seu pai divorciado e passa os seus dias a comer, dormir e a ler mangas atinge aquele grau de paradoxal irritabilidade e carinho característica do universo lento, rotineiro e humoristicamente deadpan de Yamashita, aqui tão próximo dos seus primeiros filmes mais financeira e narrativamente modestos. Dividida em quatro estações, que juntas perfazem um ano sabático composto por episódios, Tamako in Moratorium conta as peripécias de uma filha imperturbável, mas à beira de um ataque de nervos e um pai simpático mas não menos extravagante quando menos se espera. Alguém falou sobre uma inversão de Late Spring quando é sugerido ao pai casar-se com uma professora também divorciada. No filme de Ozu, era o pai que tinha de convencer a filha a casar-se, aceitando assim a última etapa para a solidão da velhice, para a morte. No filme de Yamashita, é Tamako que parece não estar absolutamente pacífica quanto ao facto de ficar com o pai casado, pai que tanto parecia desprezar até esse momento. Para além de não demonstrar nenhum interesse amoroso (as únicas relações que estabelece com ex-colegas e um estudante de liceu apenas demonstram desconforto ou autoridade), ela pertence a uma geração disfuncional, incapaz de seguir o seu rumo, demasiado presa portanto, ao sustento da sua família monoparental, também ela ligeiramente desintegrada. Como nos filmes de Ozu - e a despeito das suas tamanhas diferenças -, Tamako in Moratorium acaba a falar sobre despedidas sem nunca vermos essa despedida tomar lugar. O resto é a vida, o resto é imaginação.



Sweet Whip (2013) de Takashi Ishii: 0
Os últimos trabalhos de Takashi Ishii têm sido apelidados de fetichistas no pior e mais embaraçoso sentido do termo. São delírios onanistas (sem noção) de um pornógrafo com laivos e réstias do grande realizador que outrora foi. Sweet Whip consegue ser simultaneamente o mais ofensivo e o mais chauvinista de todas as suas últimas películas moralmente condenáveis (e esta mais do que nunca). Relata a experiência traumática de Naoko, aprisionada e brutalmente violada por um vizinho quando tinha apenas dezassete anos, e que passados quinze anos se obriga a reviver a exploração monstruosa de que foi vítima participando em sessões anónimas de um clube sadomasoquista secreto. O pior desta tentativa falhada de Ishii regressar às suas origens enquanto narrador de intrigas psico-sexuais (com os seus mergulhos na psique negra de cada um) mantendo, ainda assim, a sua estética erótico-depressiva, são os tempos indevidos e nauseantes que concede às cenas de brutalidade e violação (pelo que sei, ainda as esticou mais na versão longa com umas penosas duas horas e meia!), quase nunca demonstrando compaixão pelas vítimas devido a um perverso e teimoso sentimento de tempo real, que aproxima as cenas sexuais, a despeito da fotografia cuidada, da linguagem pornográfica com resultados desastrosos e chocantes. O tratamento dado à protagonista vai variando do desrespeito e sadismo sexual (em que pactua como se fosse a única saída possível) à anulação melancólica de todos os fetiches (quando Naoko, por exemplo, em voz-off nos confessa a impossibilidade de desenvolver qualquer tipo de sentimento ou prazer das suas memórias abusivas). O final também volta a assinalar que Naoko não tem quaisquer hipóteses de reabilitar a sua vida (e a sua sexualidade), vencendo sempre o trauma, mas todas as soluções de Ishii, bem como o seu pessimismo e descrédito masturbatórios, são avassaladoras aproximações de uma monstruosidade confusa e penosa.



The World of Kanako (2014) de Tetsuya Nakashima: **
Dizer que Nakashima estava irado com o mundo quando pensou neste projecto é ainda ser benevolente. The World of Kanako, apesar do estilo visual aprumado, das sólidas prestações (grande Koji Yakusho) e da montagem frenética, é um filme desagradável de se assistir. O sucessor directo de Confessions revela-se ainda mais radical na criação de imagens revoltantes e toda esta tentativa suspende a lógica clássica do filme de vingança e substitui-a pelo abismo que tudo envolve e todos os personagens engole. Não há redenção para ninguém nesta história demasiado intrincada, desorientada e explosiva, sem quaisquer laços ou compromissos com o real, "como se fosse tudo um sonho" como chega a dizer a odiosa Kanako, filha perdida mas nunca encontrada que parece ser a encarnação do mal puro de uma juventude insusceptível de comunicação. A linguagem de Nakashima está mais furiosa do que nunca mas isso não significa necessariamente algo positivo. O ritmo das imagens é alucinante (seguramente deve haver aqui mais de 5.000 planos), a violência gráfica, irreal e repetitiva (um loop de sangue e espancamento) e até mesmo a sexualidade é questionável e repulsiva. O objectivo? Criticar uma geração sem pais ad absurdum? Descrever a sensação desgostosa de um pai descobrir a vida dupla, tripla, quádrupla da filha? Ou descer apenas aos confins da maldade e da perda da inocência? Podem ser os três, pode ser nenhum. A verdade é que The World of Kanako quando tenta conferir "realidade" à sua intriga, dando-lhe motivos, causalidade e melodrama satura as relações psicóticas que estabelece entre todos os personagens. Nesses momentos, Nakashima revela todas as fragilidades da sua proposta e raramente consegue equilibrar o delírio parodiante (tome-se o genérico "seventies" como exemplo) com a componente dramática hiperbolizada, gratuita e demoníaca. Demasiado longo, dos três finais possíveis, poder-se-ia ter escolhido também apenas um.



The Snow White Murder Case (2014) de Yoshihiro Nakamura: **
Nesta sua nova proposta, Yoshihiro Nakamura parece querer fazer um filme policial sem polícias ou detectives. Só conseguiu fazê-la quando os que mais julgam (e até investigam) os crimes são os media, e isso significa tanto os jornalistas como todos os usuários das redes sociais (a nossa era não tinha sido já apelidada era Facebook e Twitter?). The Snow White Murder Case espelha um comentário social através das excessivas menções cibernéticas que faz de um mundo onde a rapidez da informação é tanta que a sua crítica ou filtro não tem nunca tempo para se efectuar (e as facas já estão afiadas ainda a procissão vai no adro). É de facto assustadora esta praça pública cibernauta (de longe, o elemento mais original e interessante do filme) que condena com base naquilo que julga ter visto na televisão (que procura o sensacionalismo em vez da realidade), escondendo-se atrás de um computador e arruinando por vezes a vida dos envolvidos presumíveis. Esta crença absoluta na imagem televisiva, que Nakamura parodia com bastante graça com caricaturas verossímeis dos programas "informativos" da especialidade, também é bastante criticada quando sucessivamente é confrontada com as versões reais, que só podem vir dos testemunhos daqueles que estão directamente implicados. Portanto, este policial invulgar prescinde dos detectives de bancada que todo o espectador julga ser e, contrariamente ao que é normal e suposto, põe os próprios visados a juntar as pontas soltas do crime e testemunhar a sua inocência perante os olhos e escrita inflamada do público. Uma proposta curiosa e original ainda que algo académica no departamento cinematográfico.



Over Your Dead Body (2014) de Takashi Miike: ***
Yotsuya Kaidan e cinema de terror japonês confundem-se. Desde muito cedo, vários realizadores adaptaram o conto tenebroso do ronin ganancioso Tamiya Iemon e a sua pobre esposa Oiwa e quase sempre o classicismo agregado a estas "versões" (se a de Nobuo Nakawaga é a mais popular, a minha favorita é a de Keisuke Kinoshita) transmite bem a essência dos fantasmas nipónicos: não têm uma presença fisicamente perigosa, mas desencadeiam, através da sua aparição, a culpa moral e violentas tensões interiores. No cinema mais clássico (e na esmagadora maioria das versões de Yotsuya Kaidan), o fantasmagórico possuí uma dimensão quase shakesperiana, isto é, não há fantasmas sem culpa. É um registo que opera no domínio do desbloqueio e só a loucura parece ser solução para se viver com o mal (humano e não fantástico) que se praticou. Portanto, Takashi Miike, quiçá como forma de provocação, relega esta tradição operática da obra original para o artifício. Tanto a intensidade das cenas representadas, como o seu ritmo pausado e demorado são contrastadas por um olhar externo que está consciente do artifício, porque, afinal, tudo (ou quase tudo) são ensaios de uma peça de teatro. Miike simultaneamente faz um tributo ao terror atmosférico dos grandes mestres (que se baseia mais naquilo que não se vê do que aquilo que se vê) e aposta em escolhas, provavelmente mais próprias da sua geração, onde o terror ceifa pelas suas próprias mãos as vítimas. Esse fantasmagórico sangrento que castiga directamente é, em certos casos, demasiadamente superficial (ex:a morte de Iemon na peça) para uma obra que tanto tem de psicológico e tão pouco tem de inexplicável. No entanto, se este não é ainda o regresso pleno de Takashi Miike (regresso que esperamos há tanto tempo), fica provado que o realizador consegue ainda criar algo original a partir da aglutinação de ideias, não descurando o estilo visual e misturando a representação com a realidade.

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