13/06/13

Fragmentos de 2013/06/13



Charge! Hooligans of Hakata (1978) de Sogo Ishii: **
Realizado ainda em Super-8 e com um orçamento obviamente reduzido, Sogo Ishii usava a sua determinação e o seu espírito caracteristicamente insolúvel e rebelde para, na sua primeira longa-metragem, dar voz aos gritos da revolta sem orientação de um grupo de rufias que descobrem uma arma e causam o caos. Alguém disse uma vez que mesmo os primeiros filmes de Ishii são embriões de uma certa parte da estética independente dos anos 80 e parte dos 90. Certamente conseguimos ver aqui o nascimento de um certo tipo de niilismo despido de emoção, associado à violência sem sentido - algo que os últimos filmes yakuza de Fukasaku, uns anos antes, também já preconizavam. No entanto, Ishii não dá quaisquer descanços, seja nas execuções sumárias dos protagonistas, seja no rebuliço efervescente que encena no último terço, com correrias, perseguições e massacres urbanos pelo caminho. Mesmo com o editing rudimentar e os atrasos tecnológicos, Ishii injecta muito da sua marca punk neste desolador exercício.



Female Teacher Hunting (1982) de Junichi Suzuki: ***
O filme erótico tem uma propensão inquestionável para criar atmosferas hipnóticas mesmo que o seu conteúdo politicamente incorrecto e carnal faça crer que preocupações mais artísticas não lhe dizem respeito nenhum. Junichi Suzuki, representante de uma nova vaga dentro da roman-porno, consegue aliar momentos de brutalidade sexual com imagens posteriores de uma desolação particular, como se houvesse uma necessidade de se filmar constantemente os processos de lavagem corporal e espiritual das personagens abusadas, depois de terem entrado na promiscuidade umas com as outras. O modo como se filma, por exemplo, a água (anulação da violação, prosseguimento do corpo na vida) e o fogo (consumo de objectos de desejo) parece apontar para uma visão simbólica e primária dos motores e das energias que nos fazem mover. Há aqui qualquer coisa de universalmente simbólico e de primariamente mítico.



She Cat (1983) de Shingo Yamashiro: *
Não obstante alguns planos mais aventurosos e um sentido estético pouco ortodoxo, a realização do actor Shingo Yamashiro peca por inconsistência. Em primeiro lugar, trata-se de um roman-porno sintomático de uma exigência de renovação temática, ao mesmo tempo fugindo dos cânones usuais associados a esse género e aproximando-se timidamente da velha Nikkatsu action, produções pessimistas que tinham feito furor no final dos anos 50 com gangues e gangsters dissidentes. Yamashiro, no entanto, encontra alguma dificuldade em romper com a estética de elevador (como eu gosto de chamar) do seu tempo. Não falamos apenas da música arrepiante, mas de uma qualidade melosa e foleira de gravar as emoções dos seus personagens, como se tudo estivesse forrado a púrpura. Isto contrastado com o tratamento bruto dos vilões yakuza gera uma mistura explosiva, algo imprópria e repleta de lugares comuns. She Cat é um exercício frio e distante que nunca chega a transcender a mixórdia de temas e géneros que enceta.



Endless Waltz (1995) de Koji Wakamatsu: ****
A biografia do irado e inquietante saxofonista Kaoru Abe sempre tinha sido aliciante para uma adaptação cinematográfica, como se a vida de certos artistas preenchesse uma imagem única que extravasa as relações vulgares, criando um modelo segundo o qual todos nós podemos ver, por subtração das nossas vidas, um ser que nunca pertenceu bem a este mundo. Kaoru Abe atingia momentos de intensidade avassaladoras com o seu instrumento (como nunca houve antes e depois dele) e de alguma forma apenas um homem perdido consegue criar um som perdido, apenas um ser caótico se entrega ao puro som da espontaneidade, dissolvendo a sua vitalidade e tudo o resto numa bruma inconsistente. Esta versão cinematográfica de Abe - uma extensão quase lógica da sua produção musical, portanto, fidedignamente retratada como alguém na busca dos limites da sua arte - chega mesmo a dizer que "apenas a fealdade é verdadeira" e que sente uma atracção fatal por realidades desconexas. A vida do artista com os outros (Wakamatsu concentra  quase todo o seu tempo na dimensão conjugal com a escritora Izumi Suzuki) é um reflexo desta declaração de intenções estéticas que quase atinge contornos ontológicos. Trata-se de uma experiência a dois completamente marginal, fora dos cânones comportamentais mais recorrentes e primários. Na maior parte do tempo, vemos um casal irregular cuja existência se confunde com a loucura. Como se a base do lirismo embriagado dos ecos libertados pelo saxofone amargo de Abe fosse a sua própria experiência desesperada de vida, procurando-se e entregando-se aos sons que o momento lhe fruía.



Crime or Punishment?!? (2009) de Keralino Sandorovich: **
Keralino Sandorovich (ou Kera) é famoso no Japão principalmente por estar associado ao humor absurdo. O seu trabalho para cinema não difere quase nada das suas propostas teatrais, se bem que este tipo de paródia ad nauseam seja hoje difícil de nos surpreender - como nos surpreenderam, há dez anos atrás, as primeiras peças que iniciaram esta moda. Resta-nos dizer que, no cômputo geral, as piadas falham mais do que acertam, mas isso é porque Kera faz um esforço inglório para nunca entediar o espectador (por exemplo, no domínio visual, há sequências que por serem tão cuidadas causam gargalhadas), embora a narrativa seja tão ao sabor do ridículo que facilmente se esfuma a complexidade que o humor absurdo parece sempre prometer para o espectador mais atento. Por momentos, fez-me lembrar uma versão mais fraca da estética cómica dos primeiros filmes de David Zucker (Airplane, os Naked Gun): imerso na sua própria farça e amante de uma bizarria surreal. Estranho? Muito. Hilariante? Raras vezes.



Mitsuko Delivers (2011) de Yuya Ishii: ***
O cinema de Yuya Ishii não é para todos. Há quem ame, há quem odeie. Por aqui situamo-nos no meio termo. Os seus primeiros quatro filmes são um bluff e de alguma forma construiram uma fama de jovem génio totalmente errada (não esquecer que Yuya só tem 30 anos e já tem 9 longas-metragens assinadas). Na nossa opinião apenas Sawako Decides firmou o estilo discreto e bizarro das suas outras produções. Apenas esse filme - que tinha sido um dos sucessos de 2010 - equilibrava a balança entre as personagens idiossincráticas e um sentido de humor vagaroso e refinado. Com Mitsuko Delivers, Ishii prosseguiu com a fórmula vencedora desse seu único filme digno de reverência. Mitsuko está grávida de um afro-americano (ausente durante a acção narrativa) e volta para o bairro onde passou a sua infância. Tal como em Sawako Decides, Ishii filma uma mulher castiça que aprende a resolver os problemas corriqueiros  da comunidade à sua volta. Mas, precisamente, aqui só há espaço para o corriqueiro, para o silêncio humorístico de quotidianos estranhos. Envolvendo-nos neste mundo, rapidamente percebemos a metáfora das nuvens que seguem o seu rumo quando o vento as leva, sendo a sabedoria dos homens aquela que escolhe os melhores ventos. A mensagem de Mitsuko Delivers pode ser simplesmente aquilo que a música nos dizia, "que sera, sera", mas pode também ser consagrada no ditame latino "amor fati": este amor incondicional por aquilo que o destino nos oferece (que em termos imagéticos está fechado no final abrupto durante o parto). Qual das duas expressões ecoa melhor, depende apenas do espectador. A mensagem é a mesma.



Petrel Hotel Blue (2012) de Koji Wakamatsu: *
À primeira vista um Wakamatsu que prometia uma recuperação e revitalização não só de certas imagens antigas como de um sentimento alegórico, típico das suas produções dos anos 60, revelou ser um exercício bastante imaturo e entediante, onde até mesmo a crítica a figuras de autoridade (a polícia) aparece demasiado forçada e sem jeito. Mesmo assim não deixo de considerar a hipótese de que se este frágil e desinteressante argumento fosse filmado durante a época de ouro de Waka poderíamos ter assistido a imagens bem mais poderosas e sequências eróticas como só o estilo do realizador de Go, Go Second Time Virgin nos habituou. A triste verdade é que a mise-en-scène aqui nunca traduz a energia contagiante nem o registo digno de epifania das suas obras mais conhecidas. Um desperdício.



Lesson of the Evil (2012) de Takashi Miike: **
Desde pelo menos Sogo Ishii que o cinema japonês encontrou maneiras de invadir o quotidiano fílmico mais inofensivo com retratos escapistas de violência crua e dura, exercida por loucos aparentemente sem razões, para gáudio de uma plateia com uma tipologia diferente da de então. Queria-se que os vilões tomassem a dianteira de uma vez por todas, queria-se que ocupassem um espaço realmente aterrorizador. Por isso mesmo, os dois Panic in High School de Ishii (tanto a versão curta auto-financiada de 76 como a subsequente adaptação de 78 apoiada já por um grande estúdio, a Nikkatsu) eram filmes slasher em sentido estrito: colocavam um estudante psicótico com uma caçadeira aos tiros pelo recinto escolar até ser executado friamente pela polícia. Este tipo de filme que nasceu no Ocidente conseguia misturar o medo dos personagens serem apanhados pelo monstruoso assassino, com o prazer sádico de observar algumas (mas não todas) as mortes. Trata-se de um género em tudo semelhante às escondidas e apanhadas das nossas brincadeiras infantis e que oscila, portanto, entre sacrifícios absurdos e um certo voyeurismo (e portanto, interesse) na brutalidade atroz. Ora, Lesson of the Evil tem o melhor e o pior do slasher movie. Num certo sentido, herda uma amoralidade que se consubstancia num tratamento impudico da violência e alarga essa representação a um mesmo espaço fechado, gerando um pânico meio surreal do lado das vítimas. Noutra acepção, precisamente porque Miike não se restringe totalmente à carnificina (relega-a para a segunda metade), há alguma incoerência entre a passagem de géneros e onde se nota isso melhor é na construção mental do antagonista: é notória uma carência tanto de um perfil psicológico como de motivos para a acção do professor psicopata. Podemos dizer que na segunda metade assistimos ao vilão típico de um slasher (silenciosa e simplificada máquina de morte), sendo que a primeira metade nos prometia um personagem mais complexo e com um passado mais desenvolvido. Contudo, Miike soube muito bem posicionar a sua câmara para captar as idiossincrasias de um massacre, nunca esquecendo o olho que o vê e toda a componente de grande espectáculo associado ao gozo macabro da violência pela violência - veja-se como o "standard" jazz Mack the Knife é usado como recorrência grand guignolesca. De facto, estamos com o pé em território miikiano, a despeito das imprecisões e de algumas jogadas de argumento pouco credíveis.