22/06/15

Fragmentos de 2015/06/22



The Gangster VIP (1968) de Toshio Masuda: ***
Ao assistirmos a entrevistas recentes com membros que trabalharam na Nikkatsu nos anos 60, frequentemente um nome impõe-se aos outros todos no que diz respeito à popularidade das suas películas: Toshio Masuda. Com efeito, Masuda era o realizador que se encontrava no topo da cadeia alimentar da Nikkatsu, seguido de realizadores como Ko Nakahira ou Koreyoshi Kurahara e acabando no mais baixo dos escalões com (o hoje superior a eles todos) Seijun Suzuki. O que significava estar no cume da pirâmide dos realizadores, perguntamo-nos? A possibilidade de trabalhar com as estrelas do estúdio (nomeadamente Yujiro Ishihara), maiores orçamentos e, normalmente, um período maior de filmagens. Claro que a obra de Masuda, devido ao seu carácter artesanal, é gigantesca (de 1958 a 1968 lançou 52 filmes exclusivos da Nikkatsu) e o realizador era inclusivamente conhecido por sempre entregar os seus filmes a tempo e com generosas receitas de box-office. Era, portanto, um conhecedor das fórmulas que resultavam perante o público e, na nossa opinião, era também o cineasta capaz de extrair mais emotividade e entusiasmo da tradicionalidade narrativa a que se obrigava e que, em determinados departamentos e sem grandes revoluções, variava. Se não podemos falar de variação total em The Gangster VIP, película yakuza reminiscente de tantas outras quanto à estrutura, podemos referir o cepticismo que reina no argumento, na atmosfera urbana e na falta de valores que percorre o mundo decadente dos mafiosos, tornando-a mais um caso típico de um presságio de fim de era. Masuda foi até bastante inteligente para iniciar The Gangster VIP com o tipo acto conclusório que terminaria o mais banal dos ninkyos: a defesa e a escolha da obrigação moral perante o clã, um apunhalamento a um "irmão" e o aprisionamento do nosso herói, Goro Fujikawa (interpretado por Tetsuya Watari). Três anos após esse incidente e depois de cumprida a pena, Goro regressa à cidade e tudo parece diferente: a mulher do seu irmão de sangue trabalha agora num bordel e mesmo a sua apaixonada que jurava amor eterno quando este era levado pelas autoridades, casou-se com um trabalhador às direitas, deixando-o à sua sorte junto do clã inimigo que se quer vingar a todo o custo. Retomando as raízes do género, assistimos depois ao surgimento de um amor inesperado com outra rapariga, a princípio evitado por Goro que está consciente da perigosidade da sua situação (um belo plano metafórico dessa incompatibilidade do casal coloca no fundo dois comboios que vão em direcções diferentes, mas todavia cruzam-se) e a dizimação progressiva do clã e amigos do nosso herói, o que desencadeia a tão esperada e derradeira vendetta que tem o vilão como vítima impotente. Destacamos duas cenas em especial: essa morte muda no clube de jazz, apenas sonoramente acompanhada pela cantora que, sem saber o que se passa nos bastidores, faz o seu número e os fantasmas que nos assaltam quando a vingança está cumprida. Ferido, ziguezagueando pela noite como um zombie, Goro é mais um gangster trágico que colheu os frutos de uma vida imperdoável e nefasta, a via do yakuza.



Love and Faith (1978) de Kei Kumai: ***
Ogin-sama, título original que tem como subtítulo Love and Faith (amor e fé: duas emoções subjectivas capazes de descrever o conturbado período Sengoku), foi a primeira de duas obras kumaianas livremente inspiradas na escorregadia diplomacia do século XVI, remetendo sempre para duas figuras incontornáveis: Toyotomi Hideyoshi, o feroz unificador do Japão e o mestre de chá e seu conselheiro espiritual, Sen no Rikyu. Ao contrário do posterior Death of a Tea Master que examinava com tiques de policial essas duas personalidades históricas e o fim trágico que se abateu no final da sua relação, Love and Faith escalpeliza com pormenor as convulsões dessa era politicamente dividida e contrabalança as inclinações arrogantemente autocráticas de Toyotomi com um amor proibido entre Ogin, filha do mestre de chá, e Ukon, um nobre recentemente convertido que vê banida a sua religião, o cristianismo. Relato de uma era instável dilacerada entre a recusa e a aceitação dos descobrimentos europeus, Love and Faith explora, portanto, a duas velocidades, por um lado, o rumo público de uma liderança expansionista, verdadeiramente dominada com pulso de ferro (Toyotomi interpretado pelo carismático Toshiro Mifune encarna bem o lema dos grandes ditadores: "quem não está a favor, está contra") e, por outro, a força privada de uma mulher incapaz de se vergar perante a autoridade, afirmando o seu amor e a sua honra até às últimas consequências. Podemos mesmo dizer que Ogin desempenha aqui um Sen no Rikyu feminino, no sentido em que a tenacidade e a perenidade dos seus valores não encontram barreiras ou constrangimentos e o avanço da sua vontade (até à morte) surge como a maior das ousadias. Basta, portanto, ver quem assinou o argumento para levantar o véu da dúvida: o mizoguchiano Yoshitaka Yoda que aqui fala outra vez de uma mulher maior do que a história, afogada no sacrifício da sua teimosia feminina. Um retrato mizoguchiano sem Mizoguchi.



The Killing Game (1978) de Toru Murakawa: ****
De lentes embaciadas, Shohei Narumi fuma um cigarro noturno frente à janela da sua próxima vítima. Por esta altura já conhecemos o sangue assassino que corre nas veias do incrível hitman e a missão que abre esplendidamente The Killing Game não podia ser mais emblemática do silêncio duro que caracteriza o seu método imperdoável. Depois de matar friamente o alvo pretendido usando a secretária e presumível amante deste como escudo, Narumi prepara-se para se desfazer da única testemunha daquele assassinato junto às docas desertas e azuis da aurora. "Na cabeça não", diz-lhe a viúva quando vê o revólver apontado ao seu cérebro; "eu quero morrer bela". Talvez surpreendido pelo eco misterioso dessas palavras o atirador baixa a arma e poupa a vida daquela mulher fatal que sabe demasiado e seguramente virá a causar-lhe problemas no futuro e assim acontece cinco anos depois num jogo letal entre a falsa irmandade de dois gangues, sedentos pela mútua anulação e conquista. No segundo capítulo da Trilogia Game, Yusaku Matsuda inclusivamente dá uma de Toshiro Mifune e replica por breves momentos o papel famoso de Yojimbo, armadilhando duplamente quem o contrata e complicando as coordenadas de ambas as facções de mafiosos, como quem não quer a coisa. Mas, se na película de Akira Kurosawa a tensão de ser descoberto e a astúcia do protagonista eram o segredo do seu sucesso, em The Killing Game rapidamente as máscaras caem e o caos descontrolado se origina. Nessa altura, percebemos outra vez como é despretensioso o estilo de Toru Murakawa já que a mestria e total controlo dos seus planos é digna de estudo atento mas facilmente poderá ficar dissolvida nas idiossincrasias mais comuns de um filme de acção. São, portanto, as imagens que nos resgatam, é a presença inclassificável do cativante Yusaku Matsuda que nos põe a aplaudir de pé, é portanto o segmento final que fecha o círculo. Nessa despedida sangrenta da mulher reencontrada (absurda e à margem de estudos de personagem), nessa orgia de violência filmada num só take e que é, sem exageros, das cenas de acção mais marcantes e mais inesquecíveis do cinema japonês.



The Execution Game (1979) de Toru Murakawa: ****
Dois filmes separaram The Killing Game de The Execution Game: no ano de 1979 a consecutividade da trilogia era intervalada por Dead Angle e The Resurrection of the Golden Wolf, o último dos quais também protagonizado pelo inclassificável Yusaku Matsuda. Eram duas películas de hiato menos inspiradas, quiçá despoletadas por obrigações contratuais, que apesar de tudo traziam algo de relativamente novo ao cinema de Toru Murakawa. Se Shohei Narumi até aqui era um genuíno anti-anti-herói como o classificámos algures (e seguindo a regra tradicional da lógica, uma dupla negação equivale necessariamente a uma afirmação), sempre com um pé na maldade mas sempre sorridente o suficiente para aceitarmos as suas escolhas como um herói ainda assim invulgar, os protagonistas de Dead Angle e Ressurection, por seu turno, eram viciosos até ao tutano, inclusivamente num dos casos, roçavam uma espécie de apatia monstruosa que ficava sempre à margem de interpretações. Depois de assistir ao fechamento da trilogia, podemos afirmar que Execution Game bebe essas influências do anti-herói inquebrável com menos nuances psicológicas, munido de uma indiferença radical e, portanto, afigura-se como o capítulo mais negro dos três. Narumi é aqui um espectro entre os mortais aniquilados e mesmo a atmosfera que o circunda, graças à cinematografia ominosa e cinzenta, longe do sol pontual dos outros filmes, tem escrita morte, solidão e desolamento por toda a parte. Podemos usar a cena inicial como exemplo da abstração lúgubre que The Execution Game alcança, distanciando-se até dos cânones mais reconhecíveis do filme de acção que arrisca pouco: Narumi começa encarcerado, drogado, dispara contra os fantasmas da sua alucinação e recebe pistas em voz-off com uma luz cegante apontada aos olhos. Nunca vemos o vilão, só aparições sombrias. Desta vez o trabalho consiste em assassinar um homem da sua espécie, um hitman em vias de se "reformar". Uma cantora de jazz une o passado imediato de Narumi ao passado mais distante do hitman e, mais uma vez, podemos antever o desfecho sangrento e anárquico que conserva os traços mais gerais da série. Mas aqui, como em todo o lado, o que conta é a maneira como as imagens se encadeiam e nos transmitem sensações e estados, eu diria, disposicionais. Nesse departamento, The Execution Game é mais um marco formal de méritos indeléveis: os planos-sequências de tiroteios (três aqui!), o modo como os zooms e as pans são usadas como perpetuação do take subdividido em outros pequenos planos, a música de Yuji Ohno mais melancólica e experimental do que antes, enfim, a corporeidade fantasmagórica de Yusaku Matsuda que aqui representa o elo que faltava perscrutar entre o entretenimento da Trilogia Game e a interpretação surreal, pessimista, esquelética de The Beast To Die, realizado apenas um ano a seguir, em 1980.



Here Comes the Bride, My Mom! (2010) de Mipo Oh: **
Tsukiko vive sozinha com a sua mãe, Yoko. Certa madrugada chuvosa, Yoko chega a casa embriagada e traz consigo um rapaz bastante mais novo do que ela de seu nome Ken. O convidado, não menos bêbedo, fica aterrado no chão e, após essa noite agitada, fica a viver na casa das duas mulheres sem ter havido qualquer preparação ou aviso. O mundo de Tsukiko parece desabar aos poucos quando Yoko confessa, ao fim de um dia, que está noiva de Ken e que o casamento é para breve. Here Comes the Bride, My Mom!, como o título explicitamente deixa prever, é um filme que trata o relacionamento conturbado entre progenitora e descendente e abre com um punhado de questões pertinentes (qual o direito de uma mãe reconstruir a vida quando ainda está a viver com a filha?) que não deixam de explorar comicamente os limites ténues da hospitalidade, ou melhor, quando esta dá lugar à intrusão e ao fim da privacidade. Podemos dizer que a cineasta Mipo Oh começa o seu filme da melhor forma, demarcando o carácter caricato de tal situação e de Yoko, uma quarentona viúva que parece demasiado descontraída relativamente à modificação de vida que obrigará a filha a passar. Relacionável começa, pois, por ser Tsukiko, arauto da geração das segundas e terceiras famílias, que obviamente reage mal às mudanças impingidas e até à simpatia evidente do intruso. Claro que à medida que assistimos ao processo de habituação forçado, percebemos que terá de chegar o momento da conivência e, infelizmente para o percurso que o filme estava a construir, pensamos que a solução escolhida, se bem que convincente e sóbria, força por si só a aceitação de tal maneira que não conseguimos obter totalmente o processo de desenvolvimento de personagem que desejaríamos. Com boas interpretações e bons momentos, se tivesse ido por outro caminho no terceiro acto, Here Comes the Bride, My Mom! podia ter sido um clássico.




Tokyo Slaves (2014) de Sakichi Sato: 0
Durante a década passada, Sakichi Sato ficou conhecido por assinar os argumentos de Ichi the Killer e Gozu, dando à estética miikiana contornos delirantemente cartoonescos, por um lado, e surreais, por outro. Admirador confesso de David Lynch (e o que é Gozu senão uma variação alucinada dos já por si alucinados ensinamentos do mestre americano?), Sato, porém, não encontrou grandes felicidades na passagem para a cadeira de realizador. A título de exemplo: não recordamos Tokyo Zombie, a sua primeira longa-metragem, como um filme marcante, mas antes marcado por um ritmo bocejante e uma estranheza, tanto na premissa como na execução, que nunca chegava a cumprir o que prometia. Tirando um ou outro caso pontual, a carreira do inesperado argumentista tornado realizador virou-se para a adaptação de mangas para o grande ecrã e Tokyo Slaves traduz mais um caso onde as duas linguagens não convivem bem juntas. Esta proposta algo adolescente conta a história de dois irmãos mais 21 jogadores e um engenho futurista que, quando colocado na dentição, tem o poder de escravizar a mente e o corpo de quem perde o desafio proposto (qualquer situação que eleja um vencedor e um vencido, um mestre e um escravo). Esta componente absurda não é nada inédita para Sato (por exemplo, em Zero Man vs. The Half-Virgin tinha filmado as aventuras de um jovem que, sempre que tinha uma erecção, via escrito na testa de qualquer pessoa o número de vezes que tinha tido relações sexuais) porém em Tokyo Slaves nenhum mérito bizarro constrói grande coisa e facilmente tudo se esfuma na gratuitidade sem piada ou génio. Os personagens são determinantemente irritantes, os jogos, apesar da tensão nas primeiras vezes, são pouquíssimo complexos (pedra-papel-tesoura, a sério?) e mesmo a ideia da escravatura induzida podia ter sido bastante melhor explorada se os lugares comuns dessa linguagem manga, por vezes paródica, por vezes seríssima, não se imiscuíssem constantemente nas interpretações e nas soluções de argumento confusas e maniqueístas. Quando o velho inventor da máquina surge, trazendo consigo uma última metade exasperante e sem tino, não restavam quaisquer dúvidas quanto ao fracasso de Sato porque a parvoíce não é sinónimo de arrojo.



Little Forest - Summer/ Autumn (2014) de Jun'ichi Mori: ***
O projecto Little Forest desafia, sem causar mossa ou iniciar discussões académicas, o próprio conceito de cinema, ou melhor, do filme visto em sala. Composto por duas longas-metragens, sendo que cada uma delas foi posteriormente dividida em dois capítulos descrevendo, no total, as quatro Estações do ano, a razão do desafio prende-se com o carácter self-contained dos segmentos e a sua quase inexistente articulação: ao ponto de, a meio deste Summer/Autumn, quando passamos do Verão para o Outono, haver uma cisão entre episódios, introduzida pelos créditos, a equipa técnica e, de seguida, reiniciada através de um outro genérico como se tivesse acontecido uma falha na projecção e recomeçássemos de novo num outro filme qualquer. Para além dessa escolha singular que demonstra a estranheza de enxergarmos a estrutura episódica da televisão sendo apresentada ipsis verbis como cinema, podemos ainda referir a estrutura não menos repetitiva e estanque que está no cerne de cada Estação vivida por Ichiko, uma jovem rapariga que regressa à sua aldeia natal e subsiste somente graças àquilo que produz: sete pratos para os cinquenta e tal minutos de Verão, sete pratos para o mesmo tempo no Outono. O modo de fabrico, a preparação, a busca pelo produto ideal e a explicação mais lata de como a Natureza funciona e como a podemos aproveitar são os ingredientes para a receita de Jun'ichi Mori representar as duas Estações auxiliando-se da culinária e dos seus processos de selecção e aprendizagem, optando por fazer da sua personagem uma misteriosa e solitária intérprete de um certo didatismo associado ao milagre do campo e da agricultura de subsistência. Talvez o maior desafio que Little Forest nos coloca seja precisamente esse: o de consumirmos imagens que estão completamente relacionadas com os programas de cozinha que abundam pelas nossas televisões e termos de as elevar ao estatuto de cinema por obrigação formal. O esforço pode até nem ser bem sucedido mas é seguramente recompensado graças à descontração reinante nas imagens e nessa visita aos cantos perdidos do mundo onde é possível estar sintonizado com uma vida que possibilita a meditação na feitura dos pequenos actos (caminhar, cultivar, cozinhar, comer). Nesses estados de relaxamento e respiração a fundo, potencializados pela iluminação natural e pelos roteiros gastronómicos que ilustram a Estação veranil e outonal, talvez percebamos a falta de presunção do próprio projecto encarado como unidade homogénea, em suma, a falta de compromisso quanto à velha arte do cinema.

09/06/15

Fragmentos de 2015/06/09



The Most Dangerous Game (1978) de Toru Murakawa: ****
O lendário (não há outro adjectivo para ele) Yusaku Matsuda protagoniza o primeiro capítulo da Trilogia Game, apelidada assim devido à utilização da palavra "jogo" (yugi em japonês, game em inglês) em cada um dos três títulos mas também porque nela contamos com a presença do mesmo personagem, o hitman Shohei Narumi e o mesmo realizador. The Most Dangerous Game, que pretende ser o capítulo introdutório para o que virá, abre na aurora da cidade em zoom out, focando num canto corpos mortos e manchetes de jornal. A banda-sonora incrível de Yuji Ohno coloca-nos logo na pista que ansiávamos: o filme de Toru Murakawa será maioritariamente um exercício de estilo tão demarcadamente desligado de uma lógica realista no argumento e nas motivações que só pode contrabalançar a verossimilhança ao nível formal, nos esplêndidos movimentos de câmara e em escolhas de realização audazes (veja-se o tiroteio num asilo psiquiátrico filmado em plano sequência durante três minutos) que até podem surpreender pelo equilíbrio efectuado entre tensão e descarga (a câmara dança com os zooms e recria o movimento e a configuração dos enquadramentos dentro do estatismo do plano). Os contrastes e as contradições são aqui obrigatórias e a prova maior dessa afirmação reside no próprio anti-anti-herói Shohei Narumi. Por mais questionáveis que sejam as suas acções, é no equilíbrio entre inapetência e perfeccionismo, extrema confiança e patetice questionável que nos rendemos a um actor dono do seu personagem em cada segundo e que visivelmente foi feito para o vilão bondoso que interpreta. Yusaku Matsuda inaugurou uma escola de personagens sem continuidade no cinema, mas que viram o seu dealbar na indústria manga/anime (o que seria do Kenshin Himura ou Vash Stampede, entre tantos outros, sem a postura decomposta de Matsuda, sem o assassino que vive no homem sem talento?) e Shohei Narumi em The Most Dangerous Game é o pai de uma geração. Finalmente, quando no terceiro acto a suspensão de juízo se torna obrigatória e tudo se resolve com uma brutalidade tão in your face que se torna prazerosa, só podemos aplaudir este genuíno produto dos anos 70, à primeira vista datado mas que vence qualquer filme de acção feito hoje. Venham os próximos!



The House of Hanging (1979) de Kon Ichikawa: ***
The House of Hanging on Hospital Slope, iniciado em 1975 nas revistas hebdomadárias, seria provavelmente o último caso escrito de Kosuke Kindaichi, o habilidoso detective. O romance posteriormente compilado em 1977 quebrava 14 anos de hiato do septuagenário Seishi Yokomizo que retomava, com algumas nuances, a forma de literatura policial que o tornara famosíssimo numa era onde as adaptações cinematográficas da sua obra inundavam os cinemas e os leitores exigiam mais material fresco. Apesar de ainda ter escrito uma última obra em 1980, um ano antes de morrer, Yokomizo tencionava começar com as despedidas em The House of Hanging on a Hospital Slope e, consequentemente, quando cedeu os direitos para Kon Ichikawa terminar a sua "pentalogia" kindaichiana, as intenções não poderiam ser diferentes. Percorre nesta adaptação, The House of Hanging, uma nostalgia de fim de era que não pode ser alheia ao espectador que acompanhou atentamente os outros episódios da saga. As situações  e os personagens surgem a uma luz ligeiramente diferente: logo no início, uma cameo inesperada do próprio autor conversando com Koji Ishizaka dentro do personagem Kosuke Kindaichi lança o mote. Ambos no interior de uma cena anacrónica (com Yokomizo vestido à anos 70 num universo conhecidamente anos 20) e auto-referencial (com uma familiar na sala a relembrar o universo criativo do autor frente ao personagem), falam sobre uma viagem derradeira até aos Estados Unidos. Kindaichi, de seguida, dirige-se a uma loja para lhe tirarem uma fotografia de passaporte, talvez para escapar ao Japão asfixiante e rural que sempre encarou nos seus difíceis casos e cujas relações terminam sempre com mãos vermelhas de sangue. Mas, enquanto espera pela revelação da fotografia, surge um caso que lhe esbarra o caminho e a despedida fica adiada por mais uns momentos. É caso para dizer que The House of Hanging apresenta a mais intrincada e a mais negra de todas as adaptações cinematográficas do detective, não mudando a obsessão habitual do autor por famílias amaldiçoadas mas introduzindo certos twists estimulantes. Mesmo o defeito habitual dos outros filmes, isto é, o facto de sabermos desde muito cedo quem é o criminoso, fica aqui parcialmente solucionado devido aos três ou quatro suspeitos que confundem os possíveis motivos e a credibilidade dos assassinatos. Se não ficamos impressionados quando nos é revelado o criminoso (retomando também uma velha tradição de Yokomizo...), não podemos dizer que o tenhamos visto desde o princípio e muitas vezes a dúvida se instalou. No meio de uma trama complexa com um passado ainda mais macabro do que o habitual, Kindaichi revela a sua disposição sorumbática mais do que em qualquer outra obra. Se ele chega a reconhecer a compaixão que desprende o crime, o ponto alto da sua mágoa acontece quando assiste sem expressão ao (muitas vezes repetido) suicídio do seu autor. Com o chapéu na cintura, olhando para baixo como um fatalista, vira as costas e desaparece fora de plano. Foi para a América, foi para o nunca mais.



Letters from Kanai Nirai (2005) de Naoto Kumazawa: **
A primeira longa-metragem de Naoto Kumazawa, após experimentos que foram do V-Cinema ao filme omnibus, ecoa o espírito de Shunji Iwai numa altura em que a carreira do (ainda) jovem mestre começava a atravessar um bloqueio artístico, mais concretamente devido ao falecimento precoce de Noboru Shinoda, o seu lendário director de fotografia. Mas voltemos às influências de Letters from Kanai Nirai: por um lado, temos a presença de Yu Aoi no papel principal, actriz praticamente descoberta por Iwai e que configurou uma finura e sobriedade dramática poucas vezes repetida em intérpretes da sua geração e por outro, e esta é a característica que mais sobressaí, a fotografia enevoada, flutuante e filtrada, capaz de ligar os entes filmados ao seu meio (natural ou urbano) parece ter como inspiração confessa o trabalho do já referido Noboru Shinoda. De facto, Naoto Kumazawa serve-se das paisagens idílicas de Okinawa para contar a história de Fuuki, uma jovem que vive com os seus avós e que não sabe da mãe desde muito pequena. O único modo de entrar em contacto com ela é feito através de cartas anuais, recebidas mas não respondidas, talvez por causa do avó que, por uma razão a descobrir somente no final, as guarda antes de serem enviadas. Fuuki, fascinada com uma fotografia antiga com a mãe desaparecida, deseja também ser fotógrafa e sai da ilha tropical para tentar a sua sorte na cidade enquanto procura pelo paradeiro da mãe. Sem querer estragar o final, pode-se dizer que Letters from Kanai Nirai relata emotivamente a perda de uma adolescente à procura dos seus laços e das suas origens com a imagética sensível de um seguidor de Shunji Iwai. Outro estilo teria dificultado o visionamento, porém Kumazawa juntamente com Yu Aoi capturam alguma magia silenciosa principalmente quando Okinawa é filmada.



Mt. Tsurugidake (2009) de Daisaku Kimura: **
Do conhecido director de fotografia Daisaku Kimura chegou-nos em 2009 a sua primeira tentativa na cadeira de realizador. O filme, baseado no romance homónimo Mt. Tsurugidake, conta-nos a história de um cartógrafo, Yoshitaro Shibasaki, enviado pelo exército imperial na primeira década do século passado para subir ao cume inexplorado da Montanha Tsurugi (com uma altitude de quase 2.000 metros) e documentar o território adjacente auxiliando-se e criando estações de triangulação. Contando com o apoio de Chojiro, um conhecedor inato da região, Shibasaki reúne a "Unidade de Levantamento Geográfico" para levar a cabo a sua missão topográfica mas encontra concorrência num grupo de alpinistas inspirados por técnicas de escalagem ocidental denominado "Clube japonês de Alpinistas" que tenta conquistar as alturas íngremes antes dos nossos heróis. Kimura, aproveitando a sua experiência passada como director de fotografia, beneficia do cinemascope para distender as paisagens avassaladoras do topo das montanhas, filmando a perseverança dos exploradores e fazendo sempre relembrar a sua fragilidade quando contrapostos à grandeza natural que permanece à espera de ser superada. Neste sentido, para além da narrativa simples, mas aventureira (quiçá demasiado simples para ser realmente marcante), aqui o interesse principal será a maneira como o mundo natural está captado na fotografia cuidada: tempestades de neve, chuva, vento e sóis vistos por entre as nuvens deixam-nos a pensar sobre as relações entre homem e meio e com frequência vislumbramos nesse confronto ou coexistência uma subtileza e uma suavidade que está também presente na banda sonora "clássica" que vai de Bach a Vivaldi.



Be My Baby (2013) de Hitoshi Ohne: ***
A segunda longa-metragem de Hitoshi Ohne, realizador mais experiente na televisão do que no cinema, não poderia ser mais inesperada. Após o juvenil e humorístico projecto do pequeno para o grande ecrã,  Love Strikes, que relatava a primeira paixão de um repórter cultural por uma colega comprometida, Ohne aceitou a proposta do cineasta e produtor Masashi Yamamoto (lembram-se desse exercício desolado que era Carnival in the Night?) para mergulhar em territórios mais pessimistas e adaptar a peça não menos negra de Daisuke Miura sobre os relacionamentos de nove jovens adultos precários em apenas quatro locais (os seus quartos), com um orçamento apertado e um prazo de filmagem muito limitado (diz-se que as rodagens duraram apenas quatro dias). O resultado é francamente inspirador. Isto deve-se à realização não comprometida de Ohne, ao argumento explosivo de Miura que traça a hipocrisia e o turbilhão confuso dos valores e atitudes não esclarecidas que norteiam os namoros de uma certa franja social e, finalmente, as prestações dos quase inexperientes actores - talvez a maior surpresa acabe por ser como nos afeiçoamos não à índole, mas à gradual descoberta da podridão ética dos visados. Be My Baby, apesar de poder ser visto como comentário social a uma tribo urbana japonesa caracterizada por jovens desempregados, marginais, sem educação superior e com uma indumentária muito reconhecível, ganha se superarmos essa especificidade e nos concentrarmos na dimensão mais geral dos relacionamentos, ou melhor, na forma como os relacionamentos aqui são tratados (como confronto de perspectivas fechadas e não como possibilitadoras de diálogo). Não podemos fechar os olhos ao papel das mulheres nesse turbilhão do amor, entes confinados à humilhação, à obediência ou a uma transgressão que se limita a ser amante, factos que só são alterados quando elas tomam decisões irrevogáveis. Os homens, à excepção de um caso isolado e outro mais discutível, vivem do poder que exercem sobre as mulheres e dos julgamentos que delas fazem: um namorado controlador que parece nunca estar contente com a devoção da cara metade, o seu irmão que desenvolve uma teoria inacreditável sobre a infidelidade fiel (pode trair a namorada porque a ama?) e ainda outro franzino personagem que usa a simpatia e a paixão de uma rapariga menos atraente para tratá-la como uma serva, aproveitando os comentários nefastos dos seus amigos para dar força ao seu comportamento vil. Be My Baby serve-se ainda da montagem para fazer raccord entre os diferentes quartos e as conversas cruzadas, solidificando os diversos comportamentos e diagnosticando-os a uma só luz, o que nos fornece torrentes furiosas de diálogos (extra espaciais) e momentos unificados de crítica cerrada como se todos os personagens fossem apenas um. Podemos questionar o cabimento da revelação do final (que poderá tornar incoerente certas cenas passadas relativas a uma personagem), mas não há dúvida que esta é uma película audaz, quase vanguardista que faz de muito pouco, bastante e que, finalmente, parece condenar as relações entre homens e mulheres a um redemoinho que acaba sem solução num confronto de perspectivas surdas. Uma revelação.



0.5 mm (2014) de Momoko Ando: **
A terceira idade nunca foi uma temática inédita no cinema japonês e nos nossos dias ela surge com uma pertinência ainda maior, pois inevitavelmente as sociedades contemporâneas, devido ao aumento da esperança média de vida e ao consecutivo decréscimo da natalidade, encontram-se numa situação em que os idosos são mais numerosos do que os jovens. Os últimos não sabem o que fazer aos primeiros e os idosos, os primeiros, deparam-se com os perigos da idade, as demências, inclusive a chegada da morte isolados e em total apatia como cadáveres adiados que vagueiam. Se muitas vezes a terceira idade foi filmada a partir do núcleo familiar (pais e filhos ou, por exemplo, netos e avós), a segunda longa-metragem de Momoko Ando parte de uma premissa inteiramente diferente: Sawa, uma cuidadora de idosos, cumpre o último desejo de um cliente senil (deitar-se uma noite a seu lado) e acaba por pegar fogo ao colchão de forma involuntária, enquanto a filha do velhinho em apuros se enforca no meio do rebuliço. Perdendo qualquer credibilidade para voltar ao trabalho, sem dinheiro e sem casa, seguimos a epopeia vadia de Sawa que continua insistentemente a travar conhecimento e a interessar-se pelas almas anciãs que tristemente se arrastam pelas ruas, ignorados e sem companhia. Momoko Ando, que já no seu insuficiente Kakera: A Piece of Our Life demonstrava afinidade por personagens castiços nas bordas do socialmente aceitável faz da sua protagonista (brilhantemente interpretada pela sua própria irmã, Sakura Ando) não um ideal de santidade, mas alguém que demonstra, à sua maneira e com todas as suas idiossincrasias, o fascínio por estas existências, não esquecendo os frutos e os elogios do seu ofício auto-imposto. Com quase três horas e meia, é impossível não observar em 0.5 mm alguns desequilíbrios: a começar pela duração, demasiado extensa para uma película que se constrói por colagem de blocos e não pela articulação das suas partes e acabando na insuficiência do terceiro acto, que podia ter sido substituído ou até cortado por completo. Vale-nos a siderante prestação de Sakura Ando, o poder magnético da sua estranha e teimosa personalidade e certas cenas em que vemos o outro lado da terceira idade filmado por alguém que não tem pruridos nem faz cerimónias.



Oh Brother, Oh Sister! (2014) de Masafumi Nishida: **
Nada em Oh Brother, Oh Sister nos surpreende mas nada nos igualmente aborreceu. A história de um irmão recém-separado e de uma irmã celibatária serve de pretexto para suavemente entendermos os prós e os contras da sua relação quando ambos se deparam com possíveis e novos interesses amorosos. Há aqui momentos calorosos, especialmente por causa de Hairi Katagiri, a comediante que interpreta a irmã e que faz um bom trabalho em jogar com a extravagância da sua personagem e o seu lado menos atraente, relembrando algumas vezes (especialmente na cena final) o grandioso personagem interpretado por Kiyoshi Atsumi, Tora-San. O realizador Masafumi Nishida fez um filme que pertence à longa tradição japonesa de representar o quotidiano, explorando a importância dos laços familiares (ou o que restam deles) e pincelando com humor de situação os percalços da vida social e o relacionamento com os outros que não ocupam a esfera mais caseira. Uma menção para o já referido final onde se transforma aquilo que poderia ter sido o desfecho de uma comédia romântica vulgar num desenlace mais sóbrio, próximo do real e que afina no diapasão daquela conhecida sentença: a emoção maior jaz na desilusão de uma situação não resolvida.



As the Gods Will (2014) de Takashi Miike: **
O novo filme de Takashi Miike poderia assemelhar-se a um restaurante estrelado pela Michelin a servir fast food gordurosa mas irresistivelmente viciante: sabemos que não faz bem à saúde mas continuamos a ingerir o pecado como gourmets. No seu âmago, As the Gods Will é puro trash de alto orçamento, horror de sobrevivência surreal que nem pede licença para entrar e logo na primeira cena esmurra-nos no estômago e esfaqueia-nos a sensibilidade. Sem quaisquer justificações, introduções ou boias de salvamento, uma classe inteira vai sendo dizimada por um monstruoso boneco Daruma que, jogando uma versão extrema do "macaquinho do chinês", faz explodir as cabeças daqueles que não mantêm a rigidez corporal quando este se vira e termina a contagem. Desta mistura sádica e cruel entre inferno e infantilidade (todos os desafios são inspirados em brincadeiras tradicionais japonesas) não saímos mais e nem Miike (levando os limites do big budget movie ao paroxismo do sangue) está interessado em ajudar-nos a entender as razões implícitas e explicitas dos massacres sumários dos estudantes nem as circunstâncias da sua reclusão. Quem são os responsáveis? Porquê tanta competitividade alucinante? Como tornar as motivações dos personagens, excluindo a de não perder o jogo e morrer, inteligíveis? Todas estas perguntas ficam suspensas no ar enquanto são encenados jogos mortais com requintes de malvadez, tão aleatórios e inusitados na sua execução que só a lógica dentro da absurdidade pode salvar os estudantes desesperados de não serem caçados pelos antagonistas que nunca conhecem. Ainda a propósito dessa imprevisibilidade: Miike não perdoa e não se coíbe de executar aqueles personagens que julgávamos intocáveis, mantendo sempre um nível de novidade dentro da tortura que tem de ser elogiado pela sua coragem, desapego e vontade de surpreender, sempre chocando. Claro que sendo uma película trash para as massas, As the Gods Will aposta tudo na imediatez da sua premissa (eis a dissidência com o demasiadas vezes comparado Battle Royale) em que os desafios da barbárie pedem sobreviventes (nós) a subir os degraus da escada e ver até onde chega a insanidade a que foram submetidos. Mas a revelação apressada do final, inacreditavelmente ridícula ou a pedir sequela (?), é digna dos manguitos que várias e várias vezes Miike aplicou nos seus finais onde a lógica é posta de parte e somos forçados a celebrar toda a impostura.