30/12/14

Fragmentos de 2014/12/30



The New Way - Akemi's Part (1936) de Heinosuke Gosho: ***
The New Way - Ryota's Part (1936) de Heinosuke Gosho: **
Com um argumento de Kogo Noda (o habitual ozuniano Kogo Noda), The New Way divide-se em duas partes distintas, não só por estratégia de marketing - era habitual na altura separar em duas partes, histórias mais longas do que o costume (também Mikio Naruse e Hiroshi Shimizu o fizeram) - mas principalmente porque Akemi's Part e Ryota's Part diferem completamente um do outro em termos de significado e energia da sua protagonista moderna (sem ainda assim demonstrar uma agenda política qualquer ou grandes inclinações esquerdistas: o moderno aqui não é panfletário mas próprio da personagem). A primeira parte explora as vidas afectivas de duas primas em plenos anos 30: a forte e alegre Akemi que evita o casamento planeado pelo seu pai enquanto saí com um homem seu conhecido e Utako, uma mulher mais feminina que está apaixonada por um pintor que viajará para França e a deixará só por dois anos. O segundo capítulo, por sua vez, tenta serenar a tragédia que fecha o primeiro acto, incorporando a devastada Akemi num esquema social mais tradicional onde, porventura, poderá conhecer tempos mais felizes ao lado de um homem que aprenderá a amar. Vale a pena citar os elogios de Jake Savage no seu blogue Cinema Talk sobre a prestação magnética de Kinuyo Tanaka no primeiro filme: "Em vez de se tornar uma Jean Arthur japonesa, a interpretação de Tanaka é algo totalmente novo. Nos dois relacionamentos retratados, ela consegue de algum modo ganhar o controlo. Correndo o risco de menosprezar as imagens de Gosho, esta é uma película de Tanaka e é abastecida pelo seu empenho." De facto, não podemos mesmo discordar desta análise. A Tanaka de Akemi's Part é bem mais interessante e sedutora do que a de Ryota's Part: ela não questiona radicalmente o sistema social nem a eventualidade de um relacionamento com um homem, mas troça e ri-se de algumas convenções e das limitações sociais do seu sexo. Ela fuma com charme, tem sempre resposta e emana o tal sentimento da modernidade que, por exemplo, a sua prima Utako não tem (essa obediência ao caminho velho será capital para a má decisão que Utako tomará em Ryota's Part). É por isso que o cliffhanger do primeiro filme é particularmente tocante (e talvez não houvesse necessidade nenhuma de um segundo filme), porque contrasta a perda amorosa e injusta de Akemi com a sua reacção de simultâneo pânico e tenacidade: de costas e com o passo apressado, não correm lágrimas (como seria esperado de uma mulher).



Children Who Draw (1956) de Susumu Hani: ****
Documentário muito referenciado mas raramente visto, Children Who Draw é o segundo capítulo da trilogia de Susumu Hani sobre as primeiras experiências sociais das crianças. Com o subtítulo "Entendendo a arte das crianças", este pequeno filme com pouco menos de 40 minutos, encara os desenhos infantis como a extensão imediata das arrelias, tristezas, sonhos e obsessões inexplicáveis dos pequenos desenhadores, sendo que a componente abstracta e aparentemente redutora das figuras e das formas revela um modo único de transfigurar as experiências concretas (até exorcizar certos demónios) libertando uma criatividade e imaginação que se descobre a cada rabisco e pincelada . Hani foi várias vezes considerado um cineasta da autenticidade, tanto na maneira como quebrava as barreiras das suas ficções (sempre cunhadas com o real que as extravasam) como na escolha dos sujeitos das suas filmagens, esses ainda não totalmente afectados pelas normas da sociedade. As crianças filmadas por ele não têm consciência da câmara (e apenas uma proto-consciência delas próprias) e, tal e qual como nos seus desenhos sem filtros, representam a maior transparência possível na maneira como se comportam, como lidam com os outros e como assimilam as experiências em seu redor, em suma, na maneira como crescem e aprendem. É preciso, portanto, escutar o narrador que muitas vezes nos aponta para o progresso individual de cada criança apoiando-se nos novos desenhos por eles feitos. Esse nexo causal (ainda hipotético e obscuro) faz-nos olhar de outro modo para a "arte infantil", maravilhosas peças místicas que nos deixam aceder ao mundo complexamente simples das crianças.



The Flame of Devotion (1964) de Koreyoshi Kurahara: ****
Contado a partir do fim com uma estrutura de memórias aos retalhos (impressionante notar como as imagens durante, pelo menos, a primeira hora de filme vão dando lugar umas às outras através de sobreposições e fades, como se a memória ela mesma funcionasse por evocações e invocações, sístoles e diástoles recordativas), The Flame of Devotion representa o ideal máximo da paixão, um sofrer querendo, um erotismo dos corpos e das almas - que dizer, portanto, das sequências terrivelmente eróticas porém inocentes dos banhos despidos nos mares ou das brincadeiras por entre as ervas altas? - enfim, uma aprovação da vida na própria morte, como já nos dizia Georges Bataille. E é mesmo sobre isso que o drama trágico dos apaixonados de Kurahara incide: a conquista do paraíso através do outro e a perda subsequente desse agente que sustentava o peso do mundo. A presença inefável de Ruriko Asaoka como amada e amante representa o ponto nevrálgico de todo o filme. Ela, que é a senhora do mar e das montanhas, caminhante noturna e solitária por entre o fumo morno dos comboios (sim, a cinematografia é assim tão expressiva!), ela que é temente dos mensageiros e das mensagens da guerra sem sentido que ceifa os homens sem razão e deixa as mulheres penando em silêncio e surdina, ela que é apenas uma mulher com uma tenacidade inacreditável, miraculosa mesmo quando confessa ser fraca e não ter nenhuma. The Flame of Devotion, com a sua fotografia brilhante e lírica e com a interpretação minuciosa da sua protagonista, consegue tornar autêntico e palpável todo o exagero romântico de um amor que significa a vida, que é maior do que a vida.



Hymn (1972) de Kaneto Shindo: ***
Ao adaptar Shukinsho, o famoso conto de Junichiro Tanizaki que levantou alguma celeuma literária devido ao seu registo ambíguo, Kaneto Shindo quis reafirmar alguns lugares comuns sobre a relação de extrema devoção de Sasuke a Okoto enquanto que outras evidências das adaptações cinematográficas surgem diferentemente, chegando mesmo a ser desviantes. Visto que se trata da sua primeira produção Art Theatre Guild, Shindo teve a necessidade de abrir o filme num registo semi-documental (o que significa que a "verdade" do documentário é encenada), mostrando-se a si próprio de costas para a câmara, primeiro numa visita à campa dos amantes e depois fazendo uma entrevista, mais uma vez forjada, àquela que testemunhou em primeira mão o relacionamento - aqui verdadeiramente sado-masoquista - da cega Okoto, mestre de koto e shamisen, com Sasuke, o discípulo submisso. Teru, a empregada da casa, recorda-se do que se passou, sempre em diálogo com o próprio realizador, e confronta as suas memórias com o relato escrito de Sasuke, supostamente a versão mais fiel dos acontecimentos. Neste jogo de vozes e neste questionamento da autenticidade do que está escrito talvez se mencione, ainda que de maneira subliminar, toda a discussão feita por escritores e críticos em torno do que realmente se passou nesta criação literária aparentemente tão ideal e pura. Portanto, nesta versão carnal, à flor da pele onde o sexo e as necessidades corporais tomam a dianteira, foca-se sobretudo o poder erótico e à primeira vista assimétrico da mestra pelo seu discípulo e como essa forma de duplo aprisionamento (a mestra só ordena na medida em que tem alguém para ordenar) cria uma necessidade retorcida e egoísta de se afunilar o mundo em prol da obsessão pelo outro - a obsessão de servir e a de ser servido. Com efeito, a relação não assumida de Sasuke e Okoto é descrita como egoísmo a dois: em simultâneo, veja-se o abandono sucessivo dos bebés bastardos que geram em segredo, e individual, quando mesmo na auto-cegueira de Sasuke, que na versão de Yasujiro Shimazu significava não só a maior abnegação possível como o abandono pelo mundo irreal das sensações, encontramos uma substituição de sentidos (a visão pelo tacto) ainda mais prazerosa e sexualmente gratificante para os dois (e que planos deliciosamente oníricos, esses da cegueira). Shindo, no entanto, não despreza nem menoriza esta obsessão. Chama-a de amor intenso e relata-a como uma das formas mais violentas e passionais de apego e afectação. Nesse momento, ainda que de maneira completamente diferente, Hymn reencontra a força da narrativa original mesmo quando se desvia dela a todo o custo.



Poem (1972) de Akio Jissoji: *****
Akio Jissoji deixou-nos um legado cinematográfico tão importante que o seu nome deveria ser dos primeiros a ser proferidos quando se fala de cinema japonês. A trilogia a que se resolveu chamar "Sexo e Religião" (composta por This Transient Life, Mandala e este Poem) representa um dos grandes marcos do cinema mundial no que diz respeito ao casamento entre a audácia formal presente na arquitectura dos planos (que induzem à transiência e à meditação) e a capacidade abstracta, subversiva e filosófica dos problemas únicos que levanta. O universo perversamente religioso de Jissoji será sempre motivo de maravilhamento e redescoberta para nós, provando, em última análise, que o ofício do cineasta se resume a desregular o olhar e através dele a mente, o que lhe permite criar contradições deveras exóticas e enigmáticas: espaços poéticos, corpos sexualmente cruéis, tendências ascéticas de recusa do mundo terreno e um universo obliterante de erotismo e sonho. Sempre nesta trilogia houve uma componente dialógica (e nunca ninguém filmou diálogos como Jissoji) e os três filmes apontam para diversas possibilidades de confronto entre as visões radicalmente heterogéneas dos personagens. É nesses antagonismos vivenciais e considerativos que reside a tensão lancinante. É a negação do presente (do "tempo" ele mesmo em Mandala) que conduz ao fascínio religioso e, como dizia alguém, os filmes de Jissoji são bastante mais representações radicais de revolta do que examinações profundas da fé. Em Poem, as referências budistas estão ainda mais apagadas do que nos dois filmes anteriores e a função abstracta do monge parece exercer um poder simbólico que contrasta e acompanha os demónios interiores de Jun, um jovem obstinado que assiste à lenta queda dos sucessores da antiga família Moriyama a quem jurou fiel vassalagem. A radical obediência de Jun às regras que ele próprio criou, e que por vezes vão no sentido contrário daquilo que o seu senhor deseja, prova a sua busca impossível pelo ideal feudal dos antepassados (cujas inscrições funerárias venera e deseja copiar) num mundo prestes a colapsar, deslocado de referências, fortemente selvagem e capitalista; um mundo onde os vivos estão mortos e os mortos deveriam estar vivos. Se o anti-herói de This Transient Life, talvez o mais dostoievskiano dos seus personagens, corrompia o sistema familiar activamente porque, no seu ponto de vista, não existiam leis no mundo terreno, Buda e o paraíso eram o Nada e o Inferno era o local mais humano de toda a "suposta" criação celeste, Jun, o mais mishimano dos seus personagens, enraíza até às últimas consequências o ditame latino "ora et labora" e leva uma vida mortificada entre os espectros (e que fotografia tão assombrosamente escura a deste filme!), acreditando desesperadamente, através da obediência cega ao dever, na salvação da família pela "forma" de agir e não necessariamente pelo conteúdo. Poem representa, portanto, o último acto de revolta: a de quem luta contra o caos generalizado, invisível, com a máxima e mais inquestionável ordem como um monge. Nesse sentido, precisamente por abranger a degenerescência esta é a obra mais amargurada de toda a trilogia, que tinha anteriormente optado pelos caminhos inversos: a desordem individual contra a ordem social em This Transient Life e a desordem grupal contra si mesma em Mandala. No entanto, o mesmo destino é partilhado para quem comete a coragem pecaminosa da transgressão quando todas as máscaras caem: a morte, o suicídio, o sonho ou os três juntos.



Love Bombs (2013) de Nobuteru Uchida: **
Tinha já denunciado os pecados da anterior tentativa do estreante Nobuteru Uchida: típica produção independente com uma estética confusamente imediata onde o baixo orçamento se notava mais do que era suposto. Após as críticas, acabei também duvidando. O realizador poderia estar só a lutar contra os óbvios problemas de um filme com essa escala e as escolhas técnicas poderiam ser apenas "males menores" para chegar onde queria e completar a tarefa. Por seu lado, com Love Bombs muitas das dúvidas de qualidade e competência ficam esclarecidas. Uchida sabe como colocar a sua câmera e o uso do plano fixo (contrapondo aos tremeliques irritantes do seu anterior filme) funciona como forma de enquadrarmos os personagens em espaços familiares e sedutores. Algo que já tínhamos elogiado anteriormente era a direcção de actores e este caso também não é excepção. Kiyoko, uma mulher misteriosa chega a uma aldeia e é acolhida por uma idosa simpática que não lhe faz muitas questões. A pequena comunidade, que praticamente não tem mulheres jovens mas tem muitos homens, fica abalada pela presença sedutora de Kiyoko, tornada de repente aos olhos de todos numa mulher fatal. Há duas interpretações acerca da figura clássica da mulher fatal: ou ela é directamente responsável pela ruína das homens que seduz (não é preciso irmos ao Antigo Testamento e a Lilith quando temos a Susana de Buñuel) ou indirectamente e por onde passa, deixa um rasto triste de sensualidade, pois todas as relações com o sexo oposto podem ser secretamente reduzidas à tensão sexual no outro provocada. Uchida em Love Bombs explora a segunda hipótese. Kiyoko, presa na sua feminilidade submissa e na pressa de fugir do passado da grande cidade, o que quer que fizesse sempre veria homens interessados por ela. Um dos pontos altos do filme é certamente esta revolta contra a sexualidade subjacente no contacto com o outro sexo e a hipótese de nem todas as mulheres fatais serem assim tão fatais, mas "como animais perdidos", à procura de sair desse rótulo que aprisiona mais do que liberta.



Rurouni Kenshin - Kyoto Inferno (2014) de Keishi Otomo: ***
O segundo filme das aventuras do lendário Battosai é também a primeira parte (de duas) centrada na melhor e mais aguardada saga do manga escrito por Nobuhiro Watsuki, isto é, a batalha contra o aterrorizador Makoto Shishio. Kyoto Inferno, à semelhança do seu predecessor, continua bastante fiel ao espírito do original, mas não deixa de tomar algumas liberdades que podem ser criticadas pelos admiradores mais hardcore da série. No entanto, é preciso ser muito purista para desprezar totalmente a forma como Otomo condensou aproximadamente cinco volumes e meio da obra original (da metade do volume 7 ao 12) sendo que os "problemas de adaptação" podem ser justificados, parcialmente, pelo salto da saga de Aoshi Shinomori, que deveria ter ocorrido entre a acção do primeiro filme e a aparição de Shishio. Sem dúvida, todas as cenas com Aoshi são desnecessárias e colocadas à pressão, apenas para introduzir o rival imprescindível do original, mas aqui sem motivações relevantes e com uma personalidade longe de ser convincente. Outras mudanças, que se justificam pela obrigatoriedade de num filme se ter de juntar todas as pontas soltas, são o pouco tempo dado a certos personagens (por exemplo, Misao Makimachi, a companheira de Kenshin em Kyoto, reduzida a figurante) e a quase inexistência de outros (poderíamos ter tido algumas introduções para os restantes membros das Dez Espadas de Shishio...). Tendo em conta as limitações das versões live-action de mangas e animes feitas pelos grandes estúdios, esta será certamente uma das melhores que poderíamos ter tido. Takeru Sato continua a ser um excelente Kenshin (e volto a reiterar a dificuldade em torná-lo convincente e não resumi-lo a mera caracterização ou cosplay) e outras prestações destacam-se pela positiva: Ryunosuke Kamiki como o perigosamente inofensivo Sojiro Seta, Yosuke Eguchi como Hajime Sato e, finalmente, Tatsuya Fujiwara como Makoto Shishio, não tão estratega e cerebral como no manga, mas um vilão muito ameaçador e psicopata. Se continuarmos por este caminho e se no terceiro filme, Rurouni Kenshin - The Legend Ends, se modificar alguns pecados, toda a trilogia terá um lugar especial para àqueles que, como eu, já não confiavam nas adaptações em imagem real de mangas.

14/12/14

Fragmentos de 2014/12/14



Big Time Gambling Boss (1968) de Kosaku Yamashita: ***
Apesar de ser o quarto episódio de uma saga com sete capítulos e de pertencer a um esquema industrial de produção, Big Time Gambling Boss é talvez o mais lendário dos ninkyo-eiga. Paul Schrader, um dos críticos ocidentais que primeiramente teorizou sobre esse género tão especial, chegou mesmo a classificá-lo como o mais perfeito dos filmes yakuza e alguém como Yukio Mishima, fetichista da tragédia honrosa, equivaleu-o, em termos de escala e dimensão, às tragédias clássicas. Qual a razão desta devoção se aparentemente tantas produções copiavam o mesmo universo melodramático das rivalidades entre clãs e irmandades, em suma, replicando uma e outra vez as mesmas narrativas e os mesmo esquema de heroísmo e martírio. Provavelmente, porque em Big Time Gambling Boss as relações entre os personagens são bastante mais ricas e não se resumem ao maniqueísmo, por vezes, cansativo e já tão trilhado. Na verdade, a temática dos ninkyo-eiga caracteriza-se essencialmente pela forma como os dilemas morais dos protagonistas, sempre entre o dever e a humanidade, são postos à prova e resolvidos pela via mais radical possível (ou pela morte ou pelo aprisionamento). Nesta intriga, a "traição" ou as traições que abalam o universo vertical da lealdade e honra não são transpostas completamente no exterior, num vilão inquestionável que usa e abusa da bondade e compreensão do protagonista até à sua fúria derradeira, mas assistimos, por contraste, a uma verdadeira guerra de irmãos que não se entendem, mesmo quando pertencem ao mesmo mundo fechado de regras e obediências. Em Big Time Gambling Boss, os imperativos nas acções dos yakuza, a sua teimosia categórica e a dimensão do "dever", afinal tão diferente para cada cabeça, constroem uma cosmologia de fatalidade, desencontro e sofrimento, aqui bastante mais refinada e trágica do que o habitual. Mesmo no duelo final catártico, Yamashita poupa-se à chacina e opta pela elipse que nos lança na violência direcionada, melancólica e brutal de um só indivíduo perante as gravosas consequências morais do seu mundo. Este é, sem dúvida, um dos ninkyos mais esmerados em termos puramente temáticos, um valioso testemunho da sua mensagem, muitas vezes simplificada!



Swords of Death (1971) de Tomu Uchida: ****
Swords of Death, o sexto e último capítulo da saga Musashi Miyamoto, está envolto em muito mistério. Durante bastante tempo pensou-se que Tomu Uchida, com 72 anos e uma doença terminal na altura das filmagens, nunca teria chegado a terminar este inóspito e negro exercício e que teria deixado esse encargo difícil aos seus assistentes, mas segundo a mais recente edição em DVD da distribuidora francesa Wild Side, Uchida não só filmou tudo o que pretendia originalmente como montou o filme no seu quarto de hospital, tendo falecido meses antes da estreia no cinema. Swords of Death é também difícil de categorizar enquanto produto isolado, sequela e fechamento da saga. Repleto de dispositivos formais pouco usuais no chambara (a quantidade inumerável de freeze-frames só podem invocar o sentimento paralítico da morte aqui omnipresente), também a duração reduzida do filme assim como o seu final aberto e pessimista provam a dificuldade de o aceitarmos, tout court, como o filme que fecha as aventuras do tenaz espadachim que dedicou a sua vida ao sabre. Com efeito, como nos explica Fabrice Arduini na introdução, Swords of Death é um ovni na saga (foi o único a ser produzido pela Toei em vez da Toho, como tinha acontecido com os cinco anteriores episódios) e representa, ainda que minimalistamente e sem pretensões épicas, o purgatório do herói constantemente recordando-nos aquele que é considerado, por Arduini e por nós, "o pecado original" de Musashi Miyamoto: a morte da criança e a dizimação do clã inimigo no quarto episódio. Aqui Musashi, cada vez mais solitário, parece saído dos infernos e a sua via da espada (a vida da justiça pela qual desistiu de todas as hipóteses terrenas), mais uma vez, vai desembocar na pura violência e chacina. O antagonista de Musashi, um mercenário que procura vingança, verá o seu filho bebé ser raptado pelo espadachim e é, justamente aí, que todos os papeis se subvertem e tudo se exaspera. Entre a desumanização e a racionalidade extrema do estratega, Swords of Death desconstrói os dilemas e os métodos do herói através da agonia das suas vítimas e cerca o seu universo problemático nas chamas dos infernos e nas lágrimas histéricas de uma criança indefesa. Só assim poderia surgir, escrito a vermelho cor de sangue e do fogo, a seguinte mensagem: "a espada, finalmente, apenas provoca a violência." Terminar tão duvidosa e asperamente uma saga heróica só por si é um acto de coragem e introspecção pouquíssimas vezes visto no cinema.



Demon Pond (1979) de Masahiro Shinoda: **
Para um realizador que pertenceu à geração iconoclasta da Nouvelle Vague Shochiku e desenvolveu sempre uma postura crítica e comprometida face à irrealidade e desonestidade das grandes películas de estúdio, parecerá estranho o fascínio de Masahiro Shinoda pelo fantástico. Desde o surpreendente Himiko, passando pelo assombroso Under the Blossoming Cherry Trees e terminando neste Demon Pond, o fantástico, com forte inspiração folclórica, tomava conta do seu cinema nos anos 70. Essas três narrativas olhavam para a tradição do passado e, ou encenavam vidas hipotéticas de figuras históricas (Himiko), ou esboçavam contos morais sobre a transgressão, o desejo humano e a interferência entre o mundo humano e o fantasmagórico (o que só pode resultar sempre em tragédia e expiação). O início de Demon Pond, adaptação do drama de Kyoka Izumi que por sua vez era inspirado numa lenda rural, é bastante semelhante ao começo de Woman of the Dunes por Teshigahara/Abe: Yamazawa, um professor meio aluado desloca-se à Lagoa do Demónio sem razão aparente. Nas suas caminhadas, damos conta do carácter esquisito dos aldeões e de Yuri, uma habitante que vive perto de um sino e esconde um segredo perturbador. O professor acaba por encontrar um velho amigo desaparecido, Hagiwara, e de seguida aprende a razão do seu isolamento. Ao apaixonar-se pela misteriosa Yuri, ficou responsável por tocar o sino três vezes por dia, firmando um pacto antigo entre os demónios e os humanos e permitindo, assim, uma paz douradora, já que se isso não fosse feito um enorme dilúvio seria provocado pela ira do além. Entretanto, os aldeões queixam-se da seca e começam a responsabilizar o casal pela má colheita e, ao mesmo tempo, a impaciente princesa do lago, depois de receber uma carta de amor, pretende também ela transgredir o pacto e viajar até ao mundo dos homens. Como a maior parte do folclore dramático, Demon Pond caracteriza-se pelo seu confesso fatalismo e, tal e qual como acontecia na mitologia grega, torna real o desejo de transgressão tanto para os humanos como para os deuses. Resta-nos dizer que Shinoda, apesar de usar o talento andrógino de Tamasaburo Bando, não consegue fixar muito bem a concretude das suas personagens, sendo que um certo artificialismo, conjugado com demasiados diálogos e poucas imagens e inspirado talvez em demasia na estética do kabuki, ressalta negativamente. Para além disso, este é um filme onde o fantástico assume uma dimensão demasiado feérica, o que pode fascinar certos admiradores pela componente exótica mas não deixa de incluir uma certa inocência e infantilidade que hoje nos parece datada.



Mermaid Legend (1984) de Toshiharu Ikeda: ****
Como Toshiharu Ikeda conseguiu juntar as críticas da expansão e intoxicação capitalista à fúria de Mizawa, uma mulher possuída pelo espectro da morte do marido, continua sendo um mistério porventura tão insondável e imprevisível como a transfiguração por artes mágicas da nossa protagonista em anjo da carnificina. Mas a verdade é que toda esta simples, mas brutal, mitologia da vendeta e toda esta crítica aos grandes senhores que obliteram o mundo em redor para construir centrais nucleares resulta muito bem. Ikeda, todavia, não nos diz nada de muito novo e com um óbvio espírito maniqueísta coloca a Natureza como a verdadeira heroína face à ganância humana que esqueceu o valor do aproveitamento artesanal dos recursos naturais (veja-se a estátua budista do Jizo soterrada e abandonada no terreno da construção), como se também tivesse esquecido completamente o poder punitivo subjacente a todas as crenças primitivas de devoção pelo Mundo Natural. Portanto, Mizawa, a morte enviada pelos mares, qual sereia letal e indestrutível, dirige-se ao mundo dos homens com sede de castigo, com sede de sangue e sal: pune o assassino do marido que abusa do seu corpo com facadas repetidas até o seu sangue pintar as paredes, afoga o responsável pelo projecto da central na sua água domesticada e civilizada de piscina (em contraponto com a água selvagem profunda e perigosa do mar que quer destruir) e termina numa orgia homicida irada e indiscriminada, perfurando toda a gente com um arpão, como se os maus da fita não passassem de peixes fora de água tão impotentes e pouco ameaçadores como eles. Quando no final voltamos ao mundo idílico dos sonhos, debaixo de água como numa placenta onírica e a perder de vista, não podemos deixar de sentir a melancolia da vingança: um desespero impossível, um reencontro fantasmagórico imperfeito...



Lady Battle Cop (1990) de Akihisa Okamoto: *
O que dizer de um remake straight-to-video japonês de Robocop de Paul Verhoeven com uma mulher no papel principal? A palavra remake talvez não seja a mais acertada, pois Akihisa Okamoto não pretende recontar a história original, mas antes, utilizar um certo imaginário futurista e robótico para apresentar a sua própria versão kitsch de uma polícia que se tornou numa arma de metal para escapar à morte infligida pelo sindicato de vilões (que aqui são vilões desde o momento em que lhes pomos a vista em cima). Historicamente falando, assistia-se a uma era onde a indústria V-Cinema estava a aparecer e a cimentar-se como alternativa mais imediata e caseira aos filmes de acção que anteriormente eram prioridades dos grandes estúdios. Reduziam-se os orçamentos e a qualidade das intrigas, porém apostava-se naquilo que eram produtos direccionados unica a exclusivamente para a acção imparável com os seus tiroteios imprescindíveis, explosões, etc. Nesse aspecto, Lady Battle Cop é um exemplo claro da estrutura directa e seca dos V-cinema - que necessitava de espectadores despreocupados ou com falta de sentido crítico - juntamente com alguns efeitos especiais curiosos mas datados (como as cenas do monstruoso antagonista, Amadeus, que dobra e controla metais com o poder da mente). Para aqueles que gostam de ver inclinações feministas nos exercícios mais industriais, poderá parecer relevante a maneira como a nossa heroína se transforma em justiceira robô: depois de agredida e violada, pede a um cientista que use o seu corpo como cobaia como se este tivesse perdido o sentido de existir e só a frieza da armadura metálica lhe conviesse agora. Sem a deformação facial e corpórea do polícia de Verhoeven, esta lady consegue manter a sua aparência (e até sentimentos) femininos e a sua vingança é, como acontece com a maior parte das heroínas japonesas, um hino de vingança contra aqueles que roubaram a possibilidade de ser mulher.




Nobody's Perfect (2013) de Ryuichi Hiroki: *
Algo que nos vem preocupando acerca da situação actual do cinema japonês são as constantes adaptações de livros que, com o passar dos anos, saturam completamente a indústria e raramente não passam de transposições literais e pouco engenhosas da fonte original. Poder-se-ia dizer que Nobody's Perfect é mais um desses casos, muito embora o seu tema não seja, de modo algum, descartável. Baseado no romance auto-biográfico de Hirotada Ototake com o mesmo nome (que aqui também é actor por motivos óbvios), o filme de Hiroki narra as peripécias de uma turma da primária com um professor que nasceu sem pernas nem braços. Esta, que é uma história verídica e comovente, parece desembocar numa realização demasiado descaracterizada e a própria mensagem de aceitação das diferenças, por mais difíceis que elas sejam, acaba por se tornar muito didática como se superasse as particularidades e o interesse específico de cada personagem.



Crying 100 Times: Every Raindrop Falls (2013) de Ryuichi Hiroki: 0
Mais um "tearjerker" romântico e banal  que prova, em última instância, ser quase impossível passar um ano sem sermos bombardeados com a mesma estética bacoca e os mesmos tiques melodramáticos e nefastos que continuam a ser uma aposta das produtoras. Já escrevi sobre este tipo de filmes noutro lado e aqui me parafraseio (visto tudo neste Crying 100 Times carecer dos mesmos males): "assinalamos a falta de profundidade existencial quando, ainda por cima, o que percorre toda a acção é um sentimento de perda progressiva (da vida de um dos membros do casal), que surge obviamente sob a forma de doença terminal, quase nunca explorada devidamente a não ser para servir de dispositivo narrativo que coloca os personagens/ espectador debaixo de uma urgência e de uma tensão." No caso deste filme industrial de Hiroki (que francamente devia começar a escolher melhor os seus projectos) um casal depara-se com exactamente o mesmo problema de sempre: uma doença terminal frustra os sonhos da eternidade amorosa e constantemente intensifica os sentimentos que unem os envolvidos. Quer-me parecer que esta exterioridade que afecta a mulher e de onde se derivam todos os problemas (se esconde ou conta ao apaixonado que o seu tempo está contado, etc.) é demasiado estanque e impede que o relacionamento com estes personagens transcenda o dramatismo deliberado da situação que atravessam. O sentimentalismo imediato do tema juntamente com as prestações demasiado românticas e idealizadas não concede qualquer espaço para variações, interesse e profundidade de carácter. Não ao automatismo emocional, não aos brancos e pretos melodramáticos.



The Human Trust (2013) de Junji Sakamoto: 0
Sejamos francos: o novo filme de Junji Sakamoto é composto por um chorrilho confuso de pretensões sobre os tempos actuais, onde o dinheiro e a política são os melhores amigos, e mesmo como thriller político (ou melhor, financeiro) revela-se medíocre pois pouco ou nada retiramos da importância da missão, dos perigos que os nossos protagonistas frouxos correm e acabamos por estar mais atentos ao plot exaustivo e intrincado do que a qualquer sentimento real e significativo do que aí advenha. Baseado num best-seller de Harutoshi Fukui, que também escreveu o argumento fatigante, The Human Trust teoriza sobra um suposto fundo (Fundo M) que teria sido originado com dinheiros secretos do exército nipónico no fim da guerra e administrado parte a parte pelos americanos e japoneses ao longo do milagre económico até aos nossos dias de crise e questionamento financeiro. Não me perguntem como nem porquê, mas um vigarista (Mafuse)`acaba por ficar encarregue de desviar dinheiros desse fundo a pedido de um magnata, contra todos os antagonistas possíveis e imagináveis (um deles, interpretado por Vincent Gallo, muito bizarro e deslocado). Parte filme de espiões financeiros (com cenas de acção tão sofríveis quanto desnecessárias), parte conto dubiamente moral sobre o bom e o mau uso do capitalismo, o que nos surpreende pela negativa é certamente o desfecho do filme. Com ele fica provada, de uma vez por todas, a ingenuidade embaraçosa e ofensiva de Sakamoto e Fukui quando nos querem fazer acreditar, com todo o lirismo nauseante de um blockbuster (e com direito a discurso nas Nações Unidas e tudo!), nos benefícios humanos da indústria dos smartphones nos países do Terceiro Mundo. Inacreditável!



The Light Shines Only There (2014) de Mipo Oh: ***
Os personagens rastejam na escuridão à procura de alguma luz: um alcoólico desempregado, um jovem delinquente em liberdade condicional, uma prostituta e um homem adúltero que lhe paga os serviços e concede outros favores. Todas as existências neste sombrio filme de Mipo Oh, uma japonesa de descendência coreana que contradiz toda a gentileza e retidão de uma obra com preocupações "femininas", são esmagadas pela paisagem devastadora de Hokkaido, local predilecto para os mergulhos literários (no abismo) de Yasushi Sato, também anteriormente adaptados por Kazuyoshi Kumakiri nessa obra-prima chamada Sketches of Kaitan City. Mipo Oh, à semelhança do escritor niilista, descreve um mundo árido e repleto de desencanto onde só os sentimentos mais gregários (como a amizade ou o amor - sempre sujeitos à turbulência) podem prometer a salvação que nunca chega a acontecer, para nossa frustração, dentro do plano. Algo surpreendente aqui são as interpretações poderosas: Go Ayano faz um protagonista sorumbático e inacessível bastante satisfatório, mas Chizuru Ikewaki como a misteriosa, sexual e assombrada Chinatsu prova bem o talento irrepreensível e rebelde de uma actriz que confia em tudo menos na sua aparência e imagem de diva. Uma prestação sem quaisquer filtros que convêm bem ao realismo visceral de The Light Shines Only There.

09/11/14

Fragmentos de 2014/11/09



The Great White Tiger Platoon (1954) de Katsuhiko Tasaka: **
Para o filme de estreia de Raizo Ichikawa e Shintaro Katsu, dois actores tão marcantes que se tornariam, com o tempo, estrelas maiores da Daiei até à sua falência nos anos 70, escolheu-se o martírio histórico do Byakkotai, um pelotão de adolescentes, filhos de samurai, que lutou heroicamente do lado do Imperador na Guerra Civil de Boshin. Os jovens guerreiros cometeram harakiri quando, por engano, pensaram que o seu castelo ardia com as chamas do inimigo e a derrota estava assegurada. Este trágico acontecimento dá a Katsuhiko Tasaka (o irmão do mais conhecido Tomotaka Tasaka) a oportunidade de encenar, acima de tudo, um drama colectivo e militar em que cada personagem, como entidade isolada, sofre por falta de complexidade e caracterização. Há aqui bons momentos de realização (a dita cena final do harakiri colectivo e o pan que vai dos corpos até aos céus), mas essa formalidade não impede que, de todo em todo, The Great White Tiger Platoon seja uma competente mas banal dramatização de um relato histórico. Sem genialidades ou brilhantismos.



Blood of Revenge (1965) de Tai Kato: ****
Chris D. escreveu o seguinte sobre Blood of Revenge: "Kato restringe certos elementos histriónicos e acentua outros - ele tem o gosto, a intuição dramática e visual para criar um ritual cinemático sublime e transcendente a partir dos elementos mais banais." Shigehiko Hasumi, por seu lado, descrevia-o assim: "é o drama de um homem que viveu como yakuza e uma mulher que viveu como um ser humano." Como se pode antever, Blood of Revenge para muitos confirma a genialidade do cineasta que, por volta desta altura dominava como ninguém a gramática dos chanbaras e dos ninkyos, e que aqui mergulha (veja-se logo a magistral plongée nos créditos iniciais) numa história em tudo tradicional onde a honra masculina entra em conflicto com o poder erótico do amor, essa força esmagadora e vital introduzida pela personagem da prostituta. Como sabemos, os ninkyos produzidos pela Toei nos anos 60 construiram à sua volta um mundo mítico e maniqueísta de masculinidade onde os homens resolviam as querelas pela mão da espada ou da pistola, sempre forçados a recorrer à violência como a derradeira forma de justiça social e tribal. Pois bem, a intenção de  Kato quando colocou a figura feminina diante desse mundo que sempre a encarou como objecto ou engodo, era a de incluir um romance reprimido e chegar à certeza que o mundo da honra está nos antípodas da relação entre homem e mulher (por exemplo, o primeiro dia em que os dois se amam coincide com a morte do chefe). É ainda o poder sugestivo dos planos exóticos de Kato que nos põe na pista da frustração afectiva deste yakuza que amou demais e vive num dilema complexo que tem de resolver (no plano do primeiro encontro, um candeeiro de rua parece sobrepor-se falicamente aos dois amantes como se o desejo estivesse sempre lá apesar das aparências). Os "low-angles" olham o mundo repressivo, fatalista e violento dos yakuza de baixo para cima, focando os pés, as pernas, os troncos e raramente as cabeças, como se o corpo do guerreiro fosse a única verdade e essa verdade fosse um mero automatismo. Aqui Kato joga com os conceitos de "dever" e "humanidade", mas a sua contenção e até economia dramática levam-no a reconsiderar silenciosamente as prioridades do género (a cena do assalto aos "maus" é bastante esclarecedora, quando o chefe é o primeiro a ser morto). Mas apesar dessa reconsideração, Kato é extremamente fiel à génese das convenções e Blood of Revenge é o caso mais gritante onde o espírito poético dos ninkyo subsiste com toda a sua intensidade e tragédia. Tragédia de desencontros, tragédia de se viver nos opostos.



Tenchi - The Samurai Astronomer (2012) de Yojiro Takita: *
Karl Popper escreveu o seguinte em Conjectures and Refutations: "Um dos ingredientes mais importantes da civilização ocidental é o que poderia chamar de tradição racionalista, que herdamos dos gregos: a tradição do livre debate - não a discussão por ela mesma, mas na busca da verdade. A ciência e a filosofia helénicas foram produtos dessa tradição, do esforço para compreender o mundo em que vivemos; e a tradição estabelecida por Galileu correspondeu ao seu renascimento." Serve isto para introduzir a mais recente proposta de Yojiro Takita, o tal que ganhou o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro com Departures e que com esta história ficcionada do primeiro astrónomo japonês, Yasui Santetsu (1639-1715), pretende aproximar a tão ocidental sensibilidade racionalista (o questionamento da realidade por via da observação e da conjectura que refuta ensinamentos adquiridos) ao universo japonês. Podemos dizer que, a despeito das suas fórmulas comerciais (e Takita tornou-se infelizmente um realizador demasiado preso a convenções, um realizador apagado), The Samurai Astronomer encena o percurso resiliente de um cientista tentando fazer valer a verdade, tentando torná-la pública, quando esta, para ser aceite teria de ser aprovada por instâncias oficiais que encontram entraves por razões políticas (alheias à discussão racional). Em causa está uma mudança de calendários solares levada a cabo pela observação minuciosa de Santetsu, também conhecido jogador de Go e matemático. Os paralelismos com o caso Galileu devem ter sido intencionais e provavelmente são resultado de uma interpretação aberta daquilo que realmente se passou. Takita não quer fazer um filme histórico em sentido estrito, mas quer casar, na sua imaginação e na dos espectadores, a busca pela verdade com o bushido, isto é, a circunstância do personagem estar disposto a sacrificar a própria vida para defendê-la. Nesse sentido, The Samurai Astronomer põe a verdade a jogo, sendo que o prejuízo final é a própria vida de quem refuta as teorias mais antigas e proclama uma revisão e revolução no sistema. O final, mais entusiasta e idílico do que era esperado se considerarmos os que corajosamente defenderam as suas teorias e morreram mártires, prova um certo optimismo e denuncia o estado de espírito do realizador. Quer fazer pensar sem causar mossa. Quer admirar heróis sem causar real inquietação em quem admira.



And the Mud Ship Sails Away (2013) de Hirobumi Watanabe: **
Lust of Angels (2014) de Nagisa Isogai: **
Através de um projecto de crowdfunding, a distribuidora inglesa Third Window Films conseguiu trazer para o mercado ocidental uma rara proposta. Trata-se de um DVD ambicioso que compila os trabalhos de três jovens promessas japonesas (dois realizadores e uma realizadora) e que conta com uma longa-metragem (And the Mud Ship Sails Away), uma média (Lust of Angels) e duas curtas (My Baby e Buy Bling, Get One Free). Os filmes diferem bastante uns dos outros, quer temática, quer estilisticamente e só o espírito independente os une. Se Buy Bling, Get One Free de Kosuke Takaya demonstra apetências absurdas inspiradas na comédia bizarra que tantas e tantas vezes caricatura certos vícios e tendências culturais (no caso, o visado é o mundo da moda), já And the Mud Ship Sails Away envereda muito mais pelo humor lento e deadpan baseado na extravagância silenciosa de um personagem que aos 36 anos ainda vive com a avó e recusa-se peremptoriamente a trabalhar e a levar uma vida adulta, mesmo quando uma irmã bastarda toca à sua porta e tenta mudá-lo. Hirobumi Watanabe neste filme vai ao encontro da maior parte dos lugares comuns da estética indie (uma economia dos meios e dos planos, um aglomerado de situações que não têm necessariamente de levar a uma conclusão lógica, mudanças rápidas de tom), mas o seu anti-protagonista, interpretado pelo único actor profissional Kiyohiko Shibukawa, é um especialista em criar situações completamente tresloucadas a despeito da contenção formal da película (cada cena resume-se a um take). Aquela que, no entanto, mais se distancia destes dois cineastas é Nagisa Isogai, que transmite nos dois filmes uma visceralidade imprópria desta nova geração de realizadores. No ainda muito amador My Baby e, certamente, em Lust of Angels estão lançados os pressupostos de uma obra futura, reminiscente dos primeiros filmes de Yuki Tanada, capaz de transfigurar as personagens femininas em verdadeiros autos de revolta sexual e revirar quer o mundo masculino, quer os conceitos femininos (como maternidade) que as aprisionam. Pena que as limitações de orçamento condicionem a virulência de Lust of Angels, a história de um grupo de estudantes que caça e pune homens que as assediam no comboio, mas seria injusto omitir que a energia contagiante da proposta e a inspiração por um cinema mais transgressivo e que tem vindo a ser infelizmente abandonado me surpreendeu agradavelmente.



Kiki's Delivery Service (2014) de Takashi Shimizu: *
Takashi Shimizu, realizador cujo trabalho até agora recaía exclusivamente no J-Horror e que criou entre outras coisas a popular saga The Grudge, tem com Kiki's Delivery Service a sua primeira straight story, sem quaisquer sustos, maldições ou fantasmas. O que surpreende mais, no entanto, é a escolha do material: não pelo facto de ser uma adaptação dos dois primeiros romances da escritora infantil Eiko Kadono, mas por funcionar como um remake em imagem real do famigerado e homónimo sucesso de Hayao Miyazaki, o seu verdadeiro e primeiro sucesso comercial. Podemos argumentar que Shimizu quis capturar a essência dos romances originais (pelo que sei, a Ghibli não foi tida nem achada durante todo o processo) mas essas boas intenções escondem a vontade de querer repetir (ou pelo menos aproveitar) o culto em torno da pequena feiticeira que abre um negócio de serviços de entrega aérea para ocupar o seu ano de aprendizagem longe de casa. Obviamente, o filme peca por ser uma pálida imitação do seu predecessor animado, roubando toda a beleza dos cenários exoticamente ocidentais tão característicos da Ghibli e de Miyazaki e usando personagens que estão tão dependentes daquilo que eram no original que não passam, aos nossos olhos, de imitações incompletas e carnavalescas. A estreante Fuka Koshiba nem dá uma Kiki assim tão má (é talvez mais adolescente do que a outra e conserva algumas das suas qualidades), mas continua a ser uma interpretação mais fraca do que a Kiki de Miyazaki. Outro factor terrível, que mais uma vez comprova a falta de cabimento em tornar real o mundo imaculado da animação, é o CGI deplorável que torna lentos e falsos os voos de vassoura e artificiais e feias outras criaturas como um hipopótamo bebé e inclusive Jiji, o companheiro felino da bruxa, aqui quase despido de personalidade. Se o filme de Miyazaki tratava também o crescimento e o fim de uma primeira idade, simbolizado pela vassoura que deixava de voar; na versão de Takashi Shimizu esse mesmo facto parece estar circunscrito à não aceitação da feiticeira pela comunidade humana, o que comprova uma certa simplificação de um argumento já de si simples. Nesta nova versão, não há nada equiparável ou superior à outra e tudo aquilo que há de diferente não devia existir.



Trick The Movie - Last Stage (2014) de Yukihiko Tsutsumi: 0
Bastante popular no Japão (provam-no as três séries televisivas, os três episódios especiais e os três filmes realizados por Tsutsumi), a essência da saga Trick consiste na seguinte premissa: e se um génio da física e uma mágica de segunda andassem a desmascarar todos aqueles "privilegiados" que dizem ter poderes especiais e que os executam para além de qualquer explicação racional? Este, que é o quarto filme (e talvez o último) da saga repete os maneirismos dos últimos capítulos e cinematograficamente parece mesmo ser um episódio de televisão estendido, apressado e sem qualquer aprumo ou qualidade estética. Last Stage, à semelhança da trilogia, aposta várias vezes no humor (mas num humor mais televisivo e claramente de referência cultural), o que antes fazia aproximar-nos bastante das personagens mas que aqui se encontra algo gasto e acaba por ser mais do mesmo. Até a medium adversária, uma xamã estrangeira que amaldiçoa uma das pessoas que contacta primeiramente a dupla, não é tão interessante como outros rivais mais difíceis de desmascarar e bastante mais argumentativos e desafiadores. O interesse dos Trick era perceber, com boa disposição e inteligência, que toda a surpresa que o oculto e o sobrenatural nos podem suscitar não é mais do que um truque de ilusionismo. Mas mesmo assim, aqui Tsutsumi tenta suspender esse cepticismo crítico dos personagens, encenando até um falso desaparecimento da protagonista cujo desenlace é tão previsível e piegas que só mesmo um admirador incondicional pode apreciar. Fraco.



Crows: Explode (2014) de Toshiaki Toyoda: *
Toshiaki Toyoda é um dos grandes talentos da sua geração, não haja dúvida! Afirmo isto desde que choquei de frente com um pequeno, mas exímio, filme chamado Blue Spring. Ano após ano, o seu génio manifestava-se e progredia aquilo que cheguei a classificar como a junção perfeita da ética zen com a estética abrasiva, intolerável e irascível do punk rock. A verdade é que, depois de um interregno forçado devido à detenção e prisão por posse de drogas ilegais, a carreira de Toyoda deixou-se andar por caminhos incertos e os seus três últimos filmes (The Blood of Rebirth, Monsters Club e I'm Flash) representavam, certamente, uma busca pela voz perdida e o recuperar de velhas obsessões. Longe de estar enferrujado (apesar dessa trilogia ter sido recebida friamente) a escolha de continuar os dois filmes de Takashi Miike (Crows Zero e Crows Zero II) para o seu próximo projecto parecia deveras questionável. Primeiro, os filmes de Miike eram composições exageradas, boçais sobre amizades masculinas em guerras escolares que mais pareciam encenações cartoonescas de violência do que outra coisa. Se a estética era obviamente manga (desde a maneira como cada personagem era apresentada até à extremada mas irreal agressividade), ela pertencia a um género específico desse imaginário. Também Toyoda com Blue Spring tinha adaptado um manga, mas a forma de encarar os mesmos assuntos (jovens, violência nas escolas, amizades defraudadas) mesmo sendo chocantemente cruel, revestia-se de significado e nada parecia estar ao acaso. Nada era gratuito e tudo desembocava num pathos o mais comovente e rigoroso possível. Esta é a pergunta: como é que Toyoda conseguiu superar, ou mesmo alterar, o material original, se os filmes de Miike empestaram uma certa maneira de fazer filmes sobre jovens delinquentes? Reduz grande parte da violência irrealista, pois deixaram-se as armas e cada soco parece doer mais, e apoia-se muito nos diálogos, talvez para contrariar os capítulos anteriores, mais directos e straight to the point. Podemos dizer que Toyoda está amarrado: quer distanciar-se um pouco das hipérboles miikianas, mantêm ainda muitos dos risíveis pressupostos narrativos (isto são mesmo estudantes do secundário ou onde estão os professores e os adultos?) mas raramente demonstra o brilhantismo zen-punk que sempre o caracterizou. Sim, há cenas rockeiras que pontuam energeticamente as cenas de acção, mas elas não transmitem grande profundidade (temática ou formal) como acontecia antes. Os personagens (tirando os flashbacks que iluminam o passado dos dois antagonistas principais) também são lugares comuns ambulantes e impedem o reconhecimento, devido principalmente à maneira fria e provocatória como se comportam. Crows: Explode dá a sensação de ser o primeiro filme dirigido por Toyoda em que a palavra trabalho está mais presente. Tirando um ou outro momento, não se faz mais nada do que a sua obrigação. E isso não chega.

25/10/14

Fragmentos de 2014/10/25



Okoto and Sasuke (1935) de Yasujiro Shimazu: ****
Shunkinsho ou A Portrait of Shunkin é um dos mais famosos contos de Junichiro Tanizaki e - como quase todas as suas obras - foi adaptada para cinema desde muito cedo. Depois desta versão clássica de Yasujiro Shimazu, que foi rodada apenas dois anos depois do original ser publicado, também Teinosuke Kinugasa, Daisuke Ito, Katsumi Nishikawa ou até mesmo Kaneto Shindo levaram o popular conto ao grande ecrã. À bravura formal e ambiguidade de Tanizaki, os realizadores, porque tinham de representar por imagens aquilo que no original pertencia ao reino da imaginação e da conjectura, sempre descreveram a relação entre a mestra Okoto e o tímido discípulo Sasuke como o expoente máximo da auto-abnegação e do amor puro. Shimazu foi, no cinema, o primeiro a fornecer essa interpretação romântica (o título dá conta dessa intimidade a dois), mas que não é mais do que uma interpretação, mantendo intactos alguns mistérios e ambiguidades que resolvemos enquanto espectadores somente pelo tom romântico geral da película (por exemplo, quem é o pai da filha de Okoto?). Temos de relembrar as discussões acesas que A Portrait of Shunkin desencadeou quando, a propósito da sua narratividade esquiva e do seu narrador distante, misterioso e pouco ou nada definitivo, o escritor Akiyuki Nosaka argumentou, mais tarde, ser Sasuke o culpado pelo desfiguramento da sua mestra, caracterizando toda a história e inclusive o sacrifício aparentemente tocante de Sasuke como "a descrição exaustiva da obstinação e egocentrismo de um homem". Yasujiro Shimazu está nos antípodas da mordacidade caústica de Nosaka e em Okoto and Sasuke opta pelas boas intenções do protagonista face à belíssima e cega mestra (interpretada pela não menos bela Kinuyo Tanaka) enquanto que aproveita para construir algumas situações humorísticas, mais próximas do seu registo habitual dos shomin-gekis da Shochiku. Para além da simbologia da gaiola estar aqui presente (quando o pássaro se escapa, Okoto apercebe-se da exclusividade de Sasuke na sua vida e decide isolar-se dos olhares públicos) há que destacar os prodigiosos dez minutos finais. A cena do sacrifício de Sasuke, quer se ache ou não descabida perante as intenções dúbias de Tanizaki, é um momento poderosíssimo de cinema que prova a sofisticação formal de Shimazu. Aquela sobreposição dos punhos de Sasuke no espelho preparando-se para cegar a sua própria vista e a última visão (possível e projectada) de Okoto prova bastante bem o que se diz nos intertítulos poéticos que fecham o filme: "Sasuke fechou os seus olhos para a realidade: saltou para um mundo conceptual. Os olhos do seu coração vêem o mundo das memórias." E só nele é capaz de se encontrar.



The Battle for the Liberation of Japan - Summer in Sanrizuka (1968) de Shinsuke Ogawa: ****
No trailer de Death by Hanging (que em si mesmo é uma obra de arte e um avant-propos), Nagisa Oshima, tornado narrador da sua própria proposta, aconselhava aos espectadores o seguinte: "Por favor, vejam este filme da mesma maneira que brincam, trabalham, lutam, odeiam e amam. Fizemos este filme com o mesmo espírito do protesto nas ruas." Haverá, porém, algum filme (ou série de filmes) que tenha melhor capturado o espírito de protesto do que a incansável e exaustiva saga Sanrizuka de Shinsuke Ogawa? Primeiro capítulo de quatro, Summer in Sanrizuka, à primeira vista, documenta os esforços dos camponeses que vêem a sua terra ser-lhes retirada, sem qualquer aviso ou consulta prévia, para dar lugar à construção de um novo aeroporto. Logo nos planos iniciais está sintetizada toda a violência desse "recolher obrigatório" injusto: um polícia, ao repreender os protestantes, esmaga com as suas botas uma melancia. Esse acto simbólico (um zoom em cima dos destroços do fruto), assim introduzido para dar o mote ao resto, sem qualquer necessidade de explicitar as condicionantes e as razões mais lógicas do protesto, será a primeira imersão no ambiente - que Noel Burch pejorativamente chamou indigestível - de guerrilha e luta armada dos camponeses face às forças da autoridade. Repetidamente, os motins e os confrontos tomam uma dimensão denunciadora já que o ponto-de-vista do espectador acompanha sempre os protestantes e dirige-se aos repressores com o mesmo grau de revolta, contestação e confiança (valha-nos o Hino da Alegria a musicar os esforços). É aqui que Ogawa e a sua equipa transcendem o estatuto neutral da linguagem que abraçam: a câmara não documenta os camponeses como se fosse uma entidade invisível, mas apoia-os e vai à guerra com eles como se a câmara fosse uma arma de arremesso (tal e qual as pedras vãs que eles atiram aos escudos da polícia) e tivesse, também ela, de ser apreendida e reprimida pelas forças do poder (como aliás chega a acontecer quando um cameraman é preso e a sua câmara confiscada). Apesar de Summer in Sanrizuka encarar de frente os confrontos com a polícia, fixando e participando da  revolta dos mais fracos, Ogawa concede algum tempo aos testemunhos dos camponeses que, ultimamente, defendem a violência para fazer valer os seus direitos. Nessas cenas, tenta-se passar um certo intimismo dos guerrilheiros e o mais importante são as suas palavras de força e coragem (com o som técnica e poeticamente desfasado da imagem como se o primeiro fosse mais importante do que o segundo) quando a vitória se revela praticamente impossível. Outro factor de destaque (que se aplica não só aos camponeses, mas também ao próprio modo de filmar) é a importância do colectivismo e da organização grupal. Nada parece mais digno,  belo e defensável para Ogawa do que um conjunto de pessoas unidas pelo combate e reivindicação dos mesmos direitos. Em breve, fascinado pelo pragmatismo e bravura dos camponeses (que se opõem às teorias vazias dos estudantes, como ouvimos num testemunho) ele próprio iria dedicar-se, durante longos anos e quase toda a sua vida, a documentar activamente os avanços e recuos, os sonhos e os pesadelos, a vida e a morte destes pequenos e rurais heróis.



Osaka Violence (2012) de Takahiro Ishihara: 0
Snake of Violence (2013) de Takahiro Ishihara: **
Assim como aconteceu com o chanbara, o cinema yakuza se ainda não morreu, está há muito tempo a dar as últimas. Longe estão os tempos em que fervilhavam no grande ecrã os durões (honrosos ou desonrosos) e, se nos abstrairmos das últimas tentativas de salvação do género que se deram com o advento da geração V-Cinema (Takashi Miike, Rokuro Mochizuki, Kiyoshi Kurosawa) e com algumas reinvenções isoladas (Takeshi Kitano, Takashi Ishii, etc.), praticamente nada se fez nos anos 2000 e em diante para revitalizar esse universo tão peculiar. Foi isso que captivou o meu interesse em Takahiro Ishihara, um cineasta que parece dedicar a sua atenção aos gangsters forasteiros, descrevendo violentamente toda a amargura e brutalidade dessas vidas sem honra nem humanidade. Com budgets apertados (onde estão hoje os yakuza eiga de grande orçamento?) e apesar das óbvias limitações técnicas, deixou-nos duas películas que provam o interesse (mesmo que marginal) em ressuscitar o género. Osaka Violence, exercício falhado, demonstra um cineasta ainda muito amador com algumas dúvidas acerca de editing e colocação de câmara, dando muitas vezes a impressão de que não importa como se filma, importa antes que se filme. Em contrapartida, Snake of Violence já tem algum brilho e algumas decisões estéticas que desculpam o amadorismo do digital (por exemplo, um certo plano-sequência à la Goodfellas, que introduz o personagem principal em adulto, e dura uns invejáveis seis minutos), sendo também mais coeso na narrativa e na capacidade delirante e magnética dos seus personagens. Os dois filmes partilham obsessões: uma delas é o confronto entre a inocência das crianças e o mundo adulto da violência e outra poderia ser a inclusão de um gangster maníaco que ameaça pôr de pantanas a organização desse mundo, composto não pela honra mas pela capacidade de coagir. A esse respeito, cite-se Tak Sakaguchi em Snake of Violence, presença explosiva e caótica que, por momentos, relembra a libertinagem de tantos (anti)heróis do cinema yakuza.



The Mole Song - Undercover Agent Reiji (2013) de Takashi Miike: **
Os primeiros 20 minutos de The Mole Song são das coisas mais hilariantes que temos visto  no cinema japonês ultimamente. Dei por mim a rir à bandeira despregada com o agente Reiji e a sua passagem de polícia a yakuza para desmantelar uma rede de narcotráfico. Todo o delírio miikiano volta a mostrar a sua competência para a insanidade, já que cada piada resulta da aglomeração de vários tipos de humor (desde o físico ao meta, dos trocadilhos de palavras até ao exagero regozijante) e de um sentido de paródia que estava a fazer lembrar felizmente os Naked Gun de David Zucker mas com toques de bizarria manga (donde, aliás, provêm o material original). Quando, portanto, o nosso agente disfarçado entra no mundo dos mafiosos e prossegue com a sua missão no terreno, a irreverência e animação começam a perder o seu brilho e as piadas começam a ficar cada vez mais escassas e cada vez mais intervaladas. Deixam de ser o foco principal. Com o tempo, The Mole Song vira as coordenadas, torna-se outro filme (mais sério mas bastante menos interessante) e chega a ir mesmo contra a promessa dada nos primeiros minutos, a de ter sido uma nova referência no cinema de humor japonês. Miike volta a cometer um erro típico dos seus projectos mais recentes, isto é, não sabe fixar e estabelecer convenientemente o mood do que quer transmitir, parecendo muitas vezes ter dois ou mais filmes dentro do mesmo. Durante muito tempo este defeito era uma qualidade e Miike não teria sido quem é se não fosse por esta capacidade de fragmentar o género e chegar a sítios nunca antes idos (teremos de relembrar o desfasamento histórico do final de Dead or Alive?). O problema em The Mole Song é precisamente o inverso: durante a esmagadora maioria do tempo saímos da criatividade para entrar em lugares e situações por nós conhecidas e, esperávamos, evitáveis. Neste processo decepcionante, só os personagens nos podem salvar e conservar o interesse - e Reiji, o seu irmão yakuza, os polícias são todos personagens engraçados - mas não podemos deixar de ficar tristes com o desperdício de potencial.



Judge! (2014) de Akira Nagai: **
A estreia de Akira Nagai na realização trouxe-nos uma comédia simpática, mas finalmente inofensiva, sobre publicidade televisiva, a capacidade de julgar com (in)justiça um trabalho artístico e uma sátira aos meandros cínicos e deturpados dos painéis de júri dos festivais de cinema. Não se espere nada de arrojado, portanto. Judge! cede bastante aos lugares-comuns das comédias ligeiras: o desenlace é previsível, o antagonista demasiado unidimensional e o interesse amoroso do protagonista completamente desnecessário. Como comédia e enquanto narrativa, confia demasiado no exagero dos comportamentos e das situações, o que torna os personagens afáveis e engraçados até certo ponto mas completamente estereotipados e planos noutro. Não podemos afirmar, porém, que o filme falhe no seu entretenimento. Apesar dos clichés e da simplicidade da mensagem, Judge! nunca chega a ser entediante e consegue (mais no princípio do que no fim) arrancar alguns sorrisos e até uma ou outra gargalhada. Confesso que aqui o uso e recriação de certos anúncios é um dos pontos altos mas também se revelou bastante certeira a chacota com a veneração do "exotismo nipónico" feita pelos artistas e críticos ocidentais e aproveitada pelos próprios japoneses.



One Third (2014) de Hiroshi Shinagawa: **
Repleto de referências tarantinescas bem como piscadelas de olho a outros exercícios de culto, a terceira incursão do actor e cómico Hiroshi Shinagawa na cadeira de realizador pretende ser ao máximo um filme de acção despretensioso, formalmente aprumado e com variadas reviravoltas na intriga. Se, no seu melhor, One Third é acelerado e excitante, com personagens relacionáveis por quem nutrimos interesse, no seu pior, apresenta uma realização por vezes excessivamente saturada e com demasiados twists, não conseguindo escapar à maneira hipertrofiada e artificial como avança a história: por exemplo, precisávamos mesmo de regressar no tempo sempre que se pretende justificar uma nova etapa na narrativa? Alguns planos são bastante criativos, outros são demasiado histriónicos e fica-se com a impressão que Shinagawa quis a todo o custo imitar os lugares comuns imagéticos dos blockbusters americanos (slow-motions nas cenas de acção, planos enjoativos à volta dos personagens em 360 graus, etc.) sem parar para pensar no seu real cabimento. Este festival de enganos e traições têm também o seu lado humorístico e damos por nós a sorrir com os "enganos encenados" do trio de zés-ninguéns que assalta um banco e tenta passar a perna ao patrão psicótico e à velha cruel e mafiosa. O final abre a possibilidade de uma sequela, mas honestamente, se ela vier não será algo por nós muito aguardado.

12/10/14

Fragmentos de 2014/10/12




At Noon (1978) de Koichi Goto: ****
Tadao regressa de Tóquio para a sua terra natal. Cabisbaixo e derrotado, no caminho para casa leva às suas costas uma tempestade que alaga os terrenos agrícolas e uma trovoada negra que electrifica algumas pobres árvores em seu redor. Podíamos dizer que estes fenómenos climatéricos (assim como a misteriosa visão de uma mota descontrolada a descer por uma ravina) são um prenúncio do estado de espírito algo obscuro e incendiário do nosso protagonista: calado e discreto, Tadao parece possuir também um sentido de justiça deveras inquebrável. Afasta-se das mulheres e da sexualidade sempre debaixo do seu nariz, dá a maior parte do ordenado à sua mãe afogada em sacrifícios e, comparando com o seu amigo Tetsuji, demonstra pudor e uma rigidez moral notável. Portanto, não podemos esquecer que logo no início somos informados da captura de Tadao pela polícia, o que faz de At Noon mais uma produção ATG com jovens criminosos (e há tantos outros exemplos de destaque: Youth Killer de Kazuhiko Hasegawa, Third Base de Yoichi Higachi, Tattoo de Banmei Takahashi, etc, etc.). Contado a partir do final, At Noon é também um exercício de indagação pelas possíveis causas do crime e de como, tragicamente, quem pende mais para a moralidade é aquele que sucumbirá à ebulição da violência, verdadeira libertação animalesca de tensões escondidas e, poderíamos dizer, inevitáveis (dado a idade e, principalmente, a teimosia da contenção). Koichi Goto, que foi o assistente de realização de Kazuo Kuroki em Evil Spirits of Japan e The Assassination of Ryoma, filma arrojadamente as contradições do jovem Tadao, encurralado entre a timidez ética e as fantasias e paixões sexuais que o assaltam. Esta necessidade carnal confusa, tão inocente e não concretizável, torna-se ainda mais melancólica, quando vemos, a cada esquina, possibilidades diferentes para o destino do nosso protagonista (voltar para Tóquio, ficar com a mulher mais velha), tornado, no final do dia, anti-herói numa das cenas de violação mais directas e chocantes de que temos memória. Tadao não pode sair desta asfixia: não pode escapar indefinidamente como fazia Jun de Youth Killer, nem tão pouco exorcizar os fantasmas do passado como fazia o jovem recluso em Third Base. Há que carregar a fatalidade. Como a tempestade brutal, como o sol incandescente que queima os olhos.



The Strangling (1979) de Kaneto Shindo: ***
Na última (de três) produções Art Theatre Guild encontramos um Kaneto Shindo bastante desencantado, com uma frieza cruel e desoladora nunca antes vista em toda a sua carreira e certamente nunca mais repetida. Há em The Strangling um clima opressivo e castrador que denuncia uma sociedade altamente competitiva, governada por "adultos hipócritas" que impedem os jovens de ser jovens, levando-os a cometer actos de revolta, neuroses de violência descontrolada ou mesmo actos solenes de auto-destruição. Talvez a inspiração pelo espírito contestatário da ATG tenha levado Shindo a adoptar tardiamente esta postura afectada que nunca receia enveredar por caminhos altamente polémicos, minando completamente a hierarquia familiar e dedicando a quase todos os personagens um caminho anárquico onde a destruição é a única coisa que os une. A figura paterna, associada intimamente à hipocrisia adulta que anteriormente falava, está nos antípodas do espírito benevolente da mãe, essa interpretada pela habitual Nobuko Otowa (aqui com um papel dificílimo: entre o autismo e a indulgência, entre a castidade e uma sexualidade desconfortável). Shindo retoma as obsessões edipianas da geração de Imamura ou Oshima, mas associa-as não a uma determinação básica do instinto ou a secretas pulsões que organizam silenciosamente os humanos, mas à vingança e ódio do filho pelo espírito exploratório e falsamente autoritário do pai. Essa repugnância pelos homens é outro factor que torna a atmosfera de The Strangling ainda mais pesada e fúnebre como se condenasse toda uma cultura onde a figura paterna é central e inquestionável. De uma só vez, são homens que cercam e atormentam o jovem protagonista (o professor competitivo, o dono da empresa que viola a filha adoptiva, o pai despótico e intransigente) e só as mulheres, sempre vítimas dos homens, o "salvam" (a colega abusada que o ama na neve - como se estivesse crucificada nos seus braços - e a mãe). Neste inferno doméstico sem saída que transcende as quatro paredes da casa (não obstante, passamos tanto tempo "fechados" em quartos e em salas como já acontecia em The Heart) só nos resta assistir ao desmoronamento - e à queda das escadas, como no plano final - desta família, que Shindo nos quer fazer acreditar, poderia ser qualquer família japonesa.



Then Summer Came (2008) de Ryo Iwamatsu: **
O prolífico actor Ryo Iwamatsu já tinha feito tentativas esporádicas na realização mas Then Summer Came afigura-se como a sua empreitada mais singular, aquela em que a seriedade se mistura com a comédia mais discreta e familiar. Traduzido literalmente por "A Felicidade de Tamio", o filme descreve sobretudo a relação do circunspecto Tamio com o seu pai, Nobuo, um velho viúvo e excêntrico que deseja arranjar uma pretendente para o seu filho. Os dois vivem sozinhos e a idade de ambos começa a pesar: a transferência de papéis de uma geração para a outra ecoa obviamente os dramas familiares de Ozu, mas aqui Iwamatsu cria alguns desvios narrativos (a história do tio desaparecido e das reuniões secretas em casa é, claramente, desnecessária e pareceu-me descabida) que tanto têm um papel cómico como revelam um certo desconforto que contradiz a aceitação presente nesse cinema mais clássico. Se algumas cenas poderiam ter sido cortadas a bem de um ritmo mais equilibrado, Iwamatsu consegue terminar a sua história de forma bem complexa e poética com a cena contemplativa e humorística do casamento falhado e da sucessiva procura pelo fantasma da mãe no meio das ervas gigantes. Filmar a renúncia, fugir da "aceitação" que tão bem caracteriza este género de películas quotidianas, parece uma tomada de posição corajosa e pertinente que concede uma nova camada de sentido à relação insólita mas terna entre pai e filho. Não chega aceitar os mandamentos sociais para se ser feliz, é preciso procurar noutro lado.



About the Pink Sky (2011) de Keiichi Kobayashi: **
Amado por alguns, odiado por muitos e aclamado no circuito dos festivais, About the Pink Sky é um verdadeiro barómetro do cinema independente (japonês e não só). Em variados aspectos, parece fornecer a caricatura mais vazia das pretensões formais indie, mas, ao mesmo tempo, consegue provar que um estilo diferente e extravagante tem o seu cabimento e oferece novas perspectivas e maneiras de representar o mundano. As "pretensões" resumem-se, mais ao menos, à seguinte crença: quanto menos dramático, mais íntimo. É por causa disso que Keiichi Kobayashi, digerindo e replicando certos ensinamentos que porventura retirou da Nouvelle Vague, acredita que qualquer detalhe insignificante, qualquer peripécia vulgar pode ser contada independentemente dos mecanismos e dispositivos cinematográficos. A lentidão (que parece advir da existência remota de uma estrutura narrativa com três actos) parece ser defendida na medida em que criamos uma proximidade mais imediata e não mediada por algo que transcende as personagens: um propósito, uma mensagem. Alguém disse que "a peculiaridade cria personalidade" e esse é precisamente o ponto alto de About the Pink Sky, filme completamente voltado para as suas personagens. As peripécias das três amigas, que arranjam problemas monetários e criam um jornal onde apenas notícias boas são publicadas para apaziguar o credor, são colagens de momentos mais ou menos cómicos onde as idiossincrasias vêm à tona como bolhas de sabão que rompem à superfície da água. O humor é discreto, mas está lá. Confunde-se histericamente com o carácter dos personagens, e é tão quotidiano que se torna, para os menos atentos, invisível. Neste sentido, a novata Ai Ikeda que interpreta a castiça Izumi protagoniza momentos em que rir se torna obrigatório graças à sua postura desleixada, masculina e extravagante quando confrontada com pequenos problemas. Tirando isto, o filme de Kobayashi perde-se em termos de conteúdo, estendendo-se em demasia (tanto no tempo de cada take, como na duração final) e filmando, muitas vezes, coisa nenhuma. A fotografia a preto-e-branco, usada exclusivamente como adorno, manifesta um certo saudosismo justificado, visto que, mesmo que não se passe grande coisa, é bonito olhar para os espaços e personagens de About the Pink Sky.



Life Back Then (2011) de Takahisa Zeze: 0
Este falhanço de Takahisa Zeze poderia ter funcionado muito melhor se não fosse filmado e apenas fizesse parte do mundo das ideias. Life Back Then propõe tratar tantas coisas que não tem tempo para cuidar bem de nenhuma: não passa de um filme exaustivo, irritante e sensacionalista. Kyohei e Yuki lidam diariamente com as réstias dos mortos e com as "mortes" (figuradas e reais) do passado, mas não basta exasperar o espectador com relatos de sofrimento para imediatamente aderirmos às situações como se fossem nossas ou nos apegarmos aos personagens que, fora das suas angústias tão demoradamente exploradas, nada têm de admirável ou cativante. Takahisa Zeze parece querer insuflar o seu mundo com uma bolha depressiva para atingir um grau de complexidade "zen" qualquer, traduzindo em diálogos pouco ou nada inspirados como "morremos sempre sozinhos", um forçoso e barato sentimento de melancolia e iluminação. A maneira como constrói a narrativa é também irritantemente hiperactiva, já que vamos de flashback em flashback percebendo o pano de fundo de Kyohei enquanto este conhece Yuki, perde-lhe o rasto, visita mais casas de outros falecidos, reencontra Yuki e volta a perdê-la numa cena fraquíssima, insuficiente e que não tem nem merece justificação. Quererá Zeze dizer, com pompa e circunstância, que a vida e a morte são coisas muito efémeras ou quererá, outra vez de forma abertamente sensacionalista, infligir dor no seu protagonista com esperanças de que nos preocupemos com o absurdo da perda de mais um ente querido? Depois de tantos desvios e da incapacidade de conceber personagens marcantes, não vemos aqui nada a não ser a passagem dolorosa e apressada de um realizador marginal a aspirações mais toscas e "comerciais".



I Have To Buy New Shoes (2012) de Eriko Kitagawa: **
Eriko Kitagawa tinha já realizado uma primeira obra surpreendente, Halfway. Nesse filme independente e financeiramente modesto, abordava-se o dilema de uma jovem no último ano do secundário que tinha de escolher entre deixar o namorado estudar para longe, mais precisamente Tóquio, ou retê-lo onde estava, argumentando que a relação não suportaria a distância. A intimidade dos dois jovens actores e o final aberto e tremendo, tão próximo, da realidade das coisas fazia esperar grandes coisas da realizadora. Em I Have To Buy New Shoes, dois estranhos encontram-se em Paris e partilham apenas o facto de serem japoneses no estrangeiro (ele um turista perdido, ela emigrante). Passam tempo juntos, vão se conhecendo e apaixonam-se assim que a hora da despedida chega. Protegida de Shunji Iwai (Halfway tinha sido escrito por ele e I Have To Buy New Shoes foi por ele produzido), Kitagawa parece ter uma fixação por renúncias e encontros românticos no limite da sua concretização. Nada que não tenha sido feito antes com outras nuances (a trilogia de Richard Linklater parece-me um bom exemplo disto) e diria que o problema maior aqui são os personagens, não porque sejam desinteressantes, mas porque há algo neles que impede a amargura (de querer evitar) a despedida. A belíssima Mio Nakayama e o simpático Osamu Mukai fazem um par curioso, mas a maneira como se relacionam é, talvez, demasiado aberta, confidente e afável para revermos no afastamento fatídico, a dor e a saudade de um amor bloqueado pelo espaço e o tempo. Talvez tenha sido essa a intenção de Kitagawa, isto é, lançar as bases de uma atracção que precisava apenas de mais tempo para ser confessa, mas para o espectador mesmo essa frustração não é totalmente evidente. Situamos os nossos personagens entre a amizade e a paixão, mas necessitávamos de situações e emoções menos ambíguas e mais urgentes que fizessem pender mais para o segundo lado da balança.



Jinx!!! (2013) de Naoto Kumazawa: *
As películas "românticas" de Kumazawa outrora eram mais sóbrias e não se rendiam a ideias fáceis e simplificações amorosas como se o universo filmado pertencesse, afinal, a um ideal sonhado e não houvesse menção dos problemas que determinam concretamente a dificuldade de nos completarmos emocionalmente. Rainbow Song, escrito pelo grande Shunji Iwai, era um exemplo inspirador de como o cinema de Kumazawa podia ter crescido tematicamente, seguindo esses trilhos de uma lucidez dramática bastante próxima do real e de sentimentos de perda do ente desejado. Quererá isto dizer que todos os filmes de amor só são criticamente aceitáveis se forem trágicos? Há também muita tragédia amorosa (especialmente japonesa) que não tem outro objectivo senão comover artificialmente o espectador que se depara com o enorme amor dos seus personagens no meio da adversidade (e suspiram: "como era bom que esse ideal fosse real!"). Por falta lucidez quisemos significar todos os ângulos que ficaram por considerar, todas as fugas e descrenças que tal sentimento também carrega, em suma, uma honestidade que nos permita identificar com o mundo representado e não aspirar a qualquer coisa que nesse mundo vemos como evidente e até secretamente desejável. Jinx!!!, como a esmagadora maioria dos filmes românticos, é um filme para sonhadores. Conta as aventuras de Ji-Ho uma estudante coreana de intercâmbio que trava amizade com uma colega japonesa, Kaede, e ensina-a a aproximar-se de uma paixão de escola, Yusuke. Por entre "coreografias" engraçadas e repetitivas cenas de aproximação, Ji-Ho lembrar-se-á de quem deixou na Coreia e, por momentos, revê toda a sua história no casal que pretende aproximar. "Jinx" acaba por ser a expressão que arranja para provar que "muitas coisas boas acontecerão se Kaede e ela se tornarem amigas", mas também faz referência ao déja-vu que lhe permitirá voltar para o seu país com os assuntos do passado resolvidos. Kumazawa continua a apostar no plano sequência para destoar o feeling televisivo que se apodera da estética do seu filme e algumas vezes consegue até aparar o melodrama algo comichoso que se vai instalando ao longo do visionamento. Jinx!!! é um filme para sonhadores que não querem acordar, ou é um filme para os sonhadores que querem dormir do mundo. Nada aqui é ofensivo, indigno ou até demasiado desonesto mas queríamos mais complexidade, queríamos estar mais "acordados".



Schoolgirl Complex (2013) de Yuichi Onuma: ***
Este filme partilha o título com uma série de álbuns de fotografias de Yuki Aoyama. Schoolgirl Complex de Aoyama era mais um objecto fetichista que versava sobre a obsessão japonesa pelas colegiais, as suas poses inocentes petrificadas em imagens voyeuristas que escondiam as expressões faciais das raparigas e revelavam, em ângulos despudorados, toda a sensualidade dos uniformes e dos corpos... Yuichi Onuma, que já em Nude tinha adaptado para cinema a auto-biografia de uma actriz pornográfica, desfaz-se completamente do material original e filma a intimidade e a descoberta sexual das suas protagonistas com uma dignidade em tudo contrária ao erotismo espiador de Aoyama. Aqui, definitivamente, contam mais os rostos, as vozes, as lágrimas e os sorrisos das raparigas do que qualquer ângulo mais atrevido das suas pernas ou saias. Por todo o filme ressoa, apesar de tudo, uma postura directa mas que se abstraí de juízos de valor, mesmo quando ao tema do crescimento se adiciona uma atmosfera homossexual consubstanciada em secretas paixões lésbicas que se confundem com amizade. Para Onuma, no entanto, o importante é o mundo das emoções e nunca assistimos à exploração sexista ou prazerosa desse universo homo-erótico. Para o realizador - e para as suas personagens - o amor e a atracção (porque apesar de tudo, Onuma não esquece a carnalidade) não escolhem sexos. Note-se a fantástica direcção de actrizes e os papeis muito convincentes de Yuko Araki e Mugi Kadowaki que dão vida às inquietações e sonhos da adolescência, período tão bem descrito naquele excerto citado de Osamu Dazai que suspende, nem que seja por pálidos momentos, toda a mágoa e os mal-entendidos de uma relação impossível. Uma boa surpresa.

01/10/14

Fragmentos de 2014/10/01



So Goes My Love (1938) de Yasujiro Shimazu: **
Uma pequenina amostra do que Yasujiro Shimazu era capaz. So Goes My Love, típica produção shomingeki da Shochiku, conta as dificuldades de um casal não aprovado pela família do marido e que está condenado a pensar no seu futuro. Shigeo, um escritor sem talento e sem trabalho e Minako, uma dona de casa devota e a única que leva o sustento para casa trabalhando num café à noite, vão sempre falando da impossibilidade de ficarem juntos. Ele, muito mais a favor da separação para o bem dela e ela, pouquíssimo a favor da separação, para o bem dele. Há algumas situações que vão intervalando esta insustentabilidade doméstica: o encontro de Shigeo com o tio, a entrevista de emprego armadilhada, a ida ao cinema com a irmã para ver Olympia de Leni Riefenstahl (que Shigeo diz ser aborrecido), a frustrada e cómica combinação do suicídio entre amantes, etc. Shimazu filma longas sequências, capturando o clima doméstico e os costumes da sua época sem, ainda assim, ir muito longe. Isso fica provado com o "final feliz" súbito, artificial e algo desinteressante.



Kiku and Isamu (1959) de Tadashi Imai: ***
No decorrer da História do Cinema Japonês muitos são os casos em que a raça negra surge como símbolo da ocupação americana. Evoco dois casos bem sucedidos dessa representação problemática: Black Snow de Tetsuji Takechi e The Catch de Nagisa Oshima, mas poderia também falar do sem número de produtos exploitation que subversiva e injustamente colocaram G.I afro-americanos criminosos, violadores, etc, como se os seus delírios selvagens (quase sempre foram representados como bestas sem caracterização ou personalidade) representassem afinal a dominação sem resposta de uma nação humilhada. Kiku and Isamu, com o seu espírito igualitário ainda que pouco idealista, situa-se nos antípodas das produções atrás referidas, aliás, o seu auto-financiamento prova que nunca poderia ter sido feita oficialmente com dinheiros de um estúdio. Ela parte do interior da comunidade mais tradicional para indagar os preconceitos raciais que nela existem, jamais recorrendo à imagem típica do visitante, do estrangeiro ou invasor. Kiku e Isamu, dois filhos mestiços de pai incógnito e de uma mãe já falecida, vivem com a avó no campo e, de acordo com o argumento fronteiriço da identidade, são tão japoneses como qualquer criança já que nasceram e foram educados como japoneses. No entanto, a fisionomia diferente e a cor da pele criam uma diferenciação imediata e a discriminação na escola e noutros lugares (veja-se a lúgubre cena da festa) parece ser inevitável dentro de uma comunidade tão pequena e fechada. A avó preocupa-se com o futuro das crianças, mas parece recorrer ao estigma feudal que ordena o seu despacho para outras entidades afim de ajudarem a família e eles próprios a longo prazo. É aqui que Tadashi Imai revela a sua crítica de costumes, comparando a situação complicada do reenvio de um dos netos para a América do Norte (mesmo não tendo qualquer relação com essa cultura) à venda de uma filha para um bordel. Kiku and Isamu fala, portanto, sobre discriminação mas fá-lo sem recorrer ao maniqueísmo típico dos filmes que abordam esta temática. Imai prefere analisar o tratamento dúbio de uma comunidade face "à estranheza desconfortável dentro do familiar" e neste sentido aponta para as raízes de um feudalismo que só se pode quebrar com amor.



Bloody Shuriken (1965) de Tokuzo Tanaka: ***
Primeiro de quatro películas realizadas somente em 1965 por Tokuzo Tanaka, Bloody Shuriken é mais um opus inspirado no universo estiloso de traições e matreirices que caracterizaram o filme de época japonês ao longo dos anos 60 e que iriam influenciar, por sua vez, os devaneios italianos no western. Relembramo-nos logo de Yojimbo quando aqui toda a intriga passa pela clássica situação do forasteiro no meio de uma cidade (quase fantasma) em conflito e dividida em facções distintas, desejosas de se anularem. Tanaka nunca transcende clichés mas usa todos os circuitos a seu favor, inclusive Raizo Ichikawa, completamente habituado a representar uma frieza simultaneamente ameaçadora e distante, como se nada o afectasse realmente (veja-se o seu mítico personagem Nemuri Kiyoshiro também para a Daiei). Outro destaque curioso - e que facilmente se consegue discriminar - é assinatura estrondosa do lendário Kazuo Miyagawa, director de fotografia responsável pelos Mizoguchis mais marcantes, algumas pérolas de Kon Ichikawa, Rashomon de Kurosawa e, para o caso mais relevante, Yojimbo, influência directa deste Bloody Shuriken como já se afirmou. Logo no primeiro plano conseguimos notar o génio de Miyagawa quando um cadáver boia num pantanal enquanto o nosso herói atira uma faca para os corvos que o devoram. Outros pormenores de destaque vão para as aparições do vilão, sempre pontuadas por uma música e enquadramentos que rememoram a saturação estilística dos duelos em Sergio Leone. Tudo o resto pode parecer previsível, mas com todos estes ingredientes a viagem só pode ser prazerosa.



The Heart (1973) de Kaneto Shindo: ****
Em 1955, Kon Ichikawa assinou aquela que é hoje considerada a adaptação mais fiel de Kokoro, célebre romance de Soseki Natsume publicado durante o ano de 1914. Nela, o realizador traçava todos os episódios da história original, incluindo as suas três partes distintas, e descrevia não só o sentimento agudo de culpabilização de sensei, o tal personagem pesado que vive no remorso fatal de ter "roubado" a amada do seu melhor amigo, K, mas também sublinhava mesmo que subliminarmente o período de transição histórico caracterizado por uma ausência perturbadora (a evaporação da figura paterna, a morte do Imperador Meiji, o nascimento do individualismo moderno). Ora, nesta terceira realização carimbada com o recomendável selo da Art Theatre Guild, Kaneto Shindo desembaraça-se da fidelidade literária de Ichikawa, por um lado transpondo para o seu tempo (os anos 70) a terrível história de amizade e traição e, por outro, cortando todas as acções e personagens que descentralizassem a gravidade desse trio (sendo a única excepção a mãe de I-ko, presença simpática porém mórbida, que parece querer casar a filha a toda a força). Na verdade, aqui só há cabimento para as danças macabras e quietas, sedutoras e mortíferas da juventude, como se Shindo melancolicamente levantasse a seguinte suspeita sobre o seu tempo: o egoísmo não nasceu agora, ele já está instalado há muito e diz respeito a algo mais imutável. Da mesma forma, jamais o diálogo inter-geracional é possível, só o monólogo existe. Eis a razão da escolha do voz-off solipsista em vez da correspondência entre gerações do original. Não há um sensei, figura paternal, que se dirige a um destinatário mais novo contando os seus erros em flashback, mas uma única geração de jovens que povoam os espaços como se só eles e as suas dúvidas e agruras existissem, aqui e agora. Veja-se, a este propósito, a maneira como Shindo filma as cenas exteriores: nunca ou quase nunca há figurantes e mesmo uma ruela na cidade ou um trilho campestre surgem com o mesmo grau de isolamento e desolação, aliás, tal e qual como o trompete arrepiante que vai dando vida (vai dando morte?) à banda-sonora introspectiva e solitária de Hikaru Hayashi. O que parecia uma simplificação preguiçosa e indevida do material original rapidamente se transforma num exercício claustrofóbico e asfixiante com o seu ritmo imprevisível e as suas distinções determinantes. Também Shindo prefere finalizar o seu drama na amargura de se permanecer vivo dentro do castigo imponderável do remorso e da culpabilização. Nada se aprende ou ensina nem nada se diz ou comunica (nem mesmo da maneira mais extrema). Só resta uma náusea calada que permanece a despeito de tudo.



The Ballad of the Sea of Genkai (1986) de Masanobu Deme: **
Tinha apenas visto dois dos filmes de Masanobu Deme: Okita Soji, um bio-pic raro sobre o lendário espadachim do Shinsengumi com momentos de alguma genialidade e Heaven Station, uma tragédia de amores proibidos protagonizados por uma bela e um monstro. Se essas duas produções eram dramas acirrados, The Ballad of the Sea of Genkai é uma comédia ligeira com tantos "pequenos episódios" que se torna confusa e perde rapidamente o seu foco. Começa por colocar a sua protagonista, Yuki, à caça do seu desaparecido marido, um empresário abastado que deixou imensas dívidas e um filho de uma relação ilegítima. Por entre encontros inusitados (claramente exagerados e cómicos), Yuki vai parar à cidade natal de Kitakyushu onde reencontra velhos conhecidos, nomeadamente um amigo de infância que nutre uma velha paixão por ela, e envolve-se com a máfia local que pretende destruir o bairro onde vivia e um velho cinema para instalar um complexo de novos edifícios, continuando, no meio disto tudo, no paradeiro do burlão escapulido. Com duas horas e quinze minutos, o exercício de Deme facilmente se desequilibra com tanta coisa a acontecer (e afinal, com tão pouca coisa significativa a retirar) e mesmo o seu ambiente vai permitindo certas mudanças súbitas de ritmo (filme yakuza, sátira, até um número musical deveras "eighties") que mesmo funcionando certas vezes vão desgastando a atenção e o investimento do espectador. Tirando a aparição de Toshiro Mifune como o inofensivo chefe yakuza, o que mais me surpreendeu aqui foi a energia tão particular de Yuki, uma espécie de heroína dos filmes de Juzo Itami avant la lettre (relembre-se que Taxing Woman estreou em 1987 e baptizava a protagonista feminina itamiana que, no seguimento da sua carreira, apenas iria abandonar pontualmente). Sayuri Yoshinaga, à semelhança da Nobuko Miyamoto de Juzo Itami, encarna uma mulher com traços de personalidade masculinos (até o cabelo curto e o desinteresse sexual põem em cheque a imagem sexista do feminino) e é a única personagem capaz de resolver as coisas, sacrificando-se mas usando sempre a inteligência.



The Thousand Year Fire (2004) de Naoki Segi: **
É conhecida a predisposição japonesa para o cinema "dos cinco elementos" quando a trama passa pelo período de descoberta e perda que todos os jovens conhecem a uma certa idade. Já o último filme de Naomi Kawase, Still the Water (entre tantos outros) aplicava brilhantemente esta obsessão temática pela surdina contemplativa da natureza contraposto ao sentimento de confusão e tristeza dos seus personagens, sempre à descoberta, sempre envolvidos num período turbulento de transição pessoal. Com efeito, a película de Naoki Segi é até demasiado escassa no desenvolvimento das personagens já que confia absolutamente nessa espécie de revelação mística que os espaços naturais conferem (as nuvens, o fogo, o oceano que representa a morte do pai do protagonista - através da perda do telemóvel na água - e seu o renascimento depois do torneio de natação). É pena que as personagens estejam tão indefinidas ao ponto das suas emoções se tornaram algo abstractas e apoiadas em fórmulas, encontrando-se sempre sustentadas pela magnífica paisagem em redor, mas pouco mais do que isso. The Thousand Year Fire é, como todos estes filmes, místico, intimista e silencioso, mas já vimos melhor.



Hospitalité (2010) de Koji Fukada: ***
Apesar das minhas pesquisas e dedicação relativas à emergência de novos talentos no cinema japonês, este Hospitalité do virtualmente desconhecido Koji Fukada escapou completamente ao meu radar. E que boa surpresa! Aparentemente um guia, em poucos passos, de como nos podemos sentir estranhos dentro da nossa própria casa, o filme trata os seus temas de forma, ousaríamos dizer, narusiana na medida em que usa o cepticismo e a desconfiança nas relações humanas para desfiar o drama doméstico e as ordens imperturbáveis a ele associadas. Se Naruse, no entanto, não precisava da família disfuncional para desconfiar e depois aceitar todas as vicissitudes relativas ao matrimónio ou às uniões de facto (pondo em cheque a lenta rotina que constitui a vida a dois), Fukada tem de recorrer a famílias dissolvidas (logo em construção) e à presença de um conhecido, mas estranho ao seio familiar, que semeará, com pompa e circunstância, o caos. Há muito tempo que não víamos um cineasta interessado no tipo de humor que nasce de um certo cinismo em relação aos costumes culturais e, até, às simples normas de boa educação. Hospitalité é um filme de hospitalidades frustradas (a última cena hilariante reduz ao absurdo a simpatia postiça e social que não sabe dizer não) que vive das suas situações insólitas e dos seus personagens, a dois tempos, relacionáveis e imperfeitos (e é a sua imperfeição que os torna relacionáveis).



Ramen Samurai (2011) de Naoki Segi: *
Para quem esperava enxergar aqui, mais uma vez, os poderes miraculosos (eróticos, sociáveis, profiláticos, etc, etc) da culinária - e como não recordar Tampopo de Juzo Itami que abria com aquela mítica cena sobre a arte de comer ramen? - este outro filme de Naoki Segi prescinde dos pretéritos e da loucura descomedida desse seu complexo predecessor gastronómico e encena uma intriga demasiado banal com recorrência excessiva e exasperante aos flashbacks. Uma coisa é certa: com apenas dois filmes vistos, Segi interessa-se bastante pela temática do pai ausente e no modo como os personagens completam ou complementam essa ausência: em The Thousand Year Fire, Satoshi Sugita com apenas onze anos perdia o pai de forma completamente abrupta e resguardava-se no silêncio dessa perda e ao telemóvel que continha a sua última mensagem, em Ramen Samurai (em que a comida apenas serve de pretexto) Hikaru resolve, com o apoio da mãe, tomar as rédeas do ofício do defunto pai e recriar a sua receita famosa de tonkatsu (para quem não sabe, trata-se de uma deliciosa sopa de massa e carne de porco). Quase toda a película se passa num longo flashback recriando episódios do negócio do pai enquanto Hikaru tenta, no presente, dominar a arte (infelizmente pouco mostrada) de cozinhar ramen enquanto tenta, ao mesmo tempo, revitalizar o bairro desprovido do comércio ambulante de sopas. Resta dizer que nada aqui se destaca grandemente: nem personagens, nem situações, e ficamos a perceber mal o papel que a cozinha pode ter na vida de quem a faz e de quem a recebe. Ramen Samurai tem os defeitos de uma produção televisiva, confiando muito mais na unidimensionalidade da trama e na acumulação de cenas episódicas do que no desenvolvimento devido dos seus temas e motivações.



The Little House (2014) de Yoji Yamada: ***
Com 83 anos, Yoji Yamada parece votar-se, nos seus últimos filmes, à arte da recordação. Kabei: Our Mother, tal como este The Little House, lembrava os tempos austeros da Segunda Guerra Mundial e tanto Younger Brother como Tokyo Family, mesmo situando-se no tempo presente, eram recriações (mais ou menos conseguidas, mas isso não importa) de filmes clássicos (um de Kon Ichikawa, outro de Yasujiro Ozu) e perpassava neles uma nostalgia inquestionável. Em The Little House, porém, a arte da recordação é ainda mais explícita pois faz parte integral da narrativa. Aquando do funeral da idosa Taki, o seu sobrinho Takeshi descobre a auto-biografia que ele próprio tinha incitado a tia a  escrever. Taki, que nunca se casou, conta nos cadernos como foi parar à casa de um fabricante de bonecos e explicita, ao pormenor, como era a relação com a sua patroa, a bela mas infeliz Tokiko. Ao longo dos relatos e das lembranças da tia não deixa de ser interessante a maneira como o sobrinho questiona certos "idealismos", contrapondo com a cronologia estanque de acontecimentos supostamente mais marcantes e sérios. Na boca de vários personagens (no passado e no presente) ouvimos que os tempos não eram fáceis e vivia-se uma instabilidade desconcertante, porém Taki (e Yamada) não deixa de sublinhar que os habitantes da História não são muitas vezes os seus protagonistas, de tal maneira que era possível conhecer a felicidade em tempos contrários a ela. Apesar disso, The Little House é um conto sobre adultério numa sociedade fechada e vive sobretudo das prestações cuidadas (nomeadamente Takako Matsu como Tokiko e a habitual yamadiana Chieko Baisho) e do milimétrico trabalho de câmara, rígido formalismo capaz de excepcções quando o drama assim o permite. O último troço do filme (talvez extenso demais) acaba por funcionar pois representa a procura da memória pela geração mais nova, provando que a memória como fenómeno emocional não é algo exclusivo dos velhos.